O cinema, se ele existir, é um oásis.
Denilson Lopes¹
Em Certo agora, errado antes (2015), longa-metragem sul-coreano escrito e dirigido por Hong Sang-soo, o personagem Ham Cheon-soo (interpretado por Jung Jae-young) é um diretor de cinema que vai à pequena cidade de Suwon para apresentar sua última obra. Já no final da narrativa, ele conversa com os organizadores do evento que está participando para decidir como voltará a Seul. Faz frio e, eventualmente, voam uns flocos de neve, enquanto os personagens se esquentam fumando e bebendo café. De repente, começa a nevar com mais força e o diretor olha para fora de quadro, à direita. Ele pede licença, abandona seu copo de café e cigarro e caminha nessa direção. A câmera acompanha o deslocamento de Cheon-soo com um movimento panorâmico, até encontrar Yoon Hee-jeong (Kim Min-hee). Eles conversam em plano de conjunto enquanto esfregam as mãos ou gesticulam desajeitadamente sem saber muito bem o que fazer com elas. A neve os envolve. Na noite anterior, eles viveram uma aproximação afetiva, mas Cheon-soo é casado e eles tiveram poucos contatos físicos, provavelmente por respeito a essa condição. Agora eles se despedem sorrindo e dizem um ao outro que estão felizes por terem se encontrado, enquanto chacoalham o corpo devido ao clima. Ham pergunta se Yoon ficará bem, ela responde que sim, eles riem, falam amenidades. Silêncio. Ele oferece-lhe a mão: “Obrigado por tudo.” Ela olha a mão estendida, retira uma de suas luvas e aperta-a: “Igualmente.” Os dois se olham por alguns segundos, de mãos dadas. Os corpos não mais tremem de frio, embora a neve continue caindo. Hee-jeong retira a mão, diz que vai entrar no cinema para ver o filme do diretor, que já está começando. Ela faz o típico cumprimento oriental de curvar-se e deseja-lhe boa viagem de volta para casa. Ele agradece, cumprimenta-a também, e, assim, eles se afastam, ambos leves e sorridentes. A neve segue intensa e Cheon-soo acende um cigarro, pensativo.
No plano-sequência seguinte, o diretor abre a porta da sala de projeção e caminha até Hee-jeong, que está sentada assistindo os créditos iniciais do filme, embalados por uma trilha musical doce. Ele faz questão de se despedir novamente da moça. “Sentirei sua falta”, diz Hee-jeong. Cheon-soo aperta os lábios por alguns instantes, olhando-a, até que deixa escapar um sorriso e confessa: “Eu também.” O diretor sai da sala, a menina permanece sentada na cadeira e dá cinco longos e ruidosos suspiros, enquanto apoia lentamente o queixo na mão esquerda. Seu rosto oscila entre um olhar de atenção ao filme que se inicia e pequenos movimentos no canto da boca, tentando conter um sorriso que teima em aparecer. A duração desses dois planos e a forma como os corpos são dispostos diante da câmera convoca a atenção do espectador para os pequenos detalhes, as sutilezas.
A segunda parte de Na praia à noite sozinha (2017), também escrito e dirigido por Hong Sang-soo, começa com Kim Min-hee sentada em uma sala de cinema parecida com a do outro filme. Desta vez, sua personagem se chama Yeong-hee e ela termina de assistir uma obra que a deixa arrasada. As luzes se acendem, ela permanece sentada por um tempo, recompondo-se, até que sai do cinema, embalada por uma trilha melancólica. As personagens são diferentes, mas suas histórias possuem diversas semelhanças,² assim como a vida pessoal da atriz Kim Min-hee e do diretor Hong Sang-soo no período entre a realização desses filmes.³
Ao longo das duas últimas décadas, Hong vem realizando filmes de baixíssimo orçamento bastante parecidos uns com os outros e que retratam o universo de artistas e intelectuais de classe média sul-coreanos. Sua metodologia de trabalho é bastante singular, voltada para o presente dos encontros mediados pelo cinema. O fator contingencial, a presença dos atores, a dinâmica entre os indivíduos no espaço do set e as condições atmosféricas são incorporadas poeticamente, como na cena da neve descrita acima. A cada manhã, o diretor colhe histórias e frases que viveu, ouviu, leu ou sonhou e escreve os diálogos com essa matéria-prima. Então, os atores decoram as palavras escritas por Hong em pouquíssimo tempo (entre 30 e 45 minutos, em média), juntam com sentimentos pessoais e inscrevem-nos no presente com seus corpos. São planos longos, abertos a eventuais intervenções externas e calcados no jogo estabelecido entre os atores, a câmera, e a pequena equipe de amigos próximos que participam das gravações. No dia seguinte, o processo se repete, com sutis diferenças. E assim eles prosseguem, gravando os filmes linearmente, na ordem em que serão montados e exibidos, até que considerem terminado cada trabalho.
Tal método abre brechas para singelos acontecimentos afetivos, que emergem como fagulhas e são apreendidos pelo dispositivo cinematográfico. Em entrevista recente à Cahiers du Cinéma,4 Kim Min-hee relembra com carinho sua primeira parceria com o diretor em Certo agora, errado antes:
Essa primeira colaboração foi um momento muito forte e muito precioso para mim. Foi a primeira vez que respiramos juntos. Quando eu repenso esse período, é como um primeiro amor, os primeiros sentimentos, emoções. Isso me faz pensar nas pequenas nuvens, todas lindas no céu.
A atriz declara que considera o método de Hong fascinante e que pretende continuar trabalhando com ele no futuro. Desde 2015 e até a escrita deste texto, Kim atuou em outros três longas lançados pelo diretor, totalizando quatro colaborações em menos de dois anos. Hong justifica de uma maneira bem simples a escalação desta atriz para seus projetos: enquanto ela o inspirar, seguirão fazendo filmes juntos.
Atores são tão importantes. Então, a Kim Min-hee, como eu disse na conferência de imprensa na Coreia, eu… eu… eu… eu… eu a amo. Então é óbvio que eu tenho muito mais inspiração trabalhando com ela. (…) O pintor Cézanne, ele pintou muitas vezes essa montanha, a Sainte Victoire, mas cada vez ele fez uma pintura diferente. Talvez seja mais vantajoso trabalhar com um modelo, ou pessoa, ator, que você se sente próximo. (…) Eu penso que assim você pode tirar uma coisa boa, ao invés de trabalhar com pessoas diferentes com as quais você tem menos sentimentos.5
Neste ensaio, não entraremos em detalhes da intimidade do casal, até porque inúmeros tablóides já o fizeram e os artistas não demonstram conforto para falar do tema publicamente. Veremos, contudo, como eles mesclam realidade e ficção em um trabalho colaborativo, no qual Kim permite que seu corpo seja atravessado pelas emoções até afetar o corpo da câmera, que delicadamente capta a forma como cada sentimento reverbera e se traduz em movimentos. Segundo Hong, o cinema é o melhor veículo para capturar “certas coisas do ser humano, especialmente o que eu chamo de coisas superficiais”,6 os pequenos gestos, respirações, olhares. E para isso é necessário parar. Seus filmes convidam os espectadores a uma experiência de suspensão. Atentar ao que é real e, ao mesmo tempo, efêmero; que existiu neste plano de realidade que compartilhamos mas já passou, agora só existe no cinema – se existir.
Na história de Na praia à noite sozinha, a personagem principal Yeong-hee está vivendo uma experiência que se espelha naquela sugerida ao espectador: um estado de pausa, silêncio, atenção. Conforme vamos descobrindo aos poucos, ela é uma atriz que viveu um romance extra-conjugal com um diretor de cinema famoso, cujo nome nunca é revelado. A mídia coreana explorou tanto esse caso que a moça passou a ser considerada uma bomba (palavras dela própria) e tem dificuldade em conseguir novos trabalhos em seu país. O diretor, por sua vez, afastou-se de Yeong-hee para se dedicar à esposa e ao filho; dizem os boatos que ele se mudou para Jeju, ilha no sul da Coreia, e que está arruinado. Todas essas informações são pulverizadas ao longo da narrativa através de breves comentários ditos pelos personagens e a câmera possui particular interesse em observar como eles reagem a tal assunto, que ressurge com frequência nas conversas.
Sem perspectivas e sem saber o que realmente deseja, Yeong-hee passa uma temporada em Hamburgo, onde pode vagar por parques e praias sem ser reconhecida, procurando apenas se encontrar ou desaparecer suavemente. Depois que retorna à Coreia, ela continua buscando a solidão, se curva para acariciar uma flor, sentir o aroma, fazer uma prece. Escuta um avião cruzando o céu e canta uma canção à capela: “Quando o vento sopra, eu me sinto triste, pensando em como és bonito. Está indo bem? Sua vida está feliz? Pode ver o meu coração? Como minha mente chegou a esse ponto?” Eles não podem mais se encontrar, não neste plano de realidade. Ela desenha o rosto do homem amado na areia, usando um graveto. E sonha. Nas outras dimensões, Yeong-hee e o diretor podem se encontrar sem julgamentos morais ou compromissos com as pessoas ao redor, seja a indústria do entretenimento coreana, os críticos dos festivais de cinema ou a família dele.
Nos outros mundos imaginados, as coisas são mais simples e os corpos humanos são formas na natureza. Para essa leitura, trago algumas reflexões propostas por Denilson Lopes na coletânea de ensaios A delicadeza – estética, experiência e paisagens, publicada em 2007. Ao resgatar diversos pensamentos acerca da paisagem enquanto categoria e cotejar obras literárias, musicais e cinematográficas, Lopes desdobra esse conceito em direção a um eclipse do sujeito, uma busca pelo sublime no banal, no comum. O desejo de desaparecer na paisagem, de ser apenas mais um ponto, só pode ser cifrado como desejo de morte? “Há uma frágil posição, uma brecha, se permitirmos que a paisagem nos tome e nos reeduque para a delicadeza e para o desamparo.” (LOPES, 2007, p. 138) Cercada de árvores secas, Yeong-hee reconhece o privilégio de poder desfrutar da natureza e da pequenez cotidiana. “Às vezes eu sofria com a solidão. Mas até nisso também há prazer,” responde a seus amigos coreanos, quando questionada sobre sua estadia no exterior. Frente ao escândalo midiático, ela adota a discrição como prática e o filme a acompanha, solidário. Estamos com Yeong-hee. Não podemos sentir a dor que lhe aperta, mas estamos com ela, pelo menos enquanto durar a projeção daquela realidade transformada em luzes.
O diretor que Yeong-hee encontra em um sonho, interpretado por Moon Sung-keun, está com a saúde comprometida, sofrendo de enxaquecas. Ele próprio diz estar doente de tanto arrependimento, atormentado, tentando exorcizar o monstro no qual está se tornando. Talvez ele seja o diretor por quem Yeong-hee se apaixonara, talvez não. Para tentar expurgar essa cólera, ele decide fazer um novo filme e descreve uma metodologia de trabalho muito parecida com a de Hong Sang-soo:
Yeong-hee: Qual filme você fará?
Diretor: Sobre alguém que amei. Será baseado nessa experiência.
Y: Histórias pessoais são entediantes. É cansativo sempre falar de si mesmo, não é? (…) Como você vai fazê-lo?
D: Na medida em que surgirem ideias, sem muito planejamento. Filmo a primeira cena e deixo ela me levar…
Y: Por que você faz esses filmes? Por que retratar algo que você amou? Tentando reduzir o seu sofrimento?
D: Meu sofrimento? Talvez.
Bêbada de tanto soju, Yeong-hee flutua entre o escárnio e a fúria, reagindo à autoindulgência do diretor. Será o fazer artístico a única salvação para as desgraças da realidade? Será uma salvação sequer possível? O diretor chora, afirma que pretende morrer sufocado com a doçura do remorso, fala muito. Yeong-hee escuta-o, porém, não se emociona com aquele discurso, sai para fumar um cigarro… E desperta de um sonho. Está deitada na praia, de dia, sozinha, suspensa pelos grãos de areia e diante das ondas do mar. O diretor que apareceu em seu sonho achava que sabia o que queria e repetia os mesmos mecanismos mal-sucedidos do passado, com sistemas fechados e pesados. Dor, catástrofe, trauma. Diferente dele, Yeong-hee aceita a condição de ignorância diante da vida e escolhe a leveza da deriva, incerta no seu próprio caminho. Leveza que acolhe os acasos, o presente assignificante e vazio, sem saber o que virá. Lopes propõe pensarmos a paisagem como uma forma de viver entre o banal e o sublime, entre a materialidade do cotidiano e a leveza do devaneio:
Ser feliz em meio a tormentas é o desafio e o aprendizado. Quando nada ou pouco satisfaz, retirar a força da dor. Sorrir diante da luz que cega. Cantar quando o tapa humilha. Caminhar delicadamente diante das vaias. Diante do abismo resistir ao mergulho na loucura, no suicídio, no útero da morte. Caminhar diante do peso das coisas, com leveza na alma. (LOPES, idem, p. 78)
Em reação à violência moral da sociedade em que vivem, Hong e Kim propõem ao espectador um exercício de alteridade: deixemos de lado, por alguns instantes, os julgamentos. Yeong-hee ergue-se na areia da praia de forma serena, “o mundo e a paisagem implodem o sujeito, seus dramas íntimos e psicológicos. Trata-se de trazer o fora para dentro, não ir para dentro, nem colocar o eu para fora.” (ibidem, p. 87) Entendamos aqui a serenidade como uma virtude ativa e fraca, mas não a virtude dos fracos (ibidem, p. 89). Não a submissão, tampouco a concessão, mas uma ética de possibilidades.