Uma das imagens a que Enzo Traverso remete para pensar o que seria uma “melancolia de esquerda” é a metáfora do naufrágio, utilizada por Hans Blumenberg em um famoso ensaio. Blumenberg parte da descrição de um naufrágio no segundo livro do De Rerum Natura de Lucrécio, em que um espectador observa a tragédia, de longe, de certa forma reconfortado por poder contemplar em segurança os males de que fora poupado. Mas, a partir de uma citação dos Pensamentos de Pascal, Blumenberg transforma a metáfora para afirmar que já não há possibilidade de sermos meros espectadores, na medida em que estaríamos todos “embarcados”.1 Traverso abraça a argumentação de Blumenberg para pensar momentos de derrota da esquerda nos séculos XIX e XX, afirmando que:
O alívio daqueles que escaparam à catástrofe e a ela assistem de longe é um privilégio que não conhecemos; nós próprios naufragamos; temos que lutar para não nos afogar e reconstruir nosso barco afundado. Melancolia de esquerda é o que resta após o naufrágio; seu espírito molda os escritos de muitos de seus “sobreviventes”, redigidos de seus botes salva-vidas, depois da tempestade.2
Para Traverso, o valor epistêmico de tal metáfora reside na maneira pela qual ela permite ao náufrago “adotar por um momento – efêmero, mas crucial – uma visão distanciada da queda que sofreu”. O melancólico vencido tem a possibilidade de “contemplar a própria derrota de um ponto de vista externo” e dela extrair mesmo uma imagem, tal qual um fotógrafo. Essa visão melancólica, acredita Traverso, não necessariamente aprofunda “um apego patológico a um passado morto e enterrado”, tendo a potencialidade, inclusive, de ajudar “a superar o trauma sofrido.”3
Mas qual seria propriamente a relação entre a argumentação de Traverso e Seus Ossos e Seus Olhos (Caetano Gotardo, 2019)? Em seu segundo longa-metragem, Caetano Gotardo parece estar obcecado justamente por essa imagem que é extraída após (ou mesmo durante) o naufrágio – uma imagem especial, um tanto inacessível, que não é dada a ver diretamente, mas constantemente acessada através da palavra para que o espectador possa imaginá-la. Revisitemos uma das primeiras cenas do filme. Enquanto João (interpretado pelo próprio Gotardo) espera na sala a amiga Irene (Malu Galli) voltar com uma bebida da cozinha, ele executa uma performance corporal, em que experimenta diversas formas diferentes de se encostar no sofá, numa obstinada sucessão de poses frictivas. Na cena seguinte, é Irene quem busca um lugar para reconfortar sua cabeça – ora no colo, ora no ombro de João, numa coreografia de corpos que rima com a anterior (agora é o corpo do personagem de Gotardo o locus de certa fricção) – até que ela entra numa espécie de transe enquanto conta suas lembranças de um encontro derradeiro com Nicolás, um amor do passado. As memórias, então, vazam através das palavras. No longo solilóquio, a personagem de Galli se lembra de sentir a imagem no instante mesmo em que ela é formada na memória diante de um fracasso. Ela lamenta que não tenham se exaurido de tanto transar no hotel e, observando a imagem do amado caído de sono, pressente que será a última vez que o verá, guardando aquela imagem como uma fotografia mental. Em seguida, Irene lê um texto ficcional, uma carta que ela escreveu em primeira pessoa, como se fosse Nicolás, onde ele, no avião voltando para o Peru, sente saudades dela – uma espécie de elaboração melancólica depois do “naufrágio” daquela relação. Se aqui a escrita é a forma de elaboração escolhida para lidar com a melancolia, é o cinema que é reafirmado posteriormente enquanto tal quando, em um gesto metalinguístico, essa mesma cena será “retomada” em uma versão alternativa no meio do longa, dessa vez como um filme dentro do filme na sala de montagem (dessa vez, Gotardo e Galli dançam descontraidamente no silêncio, a música que estavam escutando parece suprimida, como num momento musical que falhou).
As imagens evocadas pelas palavras não estão dissociadas de intensas sensações corporais, como imersões ou verdadeiros afogamentos fora d’água, que fogem completamente ao controle dos personagens. O namorado de João, durante um ensaio na peça de teatro que está montando, reconta, também num grande solilóquio, a sensação de uma tremedeira descontrolada que experimentou ao ouvir a voz do amado lendo seus textos escritos, seu decorrente desejo incontrolável de estar junto com ele. Em outras cenas, o acúmulo dessas imagens que os personagens carregam dentro de si parece extravasar através das partituras corporais nas quais se engajam, notadamente o corpo do próprio Gotardo – seja na cena de sexo-fricção com o namorado na cama, seja a partitura solo perto do final do filme, espécie de briga com o próprio braço desenfreado à exaustão.
O ar está difícil de respirar na diegese de Seus Ossos e Seus Olhos, que parece nunca estar completamente no passado nem no presente, mas no interstício entre o naufrágio em si e o bote salva-vidas (a estrutura do filme, em sua dinâmica reiterativa e circular, em que as mesmas situações são reencenadas ad infinitum, sempre com mudanças de locações, atores, ou pequenas alterações no texto declamado, contribui para essa sensação). Para além dos dramas afetivos, a melancolia que atravessa os personagens se encontra indissociada de um contexto macropolítico – de uma angústia em relação ao esquecimento ou futura simplificação dos acontecimentos históricos que levaram à recente derrota momentânea da esquerda, que o filme faz questão de pontuar no solilóquio de um dos ensaios, que remete ao impeachment de Dilma Rousseff e que compara o momento atual com a ditadura civil-militar – e de reverberações micropolíticas – na medida em que o protagonista, na bolha de classe em que aparece de certa forma limitado, sente profunda dificuldade em lidar com as relações de classe e étnico-raciais com as quais é confrontado (principalmente na cena da perseguição pelo morador de rua, que propositalmente revela uma faceta patética da personagem). É nesse sentido que é possível falar de uma melancolia de esquerda no filme – ou antes, para evitar uma demasiada generalização da experiência de elaboração da derrota nas esquerdas contemporâneas, da melancolia de certa esquerda branca de classe média/alta de São Paulo.
Voltando à discussão de Enzo Traverso, poderia-se acusar o filme de melancólico no sentido freudiano, em que, diferente da pessoa em luto que por fim supera sua tristeza, a melancolia seria “um ‘luto patológico’ não acabado e impossível”, em que o melancólico se mantém “narcisisticamente unido ao objeto amado e perdido”.4 Mas Traverso atenta que, se abandonamos o modelo freudiano, despatologizando a melancolia, esta “poderia ser vista como um processo de possibilidades alternativas, entre as quais uma renovada capacidade de ação, um processo pelo qual, observa Judith Butler, o sujeito experimenta ‘uma retirada ou retração do discurso que faz com que o discurso seja possível’”.5 Demandar do filme de Gotardo apontamentos de novos caminhos para esquerda seria tomar o filme pelo que ele não é. O que Seus Ossos e Seus Olhos se propõe é um recolhimento dos objetos e das imagens de um passado enquanto etapa necessária de um procedimento de elaboração do luto (seja individual, seja coletivo). Tal processo não está alheio a certas limitações de classe (as quais o filme assume). Mas o longa parece apostar nesse gesto como algo que pode permitir novamente a ação desses personagens no mundo presente, transformando em algum momento esse imobilismo momentâneo (e tal reconexão com o mundo não tem como se concretizar na imagem, visto que ela ainda está por ser inventada). É a esse rigoroso exercício de “metabolismo da derrota” que o filme se entrega, até seu completo esgotamento.