Como o cinema se diferencia e se aproxima de outros regimes de imagem? O que é o cinematográfico e quais são os elementos de linguagem que o constroem? Como o encontro com um outro que amamos quando mediado pelo cinema é diferente – ou similar – àquele que acontece sem que haja o cinema? Nossa paixão ou admiração por algum outro é suficiente para que exista um filme? Que grau de consciência ou lucidez é preciso para que nossas imagens permaneçam inventivas, despertem para alguma experiência estética? Mostrar é suficiente para que haja cinema? Como o mundo do outro pode ainda ser outro e produzir uma experiência única por meio de um filme?
Levanto essas questões para que possamos nos aproximar de Madrigal para um poeta vivo (2018), de Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho. No início desse longa-metragem, primeiramente o poeta aparece e, depois, a equipe surge, segurando os equipamentos de filmagem. Assim, as imagens parecem nos dizer que o filme que vai ser feito vai ser conduzido pela presença daquele personagem. No primeiro plano, com pouca luz, a imagem da natureza e a presença daquele homem no espaço que não seria esperado à civilização provoca várias expectativas. Em um primeiro momento, talvez pudéssemos esperar alguma aproximação com A alma do osso (2004) de Cao Guimarães. Nessa obra, também entramos em contato com um homem que se coloca em choque com as relações de sociedade, trabalho e formas de sociabilidade. Nesse filme, porém, há um esforço para que a imagem seja atravessada e reinventada por esse mundo do outro, que convoca um trabalho com a forma que é pensado e criado esteticamente a partir desse encontro. De uma primeira parte que é extremamente silenciosa àquela em que transparece um excesso no uso da palavra, que perde o seu caráter referencial e indicial no mundo, no fim de Guimarães há um esforço para que esse encontro no real produza uma linguagem outra, uma linguagem particular, que não é aquela que existiria sem que fosse aquele personagem a ser filmado. Outro cinema que pode nos ajudar a pensar como o mundo do outro pode atravessar os filmes que são feitos é a maneira pela qual Andrea Tonacci estabeleceu imagens de contato com os povos indígenas. Em Conversas no Maranhão (1983), por exemplo, o contato com os índios Canela Apanyekrá chega às imagens pela manutenção irredutível da diferença. Nesse filme, não há tradução, nem legenda, nem narrativa. Naquilo que não se explica totalmente, no distanciamento do discurso que pode se organizar pelo excesso e pela verborragia, é que a experiência de espectatorialidade guia-se para um encontro com aquelas pessoas. Quando Tico está assistindo televisão e comentando com a equipe de filmagem sobre a entrevista que fez para aquele programa, aparece depois dizendo que “os jornalistas misturam muito as coisas”. Se pensarmos em Madrigal para um poeta vivo, o filme reitera uma linguagem televisiva, que pode ser identificada no uso das cartelas que apresentam as pessoas que falam de seus depoimentos sobre o Tico.
Tanto na poesia, quanto no cinema, a consciência formal é necessária para que a experiência estética seja construída. A forma de um verso é que o que possibilita distingui-lo de outras manifestações de uso da palavra; no cinema, a forma de uma imagem é que nos possibilita pensá-la distanciada do jornalismo ou daquela que é factual. Dentre outras obras que trabalham com a relação entre palavra, poesia e imagem no Brasil, podemos voltar ao filme Pan Cinema permanente(2008), de Carlos Nader, em que o desejo de construir um filme sobre o poeta Waly Salomão conduz a um emprego de experimentalismo da imagem em que a perfomance e a perfomatividade do poeta entram em fricção e modificam o mundo das imagens a partir da vida. A inteiração de Waly com a câmera, a mise-en-scène do poeta, guia a maneira como ele é filmado, como imagens experimentais são inseridas no filme e como a poesia escrita agora ganha outra dimensão que é àquela da palavra e do verso declamados para uma câmera. Nesse caso, para que o poema não perca sua força, o cinema precisa ir junto, aproximar-se daquela poesia com o cuidado suficiente para que, em suas imagens, não esmoreça a força e a beleza dos poemas que lhe despertaram para a vontade de filmá-lo e realizar um filme com o escritor.
Uma questão que não fica clara nesse contato com as imagens é porque elas são divididas em partes na montagem de Madrigal para um poeta vivo. Esses segmentos não apresentam muitas diferenças entre si e, dentre de cada um dos seus excertos, possuem diferenças significativas e mudanças de ritmo e linguagem no interior de cada bloco. Se Tico não deseja, como diz, ser reconhecido como um “escritor coveiro”, o que o filme faz é mostrá-lo em categorias, ora como coveiro, ora como palhaço, ora como morador de rua, ora como poeta. O filme não atende àquilo que diz o camarada de Tico e professor Rubão, segundo o qual seria necessário que “as falas entrassem pelos becos”. No contato com essa montagem que não se apresenta de maneira coesa, aparece também a dúvida de como trabalhar com as imagens de um primeiro curta-metragem dentro de um longa-metragem, pensando no curta-metragem Ferroada (Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho, 2016) que foi apresentando na Mostra Foco dentro da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Recorrendo, outra vez, a outras obras do cinema brasileiro para que possamos entender o que acontece em Madrigal para um poeta vivo, podemos pensar no média-metragem Já visto, jamais visto (2013), de Andrea Tonacci, em que o filme inacabado Paixões é tomado como ponto de partida para organizar uma série de materiais de arquivo de família do diretor e excertos de outros filmes dirigidos por ele. Nesse processo, as imagens de antes passam a ser entendidas como uma outra natureza, que já não é mais àquela que corresponde à experiência estética de sua primeira montagem. Trabalhar com imagens de arquivo, ainda que seja com as imagens de arquivo de um próprio filme do passado, dirigido pelos mesmos diretores de agora, pede que as entendemos em relação no tempo e formal com o novo filme que nos propomos a realizar, entendendo como a montagem pode provocar novos sentidos e formas de experienciar as mesmas imagens que, outrora, estavam organizadas de uma outra maneira.