Em uma das primeiras sequências de Café com canela (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2016), a câmera, em movimento panorâmico, mostra pés, punhos e partes do rosto de pessoas comuns. No contato com aqueles membros, não temos, a princípio, a informação da identidade e origem dos personagens. O chão pode ser qualquer um de uma casa simples, convoca as lembranças de outras casas. No decorrer do filme, entendemos que essa sequência é flashforward, que antecipa a cena de uma festa na qual os personagens serão vistos com o rosto e o corpo inteiros, encontram-se para beber e falar da vida que, naquele momento, é atravessada pela dureza e realidade da morte. Se, no início do filme, aquelas pessoas cujos rostos nos pareciam anônimos poderiam ser quaisquer, agora, nesse retorno à festa, quando já conhecemos suas histórias e trajetórias, há ainda algo que concerne a todos e pode encontrar correspondência com qualquer espectador: a experiência da morte. Esse parece ser o gesto e a consciência que atravessam o longa de Rosa e Nicácio: partir do individual ao coletivo, do público ao privado. No entanto, há o desejo de manter e mostrar algumas diferenças constitutivas desse contato com esse outro, que se tornam elementos de uma relação possível de reconhecimento nessas personagens. Nesse caso, destacam-se as manifestações de fé, a benza, a incorporação do orixás. Oxum aparece para Margarida no reflexo de um espelho, aparece e some, não se explica. Há algo que nem todos podem compreender.
Em Café com canela, há, em alguns momentos, pequenas reflexões sobre a potencialidade, o alcance e a forma da imagem. Desde as imagens iniciais do aniversário de Paulinho, em que, na hora do parabéns, ouvimos a voz de Adolfo apressando os outros para que as velas sejam sopradas com agilidade, porque a bateria da câmera está acabando, evidencia-se que se trata de uma imagem, e que esse contato com o cotidiano está acontecendo mediado por ela. Quando Violeta entra na casa de Margarida, questiona a amiga do fato da televisão estar muito empoeirada, perguntando-a se é possível assisti-la. Margarida diz que prefere o cinema, que seria mágico, por ter uma “sala grande, com um monte de gente e uma tela branca na frente”. Nesse diálogo, Margarida afirma que bom filme seria aquele que mostra os pobres, que estimula um olhar para dentro e aquele que quer experimentar o espectador e ser experimentado. Essas conversas parecem apontar para a própria natureza do longa-metragem: nele, os pobres e os negros aparecem distanciados de narrativas comuns de vitimização e esteriótipos encontrados na grande imprensa e na televisão.
Além disso, em Café, há planos e sequências que tentam trabalhar com a imagem de forma experimental. Contudo, nessa ideia de experimentar o cinema e a imagem, o longa tem diferenças e quebras de ritmo ao longo do filme. Aproximando-se de uma linguagem publicitária, algumas sequências que irrompem para mostrar ações, gestos e elementos cotidianos – as bocas que mordem as coxinhas, os couros cabeludos úmidos e ensaboados das pessoas tomando banho, os alimentos que são mostrados primeiramente frescos, depois estragados -, interrompem a narrativa de maneira abrupta e não são associados diretamente ao desenvolvimento e conflitos desses personagens. Se pensarmos na trajetória e discussão do cinema experimental1, a consciência da forma é o elemento central na orientação no filme. Desse modo, a obra é pensada, em toda a sua amplitude, como um trabalho experimental. Ao nosso ver, esse não parece ser o caso de Café com canela, cujo investimento nos diálogos e no desenvolvimento da narrativa são maiores do que em invenções com a linguagem e a forma do cinema. Nas cenas em que isso acontece, essas imagens se chocam e contrastam com o restante do filme. No plano em que vemos a subjetiva do cachorro na praça, por exemplo, podemos pensar que há o desejo de inseri-lo como personagem daquela e história e ter, como acontece com os outros, a possibilidade de ter sua perspectiva de mundo revelada; não entendemos, no entanto, o porquê da visão dos outros personagens não ser explorada dessa mesma maneira. Evidentemente, o cachorro não poderia falar e contar como percebe o cotidiano; a possibilidade cinematográfica, porém, dos outros aparecerem com esse tipo de plano existia. Essa atenção ao cinematográfico aparece na conversa entre Violeta e Margarida sobre o cinema e, também, nos planos em que vemos Margarida dentro de um cinema e apenas acompanhamos a imagem do seu rosto, podendo apenas levantar hipóteses acerca do filme que ela está vendo. No primeiro caso, Violeta olha para câmera, quebra aquilo que seria esperado em um cinema narrativo tradicional, em que seria desejado que não se revelasse que se trata de um filme, quebrasse-se uma contiguidade naturalista entre imagem e vida. Olhar para a câmera é um gesto cinematográfico, uma consciência de como o cinema, como linguagem, pode atuar dentro daquele universo.
No filme, a casa é o mundo: nele convivem morte e vida, a esperança – e a experiência – do divino. A casa evidencia o que está ainda para ser feito, para resolver. Na primeira sequência da festa, enquanto Ivan nos conta de como conheceu, apaixonou-se e foi viver com Adolfo – a maior loucura de sua vida -, o plano nos permite ver que, ao fundo, há um muro ainda em construção, a parte construída está sem reboco, há alguns tijolos por ali e um carrinho de mão encostado. No microcosmo da casa, temos contato com os dilemas e dificuldades da vida dessas pessoas para além dali. Numa vivência de vizinhança intensa e harmoniosa, todos se mobilizam para abrir a porta da casa de Ivan e Adolfo, quando Ivan chega tarde à sua moradia e, ao contrário do que foi combinado anteriormente, não tem a resposta positiva de Adolfo para abrir a porta de sua casa. Apesar de já ser muito tarde, de já estarem deitados e preparando-se para dormir, eles saem da casa e vão para a rua, ajudar o amigo e vizinho a arrombar a porta e ir para o lado de dentro de casa. Entrando na casa, porém, Adolfo vê que o companheiro está morto. Do espaço doméstico, a morte é o que conduz para outro lugar. Quando dona Roquelinha morre, o carro de som passa na rua, emite e ressoa anunciando os procedimentos do velório e enterro, alcançando quem está dentro de casa. A morte é o que desestabiliza e rompe os limites entre dentro e fora. Quando vemos Margarida antes que Violeta a ajude a se recuperar do luto e da tristeza, do teto escorre sangue. A experiência da morte é o que também dificulta que ela consiga deixar a casa e viver outras experiências. Enquanto isso, os elementos da casa começam a tomar o espaço da vida: não há limpeza, a poeira se acumula, o café é requentado. Da soleira da porta, do lado de fora, porém, começa a ser construído o movimento de sair dali, como podemos perceber nas rosas que Violeta deixa na porta de Margarida e, depois, uma aparece na porta de Violeta quando sua avó morre. Se, como aparece no diálogo, entre Margarida e Violeta, debaixo do azul, tudo era melhor, debaixo d’água era mais confortável, mas tinha que respirar, é preciso ir de dentro para fora. Tanger e atravessar a superfície. Assim, a vida continua.