Em No coração do mundo (Gabriel Martins, Maurílio Martins, 2019), vemos um longo plano médio de uma imagem de algum lugar montanhoso, com vegetação típica de regiões frias. A imobilidade da árvores leva-nos a crer que se trata da imagem de um quadro. Aos poucos, o plano se abre e temos a certeza de que se trata de um quadro. A atmosfera de um certo lugar nórdico, aventureiro e distante nele presentes contrasta com os objetos de escola colocados em frente à imagem, a fim de que as crianças da instituição em que Selma (Grace Passô) e Marquinho (Leo Pyrata), personagens centrais do longa-metragem, estão trabalhando para fotografar os alunos como forma de recordação do tempo escolar. Nessa cena, vemos Selma através da imagem da câmera, quando ela declara a busca pelo lugar em que esteja “no coração do mundo”, o qual pode ser entendido como um espaço em que ela se sinta, de forma existencial, pertencente a ele. O uso da câmera e do cenário criado para a fotografia das crianças, o qual é muito distante da realidade diária vivenciada por esses garotos no bairro Laguna, aponta para a potência da imagem em recriar mundos, especialmente por meio da performance. No caso de Selma, falar para a câmera permite um instante poético performático que rompe com as agruras vividas diariamente – a vida dupla entre o crime o trabalho, a criação de um filho sem a figura paterna, dentre outros elementos -, ao mesmo tempo em que é um instrumento para que se reforce a crença no sonho de uma vida melhor alhures. No caso das crianças, a imagem criada para a recordação do presente escolar no futuro é fabricada a partir de uma paisagem almejada em um futuro outro, que não é o da dificuldade da vida e da pobreza no bairro, que se revela, por exemplo, na falta de pagamento da foto impressa por um dos pais. Dessa maneira, construir uma imagem é um modo de resistir ao presente e manter vivo o sonho do futuro.
A evidência da criação cinematográfica é ressaltada por um detalhe sutil da direção de arte dessa cena: a escola em questão tem o nome do diretor Carlos Reichenbach. A homenagem póstuma a um dos diretores mais importantes da história do cinema brasileiro, responsável pela direção de obras na Boca do Lixo e associadas ao cinema marginal, remete também a um processo criativo em que, em diversos momentos, o uso de determinado gênero do cinema era um mecanismo para subvertê-lo. Podemos perceber isso, por exemplo, em O império do desejo (1981), um filme que, se, em um olhar rápido, poderia ser considerado apenas uma história de sexo, é uma obra de resistência e crítica à ditadura militar vigente no país. Dessa maneira, a menção à Reichenbach auxilia na delimitação de uma situação inusitada, em que aquilo que seria mais dócil e pueril, a tomada de retratos de crianças na escola é, em verdade, realizada por duas pessoas que estão envolvidas com o crime.
O lugar da possibilidade da imagem e da perfomance na vida comum também transparece em um momento em que a mãe de Marquinho e outros vizinhos aparecem dentro da casa do protagonista entoando cantos de louvor. O personagem explica à namorada Ana (Kelly Criffer), que não se trata da realização de um culto, mas de uma prática denominada “célula”. Nesse momento, vemos os personagens de frente, em um ritual em que a entrega à reza é acompanhada pela simplicidade do quintal, que remete à vida e aos dilemas vivenciados no bairro. No entanto, o longa-metragem revela que os destinos e objetivos da fé são complexos. Uma das senhoras idosas que está orando é a mãe de um garoto assassinado por engano no meio da praça. Em consequência desse acontecimento, essa senhora desenvolve uma relação com o luto expressa por meio de imagens e objetos. Isso transparece quando, logo após a morte, a senhora vai a um pequeno e simples armazém e pede a produção de uma camiseta com a fotografia do filho morto, que é inserida por meio de silk no centro da camiseta, circundada pela frase “saudades eternas”. Assim, se, no caso de Selma e das crianças da escola, a imagem permite que se almeje o futuro, na situação dessa mãe, a imagem é o instrumento para que o passado não desapareça. Em outra cena, essa mesma senhora aparece carregando uma pequena caixinha, parecida com um porta-joias, enquanto caminha no meio da rua. De repente, ela tira um revólver dali e, como o filme revela posteriormente, assassina aquele responsável pela morte do filho. Tal atitude contrasta com o estereótipo de uma devota cristã e levanta questões acerca dos limites entre o bem e o mal, o certo e o errado. Esses questionamentos acompanham todo o longa-metragem, tendo em vista que, se os personagens principais se envolvem com o crime, eles também são apresentados como pessoas comuns, que amam, que cuidam dos seus familiares, que almejam um futuro em que não seja essa a forma do seu sustento e de sobrevivência.
A tensão entre os modos comuns da vida, as parcas oportunidades e o sonho com um futuro diferente daquele vivenciado pelo passado dos seus familiares atravessa, também, outras obras dos diretores de No coração do mundo. No curta-metragem Nada (Gabriel Martins, 2016), por exemplo, a protagonista Bia afirma, ao ser questionada acerca de sua opção profissional pelos pais, que desejaria fazer “nada”. Nesse filme, a declaração da suposta nulidade é um modo de dizer de um desejo diverso daquele esperado dos jovens que prestam vestibular, tendo em vista que a garota gosta de cantar rap e tem vontade de viajar e viver experiências diversas em outros lugares. Essa pulsão entra em atrito com o modo de viver dos pais, cujo cotidiano atravessado pelas questões financeiras sempre teve a necessidade de pagar as contas em dia e comprar itens básicos como objetivos primordiais. Dessa maneira, assim como em No coração do mundo, o sonho do mundo outro parece ser possível apenas a partir do rompimento e da transformação radical do cotidiano de agora.
É possível estabelecer algumas semelhanças e diferenças entre No coração do mundo e a última obra dirigida por André Novais Oliveira, diretor assistente do filme dos irmãos Martins e diretor de Temporada (2018). Nesse sentido, ambos os filmes se situam em regiões da periferia de Contagem e acompanham o cotidiano de pessoas comuns, cuja relação estabelecida com o trabalho é essencial nas alterações da vida, embora atue de formas diferentes nos dois filmes. Se, em Temporada, o emprego temporário de Juliana no combate a zoonoses é um meio que implica em diversas mudanças afetivas – o estabelecimento de novas amizades, um novo relacionamento amoroso, a mudança de uma casa, dentre outros elementos – em No coração do mundo o universo do trabalho e a exploração nele presentes parecem se colocar como um desafio a ser superado para que o amor prevaleça. Quando Marquinho e Selma recebem o valor correspondente às fotos realizadas na escola, aquele personagem pergunta a ela se não seria possível ganhar mais pelo trabalho recebido. A negativa da resposta, proferida por Selma, e o discurso que a vida é assim mesmo, que o alcance da prosperidade é algo lento, parece suprimir o desejo e a possibilidade de transformação da vida sem a subsistência através do crime. O trabalho comum parece estar em direção oposta à possibilidade do desejo: ele não remunera o suficiente, não possibilita a realização de viagens, como pontua Rose (Bárbara Colen), amiga de Ana, que trabalha no salão de beleza. Na personagem de Rose, transparece também a escolha de uma carga horária excessiva, para além do emprego regular, como motorista de Uber, o que, se possibilitaria maior remuneração, é apontado pelo amante Miro como um empecilho à vivência do relacionamento de ambos, tendo em vista a diminuição do tempo para encontros. Uma das exceções a esse lugar ocupado pelo trabalho no filme é a relação estabelecida entre Ana e a trocadora do ônibus da frota dela. Isso transparece nas conversas que elas têm durante o expediente, em que brincam sobre a possibilidade de serem vizinhas de lotes localizados em regiões afastadas. Entretanto, essa harmonia é tensionada pela própria realidade, quando uma passageira agride Ana fisicamente em um momento de compra de passagem no ônibus. A partir daí, a personagem questiona a rotina da profissão e, em um gesto simbólico em que passa a ser mostrada apenas como passageira do ônibus, começa a estabelecer uma relação com o trabalho semelhante àquela vivenciada pelos demais personagens.
O lugar possível à esperança e à transformação do presente também são distintos em Temporada e No coração do mundo. No longa de Novais, os obstáculos e as dificuldades cotidianas parecem ser possíveis de serem superados – ou, senão, percebidos de uma maneira outra, mais leves – a partir dos laços de amizade e da possibilidade do encontro com a beleza onde ela não era esperada. Quando Juliana encontra o colega de serviço, Hélio, sentado à beira de um córrego bastante poluído e ele afirma que, apesar do odor, está ali admirando a paisagem, é a busca pelo belo no mais inusitado que permite manter o bem-estar na vida e o desejo em alterá-la. De forma distinta, em No coração do mundo, as dificuldades cotidianas parecem estabelecer um relação entre o lugar e os moradores dali que é conflituosa, atravessada pelos problemas por eles enfrentados. Nesse contexto, salienta-se a cena em que Ana olha da laje do apartamento de Marquinho e diz que aquele bairro tinha uma visão feia, que era muito pequeno para ela, logo após ter sido humilhada no serviço como trocadora e ter tomado a decisão de abandoná-lo. Atravessado por inúmeras faltas e angústias, esses personagens projetam essas dores para a relação com o bairro, a qual, em outros momentos, também é vivenciada de maneira afetuosa. Esse conflito é construído por meio do emprego de uma linguagem que se aproxima ao gênero western, que, muitas vezes, explora conflitos relacionados à terra e esteve presente, por exemplo, em outras obras dos diretores, como Dona Sônia Pediu uma Arma para seu Vizinho Alcides (Gabriel Martins, 2011) e Constelações (Maurílio Martins, 2016). A ambiguidade e os conflitos existentes no cotidiano dos personagens é evidente desde a cena de abertura do filme, quando Marquinho recebe uma mensagem de aniversário por carro de som no meio da rua, mas, no instante em que é propalada a declaração, uma bala mata um garoto. Assim, o amor, a felicidade e o afeto parecem sempre serem oprimidos pela dinâmica do crime e pela necessidade da sobrevivência.