Em um mundo distópico, o que pode o cinema?
A necessidade e a urgência são argumentos apresentados para justificar a realização de vários filmes brasileiros recentes. O ímpeto de produzir filmes é acompanhado pela possibilidade de denúncia, o caráter indicial de uma imagem que possa revelar, mostrar ao outro a violência e a agressão que atravessa o mundo. Sob essa perspectiva que o tempo é curto, temos, muitas vezes, imagens que dão a ver o lugar da barbárie, fazem com que ela convivamos, sem que tenhamos, a partir desse contato, uma experiência estética que conduza a um pensamento outro, que não se consolide e se construa a partir do registro e evidência das imagens do horror. Podemos, nesse caso, destacar filmes que se colocam a mostrar agressões policiais em atos e manifestações políticas, que, vistos justos, parecem construir uma espécie de apanhado iconográfico recente de gestos e ações que evidenciam a violência, que se aparenta com poucas variações entre situações e cidades, tendo em vista que o tratamento truculento dessas autoridades é recorrente. Em contato com essas imagens, a informação e os dados daquilo que acontece nos alcançam; parece-nos, porém, que não há como agir, tomando a imagem como instrumento em si, por outro mundo possível. Nesses filmes, quando a violência, a barbárie e a desilusão assolam a realidade parecem esvaziar consigo a possibilidade de uma imagem que se coloque, radicalmente, em função e na possibilidade de um mundo outro. Para este texto, colocamos em atenção a dois curtas-metragens brasileiros recentes que se contrapõem a esse cenário: Mamata (Marcus Curvelo, 2017) e Impeachment (Diego de Jesus, 2016), exibidos, respectivamente, na 21a e na 20a Mostra de Cinema de Tiradentes.
Mamata se anuncia com a seguinte cartela: “Filmar para não morrer”. Os créditos iniciais aparecem, depois vemos o tronco de um homem de costas. Não vemos o seu rosto. Ouvimos “Universo no teu corpo”, de Taiguara, que canta a desistência próximo de uma gente que vive só para si. Na cena seguinte, vemos o garoto no interior da casa, com o cenho franzido e apoiado sobre as mãos, enquanto a luz da tela de computador projeta sobre ele uma sombra maior que seu corpo. Na história do cinema, o uso dessa projeção de sombra maior que um personagem pode ser associada a contextos políticos conturbados e desesperançosos. Pensemos, por exemplo, em como as sombras que se projetavam dessa maneira sobre os personagens no expressionismo alemão, em que na distorção e no exagero, reverberava a atmosfera de um contexto político de desamparo e desilusão, após o fim da primeira guerra mundial. Olhando para baixo, para a tela, o garoto conversa com sua namorada, Sabrina, enquanto relata sobre uma possibilidade comercial e de renda a partir do comércio de carne, que logo se revela distanciada do que o jovem deseja e acredita para si, tendo em vista que o agronegócio e a bolsa de valores têm contribuições negativas para a realidade atual. Do contexto macro ao micropolítico, a dúvida de trabalhar com a campanha do pai de Levy à prefeitura reverbera em imagens que mostram a preparação e a ingestão de carne dentro da casa do garoto.
Mamata (Marcus Curvelo, 2017)
Envolto em sombras, o garoto fala do desejo de ir embora, dos amigos que estão tomando antidepressivos. Embora saibamos que o jovem fala com alguém, o que vemos é a sua imagem, sozinha, em um quarto escuro, enquanto ele desabafa. Essas conversas que se amparam na tecnologia também por ela são afetadas negativamente: em outro diálogo, quando o garoto fala com a namorada sobre o plano real de ir aos Estados Unidos, a imagem da menina congela, o sinal da conversa está ruim e vemos sua face desconfigurada. Ao desamparo cotidiano, concorre uma situação contemporânea que, se oferta a possibilidade de contato com aqueles que estão distantes, pode evidenciar a solidão quando essas máquinas não funcionam, falham, faltam. O garoto encara a tela apagada do computador. Nessa mesma sala, ele conversa com o seu amigo Lévy, cuja face não vemos, enquanto assistimos ao seu corpo ocupando a menor parte do quadro e onde ele aparece sozinho. Quando ele pergunta como Levy está, uma imagem de festa e champagne aparece, a garrafa é levantada pelos punhos de uma multidão em que também não vemos o rosto e a face daquelas pessoas. Em outra cena, o protagonista levanta um cachorrinho, coloca-o para olhar para a tela e convida-o a dar um alô para sua mãe Sabrina, por meio da tela do computador. É frente ao computador que é possível imaginar uma estrada, pensar em ir embora dali, embora pareça difícil romper com a virtualidade dessa imagem.
Mamata (Marcus Curvelo, 2017)
Os questionamentos e as dúvidas existenciais de si caminham juntos com às incertezas em relação ao sistema político, aos partidos, aos lugares de representação. O mal-estar e a angústia dele e de seus amigos é abordado junto com a privatização e com a reforma da presidência. Quando conta como perdeu a prova do concurso em Brasília, refere-se a uma droga chamada “pedalada”. No momento em que ouvimos uma versão inusitada do hino nacional, o protagonista encara seus dedos. No meio de um corredor vazio e escuro, que leva à saída de emergência, um pato de borracha pequeno está no caminho e dialoga diretamente com os protestos da classe média e industrial paulista que dizia que não iria “pagar o pato”, protestando com patos de borracha. O garoto aparece rolando na rampa que dá acesso ao congresso. No espelho que dá a ver ao seu rosto em prantos, é inserida a voz de um jogador, que diz “querer dar alegria ao seu povo”.
Mamata (Marcus Curvelo, 2017)
Em Impeachment, Diego de Jesus, no contexto político atual, volta a uma história recente do Brasil. O filme se anuncia com a cartela “Brasília, 1999”. A imagem dos congressistas em reunião é acompanhada da música “I want it that way”, do Backstreet boys, que fez muito sucesso no final da década de 1990. Enquanto seguimos ouvindo outras músicas pop daquela época, aparece a imagem do golpista que governa o país, então presidente da câmara dos deputados e é informado que o pedido de impeachment do presidente da República foi negado. Naquele período, foram protocolados pedidos para depor do cargo o então presidente Fernando Henrique Cardoso, que, em segundo mandato, era acusado de crime de responsabilidade1 na gestão de um programa do seu governo.
Impeachment (Diego de Jesus, 2016)
No lado do governo, aparece o deputado Arthur Virgílio, apresentando como argumento a necessidade da democracia. Em seguida, seguem-se as falas de diversos deputados, entre a posição, a oposição e “outros”, como categoriza Jesus. Depois dessas falas, o filme nos informa sobre o procedimento de argumentação e votação da casa, mas, partindo de uma prática de argumentação e defesa habituais da câmara, inova para dizer que, na verdade, os deputados estão envolvidos em um duelo funk, em que cada um poderá usar o seu próprio DJ.
Impeachment (Diego de Jesus, 2016)
Em Mamata e Impeachment, o desespero conduz à necessidade de invenção com a linguagem e com a forma do cinema. Esses filmes se recusam à imobilidade ou ao uso de alegorias para tratar do cenário político. Deslocam as imagens mesmas da realidade, por meio do humor e do sarcasmo como ferramentas possíveis. Filma-se para não morrer, utiliza-se da montagem como possibilidade de uma outra escrita da história e dos acontecimentos do mundo. Em um contexto em que o volume de informações e os dados sobre o cenário político parecem imobilizar, fornecer pouco conteúdo que possa conduzir a alguma ação ou resposta que possa interromper o golpe e a adoção de políticas neoliberais, esses filmes investem no cinema para a criação de um mundo outro. Impelidos por um sentimento de urgência diante de um cenário sociopolítico catastrófico, os curtas respondem a esse contexto por meio do uso de imagens que não são apenas as indiciais do mundo arrasado. Curvelo se apropria de elementos simbólicos que permearam o passado recente do Brasil – como o pato de borracha – para tentar inseri-los em uma narrativa cujos elementos formais possibilitam que percebamos o absurdo que carregam. Da mesma maneira, a evidência que as relações e conversas no contexto contemporâneo são atravessadas e danificadas pela dependência da tecnologia acontece a partir de um trabalho com a imagem e com a fotografia – como acontece no uso da luz da tela do computador que produz sombra e na maneira pela qual o corpo do personagem ocupa o quadro nessas cenas. Jesus, por sua vez, utiliza-se de elementos da cultura pop – as músicas dos anos 90, a possibilidade de um duelo funk – para construir conexões entre as imagens de outrora e as imagens de agora, inserindo nos discursos de autoridades e nas imagens do governo figuras que parecem comunicar à juventude que os discursos dos governantes. Diante do desespero, do sentimento de desistência e desilusão, esses filmes têm ainda a possibilidade e o desejo de cinema como a ferramenta última possível. Depois que já desistimos dos políticos, dos representantes, da democracia representativa, ainda há o cinema. Ele não promete ou não responde nada, não é a utopia ou a esperança. Mas existe antes de morrermos. Salva-nos da morte.