Fazer um filme é uma experiência intensa. Discutir o filme, por sua vez, é uma experiência imprevisível. Fico imensamente satisfeita pelo debate resultante do filme que dirigi e apresentei na última Mostra de Cinema de Tiradentes, Imo. Tal debate perpassou e perpassa as possíveis interpretações de cada indivíduo, sendo ele homem ou mulher, espectador ou crítico: pessoas que reagem e têm convicções sobre o que uma obra pode ou deixa de mostrar quando inserida no debate de gênero na atualidade, em específico dentro do cinema.
Estaria mentindo se escrevesse que passei ao largo das críticas, em especial as escritas e ditas por homens, que em alguns casos diziam não entender ou, até, se recusavam a dialogar com o filme. Acredito que o posicionamento desses sujeitos diz mais sobre a sociedade em que vivemos do que a própria narrativa que construí com muito cuidado, gosto e pouco orçamento. Quando a discussão lhes atravessava o entendimento, expunham tudo aquilo do que o filme tentou tratar, mesmo sem se expressar. Recentemente, porém, fui chamada ao diálogo por três mulheres e aqui me coloco satisfeita, de forma a manter vivo o debate entre mulheres, acerca de um filme feito por uma mulher, dialogando com uma reflexão advinda de mulheres. E isso, no final, é o que importa.
Antes de iniciar a “conversa”, gostaria de expor o orgulho e a importância de vislumbrarmos, pela primeira vez na história da Mostra de Cinema de Tiradentes, uma bancada majoritariamente feminina compondo o júri da crítica. É inegável a carga machista que o cinema carrega consigo, assim como profissões que visam norteá-lo e ampará-lo, e presenciar e responder a esse fenômeno é, sem dúvidas, uma considerável conquista para todas nós, mulheres.
Há feminismos e feminismos. A pluralidade me deixa feliz. Mulheres falando me deixam feliz. O meu feminismo não é um feminismo de livro, mas de experiência, portanto faço aqui um texto que tenta falar com todas, longe do linguajar academicista que mais exclui do que convida. A proposta aqui é de um relato. Meu feminismo acredita que a mulher deve ser livre para tomar suas posições, e celebra esta possibilidade. Meu feminismo olha toda obra feita por mãos de mulher com extrema atenção, pois ser mulher e artista é uma condição difícil. Meu feminismo jamais tenta invalidar uma obra feita por uma mulher antes de tentar enaltecê-la – já não há tantos fazendo isto? Por último, e não menos importante, meu feminismo assume seus erros. Como venho aqui na condição de realizadora, e não crítica, não farei um trabalho de defesa estética do meu filme, mas participarei na discussão enquanto mulher.
Imo é um filme que não subjuga suas personagens femininas, mesmo as que estão inseridas no ambiente doméstico, pois, como é óbvio, estas também são mulheres. Como já mencionado anteriormente, meu feminismo não é de livros, mas de experiências. Aqui lhes dou uma para que as locações de Imo sejam explicadas de forma prática e direta: faço filmes de acordo com minha trajetória pessoal. Minha criação foi uma que me mostrou mulheres fortes no ambiente doméstico e rural, no qual cresci. As locações, assim, falam por mim e de dentro de mim, para que, transfiguradas em imagem possam vir a tocar outras mulheres, sem obrigação impreterível de que o faça. O ponto da experiência pessoal, a mim muito importante, vale também para as “vozes” do filme. Ainda que ciente das opressões de outros grupos sociais que não os meus, jamais tomaria para mim suas histórias, como já tanto é feito no cinema.
Enumerações e detalhes de produção à parte, da minha relação com outras cineastas que me serviram de inspiração não só na construção do filme, mas também no próprio exercer da profissão, relato agora o meu entendimento sobre “os espaços por onde o longa circula [que] são o interior de uma casa”. De Akerman e sua busca de exibir a rotina de uma mulher em cômodos do ambiente domiciliar: a cozinha, o quarto, uma sala, tentei, em aprendizado com ela, discutir e questionar nossas ações dentro destes espaços e rearranjar tais movimentos a partir de uma perspectiva pessoal. As mulheres de Imo rearranjam móveis, se lavam, se sentam em um sofá, vão ao banheiro e cutucam o nariz, – coisas que todas nós fazemos – enquanto pensamos. As personagens não estão ali em serviço de um olhar voyeur, mas de reflexão. O confinamento a um espaço quer, realmente, sublinhar em símbolo nossos confinamentos físicos, que existem, e devem ser observados com igual respeito e boa vontade quanto às liberdades que temos. As mulheres de “Imo” estão, de fato, em situação de clausura e é esta a declaração que o filme tenta fazer. Se podemos entender que existem mulheres livres, devemos também entender que existem aquelas que não são.
Partindo desta premissa, nos segmentos oníricos o exagero narrativo se faz presente para representar o que fariam ou queriam ter feito aquelas mulheres diante de opressões que ali rememoram, as situações se resolvem em movimentos catárticos possíveis e cabíveis. A personagem que decepa a mão que a incomoda não o faz com timidez – tira do caminho o obstáculo que a impede de seguir com suas ações. A personagem que envenena seus antagonistas com o próprio sangue dá de seu corpo para impedir que o mesmo aconteça a outra, imóvel. O sangue é de seu ventre. Levemos em consideração que o esforço de outrem pode, por vezes nos parecer pouco, mas é talvez imenso para quem o faz. Os gestos em Imo, de cinema físico, custaram muito não só a mim, que os escreveu, mas também às atrizes, que enquanto atuavam reconheciam ali situações de vivências próprias, incorporando à cena algo que perpassou todo o processo de produção do filme: uma grande carga e empenho emocional. São mulheres, somos mulheres.
Dentro da afirmação última está um conceito que por vezes tem sua importância menosprezada ou rebaixada: o óbvio. Em um filme que exige um esforço para que se retenha a atenção (devido à ausência de diálogos e presença de planos fixos), por que condenar uma mensagem clara? Por que condenar códigos e símbolos de fácil apreensão? A intenção de uma obra é que seja entendida, que possa falar com seu público e que dentro desta o público possa se reconhecer. É necessária uma séria reflexão quanto a este tema: negar o diálogo a troco da erudição funciona da mesma forma que alguns textos acadêmicos, que parecem mais excluir e vexar o leitor, do que estimular o pensamento e dividir colocações.
Neste tema, me chamou a atenção o parecer acerca da retórica anacrônica em que se acredita que o filme se insere, principalmente por este fator ter sido sublinhado de forma pejorativa dentro da análise do filme. Não afirmo isto, porém, sem conhecer a importância epistemológica do termo em questão, e claro, os perigos de presenciarmos vertentes políticas e sociais anacrônicas no contexto contemporâneo. É fundamental, porém, que possamos ser capazes de contemplar os possíveis alcances do dito anacronismo para uma narrativa feminista, assim como usá-lo em favor de nos esquivarmos de pretensas visões estereotipadas, que visam calcar na sociedade uma representatividade cristalizada e misógina, de continuidade e opressão no cotidiano feminino.
A crítica ligada à retórica anacrônica estaria relacionada ao fato de que, utilizando perguntas e cenários já desbravados pelo debate intelectual de gênero, debate este ocorrido nas academias ou meios midiáticos (logo, pelo visto, ultrapassados), o filme teria lançado respostas contemporâneas, sem diacronia. Estas respostas, então, seriam dadas a perguntas que já foram pertinentes em um certo momento, porém, como sugerido, o correto agora seria mudar o lugar da mulher, sem trazê-la no local onde é copiosamente representada, neste caso o ambiente doméstico.
Se, por um lado, as respostas contidas em Imo podem ser vistas como atuais, e a inserção em particular da figura feminina no espaço como ultrapassada, pessoalmente entendo que há uma continuidade de perguntas sobre o lugar comum da mulher, questões de suma importância para o debate teórico, que escala uma hierarquia temática bastante estruturada, rechaçando novos pensamentos sobre visões anteriormente expostas, por acreditarem criar automaticamente pensamentos e concepções que deveriam mudar progressivamente a mentalidade social. A meu ver, porém, este debate deve sempre ser revisitado, com novas soluções e indagações, especialmente em um cenário onde presenciamos a morte de treze mulheres por dia, e um terço delas, dentro das próprias casas, aproximadamente¹. A teoria pode ser ultrapassada, mas ainda precisamos rever, e muito, as questões intrínsecas às representações das mulheres em seus chamados “lugares comuns”, mesmo que os intelectuais considerem esse lugar comum como anacrônico. É preciso ressignificar estigmas ao nosso favor, e esta é a intenção de Imo.
Acredito, ainda, que os anacronismos gerados a partir das vertentes feministas estão diretamente ligados à importância da história social e cultural nos meios acadêmicos. Se, por um lado, é importante que entendamos que os valores e conceitos, concebidos em diferentes tempos, podem estagnar morais opressoras, por outro, conseguimos criar novos diálogos com o passado, advindos de noções entendidas em movimentos sociais contemporâneos. Quando nos atentamos às reações pessoais que dirigimos ao meio comum, é possível que nos esqueçamos do fato de que é através das nossas perguntas (que estão sempre em transformação), que conseguimos obter, ou até fragilizar, questões que antes não eram colocadas em pauta. A importância do anacronismo pode estar, então, associada às transformações no debate de gênero, o que lhe permite revisitar e expor temas urgentes para a sociedade, já que, com as respostas dos movimentos sociais às opressões cotidianas, conseguimos direcionar novas perguntas ao passado e ressignificar as respostas no presente.
Diante de uma memória coletiva que gera justificativas para exclusões sociais, garantindo a estabilidade de um sistema político que transforma ideologias hegemônicas em senso comum, nos deparamos com a oportunidade, enquanto comunicadoras e artistas, de subverter os chamados “lugares comuns” usando de suas representações para deles, então, tratar. Quando sentimos o desconforto da opressão, quando sentimos empatia social, quando presenciamos lutas que fogem à lógica normativa e excludente, ou quando, simplesmente, fazemos perguntas anacrônicas que nos permitem um novo olhar ao passado que desconstrua uma representação contínua de inferioridade a determinados grupos sociais, estamos dando voz. Estamos falando.
A lógica da mulher na sociedade perpassa diversas formas de justificar uma inferioridade inerente a seu sexo. Vemos isso constantemente no nosso cotidiano e já aderimos esse pensamento ao senso comum. É normal vermos imagens de mulheres nuas, mulheres sexualizadas, mulheres que estão condicionadas à sua beleza e nada além disso. Como muito vemos, são homens – que dominam o mercado, e por consequência, as narrativas – falando de mulheres, determinando, assim, como somos, como deveríamos ser e como eles gostariam que fôssemos. Ao lermos as entrelinhas dos filmes, procurando o posicionamento da mulher na narrativa, aprendemos mais sobre os homens do que sobre nós mesmas.
Ao colocar a mulher no lugar comum concedido a ela e, muitas vezes, um local constantemente associado aos cenários de opressão que vitimizam essa mulher, o resultado pode ser entendido como óbvio ou resiliente. A proposta de Imo, porém, é lançar um novo olhar a esses ambientes. Um olhar que retira a passividade da mulher no âmbito doméstico. Um olhar que, em primeiro lugar, retira a “passividade feminina” da mulher, acreditando que ela entende a visão do homem sobre ela e, ainda, usa essa imagem em seu benefício². A mulher é constantemente política. Em Imo ela se atreve a ser, em qualquer que seja o lugar.
Ainda no que tange a história da mulher na sociedade ocidental, vemos diversos autores, claro, homens, que descrevem o papel social da mulher e suas formas de se realizar como indivíduo social, burlando a marginalização cedida a ela. “Se há uma diferença entre os dois sexos é exatamente porque a mulher persegue e defende seus próprios interesses. Mas os interesses femininos foram fabricados pelas leis dos homens”³. Citações como essa fariam facilmente um retrato da sociedade contemporânea, mas descrevem a sociedade do século XVIII. Uma sociedade diferente da que nos é apresentada, mas que, longe de cooptar o anacronismo para defender uma história linear e contínua, permite que entendamos certos conceitos cunhados socialmente e que relegam apresentações que ultrapassam tradições e sentidos. Olhar para trás, com perguntas atuais, nos faz entender e sublinhar novos sentidos sociais.
É preciso, portanto, encarar frontalmente o passado para que seja possível escrutinar e ressignificar os moldes impostos pela sociedade e suas representações. É preciso pensar novamente em argumentos que se sustentaram durante séculos, para entender suas consequências nos desdobramentos de uma tradição social. A proposta de Imo, portanto, é de assumir transformações e se aproveitar de análises de revisitações que resultam em uma maturidade social representando apenas um ponto de vista, mas ainda sim, um ponto de vista de uma mulher diante de si.
Dito tudo isso, concluo que Imo poderia ser muitos filmes. Se encerra, no entanto, em seus 67 minutos, inalteráveis, mas se multiplica à luz das interpretações. Fico contente que diante desta obra tivemos a oportunidade de discutir um tema que nos é tão caro e por vezes sequer é levantado em meio à vasta produção cinematográfica que temos à nossa disposição atualmente. Me faz muito satisfeita compreender que através do filme pudemos, juntas, refletir e dividir nossas considerações sobre um cinema que trata de nós. Ao meu ver, o papel primeiro do filme está aqui cumprido. É evidente que o cinema e suas narrativas são passíveis de subjetividades e entendimentos variados, e que bom que este é o caso. Gostaria, neste impulso, de aproveitar o entusiasmo das colegas em revisar os filmes sob suas óticas feministas e convidá-las para que, juntas, possamos refletir acerca da representação feminina nos outros filmes da mostra para que, assim, enumeremos quais perguntas precisam realmente ser reformuladas com urgência. E vida longa ao franco diálogo que aqui pudemos ter.