Bacurau: Guerra Infinita (ou fantasias de vingança num nordestern sci-fi contemporâneo)

26 de agosto de 2019. Fim de uma das sessões de pré-estreia de Bacurau (2019), no cinema Odeon (RJ). A plateia lotada aplaude de pé, entusiasticamente, os cineastas Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que estão presentes para um rápido bate-papo. Um estudante de cinema é o primeiro a pegar o microfone. Um tanto emocionado, ele não consegue elaborar exatamente uma pergunta, apenas expressa concordância com o que, aparentemente, havia entendido da “mensagem” do filme: “Eu acho que vivemos numa distopia, e… eu não sei, eu não posso falar por vocês, não posso falar por ninguém, mas… uma coisa que me tocou… é que eu sou fraco, você é fraco, todos nós somos fracos, mas juntos somos fortes… e numa distopia, tudo tende a piorar, e temos… realmente… que matar eles”. O estudante estava se referindo aos vilões do filme, que são sumariamente aniquilados pela ação conjunta e coordenada dos cidadãos do vilarejo ameaçado, ao mesmo tempo em que fazia um paralelo com o contexto político atual no Brasil, talvez buscando no filme uma pista de formas de resistência para aplicar na conjuntura de ascensão reacionária. Juliano Dornelles é rápido em responder, ponderando: “Se for matar, mata aqui, no cinema”, apontando para a enorme tela branca atrás de si. Sua resposta, a meu ver, buscava dissipar uma leitura “ao pé da letra” da narrativa do longa, que não se propõe enquanto uma propaganda armamentista, mas antes enquanto aposta na força dos códigos do cinema de gênero (notadamente, o western – ou seria o nordestern?) para provocar, através de um banho de sangue hiperbólico, a reflexão sobre os desafios políticos da contemporaneidade. Tal cena extra-fílmica não deixa de ser sintomática do lugar incômodo que Bacurau nos coloca enquanto espectadores.

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Cabeças rolam e miolos explodem quando a população de Bacurau começa a revidar os ataques dos atiradores de elite do “safari humano”, numa batalha sangrenta pela sobrevivência que é um ponto de virada da narrativa. Ao encenar a vingança surpreendentemente bem sucedida dos oprimidos contra seus opressores genocidas, Bacurau convida a uma espécie de deleite visual na extrema violência, que remete, inevitavelmente, ao cinema de Quentin Tarantino, tanto pelo grafismo excessivo quanto pelas estratégias de engajamento espectatorial articuladas pelo longa.

Relembremos a cena mais famosa de Bastardos Inglórios (2009): um cinema repleto de nazistas assistindo a “Orgulho da Nação”, um filme-dentro-do-filme no qual Fredrick Zoller (Daniel Brühl), um soldado alemão interpretando a si mesmo, extermina dezenas de militares americanos. Na plateia, figuras como Hitler e Goebbels, entre outras lideranças nazistas, aplaudem e riem grotescamente diante do violento espetáculo. De repente, a exibição é interrompida e substituída por um filme-dentro-do-filme-dentro-do-filme em que um close-up de Shosanna (Mélanie Laurent) na tela anuncia: “Eu tenho uma mensagem para a Alemanha. Vocês todos vão morrer. E eu quero que olhem bem o rosto da judia que vai matá-los!” Shosanna já está morta, mas seu plano de vingança contra o regime que exterminara sua família prossegue pelas mãos de seu companheiro Marcel (Jacky Ido), que ateia fogo em mais de 350 rolos de filme de nitrato altamente inflamáveis. As chamas rapidamente consomem por completo a sala de cinema. Em paralelo, alguns dos Bastardos ainda conseguem metralhar Hitler, Goebbels e dezenas de outros nazistas, em câmera lenta. Neste momento somos nós, espectadores na plateia do cinema, que somos convidados a vibrar, rir e comemorar a morte dos maiores criminosos da humanidade, nessa versão alternativa do desfecho da II Guerra Mundial. Mas um desconforto proposital se instala: não estaríamos nos comportando justamente tal qual os nazistas diante do espetáculo violento ao qual assistiam?

Para Andrew Chrystall, o metacinema de Tarantino monta um jogo de espelhos espectatorial, de forma a satirizar, por analogia, a resposta do público ao seu próprio filme: “Tarantino, ao proporcionar à platéia o choque do (auto)reconhecimento, expõe nossos crimes – nosso gozo e, por extensão, nossa cumplicidade na coprodução de violência na tela e nossa disposição a sermos manipulados pelo diretor para uma posição que é paralela à do público nazista.”1 Em vez de localizar o nazismo apenas como uma malignidade que vem de fora, de um Outro, para Tarantino o inimigo parece estar em cada um de nós de forma latente. Através da duplicação e/ou repetição de táticas e técnicas usadas para gerar efeitos “fascistas”, o cineasta não estaria, evidentemente, afirmando que seus espectadores seriam nazistas, mas oferecendo-os (potencialmente) uma oportunidade de olharem para dentro de si mesmos, uma espécie de didática tarantiniana cujo objetivo seria, em última instância, “produzir um público ‘melhorado’”, no sentido de “mais cauteloso em termos de sua própria cumplicidade enquanto público”.2

A cena final de Bastardos Inglórios reitera tal jogo de analogias de maneira literal. Vemos o tenente americano Aldo Raine (Brad Pitt) marcando a suástica na testa do coronel nazista Hans Landa (Christoph Waltz), através de um plano-ponto-de-vista em que o “nosso” olhar, propositalmente, se confunde com o do maquiavélico vilão. Ainda nas palavras de Chrystall, nessa cena Tarantino parece estar usando o cinema “como uma faca para vingativamente marcar o foco da nossa atenção e/ou memória com o sinal da suástica pelos crimes que ‘nós’ cometemos – tendo agido como os nazistas do filme – utilizando a luz projetada do filme tal qual Raine usou sua faca para marcar Landa”.3

No plano final de Bastardos Inglórios (2009), do ponto de vista do coronel nazista Landa (Christoph Waltz), vemos Raine (Brad Pitt) admirar a suástica que marcara na testa do vilão

Tarantino estaria para Raine assim como o espectador estaria para Landa, mas o diretor também parece subentender uma outra analogia intrínseca entre violência e o próprio ato de filmar: a violência que aparece na tela não seria equivalente a uma “violência real”, mas o cinema poderia ser considerado análogo a uma “arma” uma vez que “inscreve a pessoa ou pessoa simbólica como imagem, marcando irrevogavelmente a mente consciente e/ou subconsciente tal qual uma faca, bala ou chicote que marca o corpo”.4 A ênfase na crítica à violência que vemos encenada seria “errar o alvo completamente”, na medida em que, para Chrystall, “é o cinema em si que se mostra ‘violento’ (no sentido técnico de transgredir um limite e marcar mente-corpo), e essa ‘violência’ opera independentemente de qualquer conteúdo”.5

Ora, não é precisamente essa dinâmica de analogia que parece ser evocada por Bacurau? Kate (Alli Willow) e Willy (Chris Doubek), fortemente armados, preparam uma emboscada para Damiano (Carlos Francisco) que, nu e aparentemente indefeso, rega as plantas na estufa de seu jardim. Assim que ele entra no casebre, a dupla de atiradores estrangeiros prepara o ataque… mas ambos são surpreendidos pelo contra-ataque do pacato camponês, que explode a cabeça de Willy com um tiro certeiro de sua espingarda. Essa é a primeira das inúmeras cenas que irão abusar, de maneira tarantiniana, da maquiagem de efeitos especiais. A reverberação foi imediata na plateia daquela sessão no Odeon, que aplaudiu, ensandecida.6 Em seguida, é a vez de Kate ser alvejada por Deisy (Ingrid Trigueiro), que também estava escondida, nua, dentro de casa. Novos aplausos fervorosos. Enquanto ela agoniza no chão, vemos, do ponto-de-vista dos cidadãos de Bacurau, a franco-americana pedir ajuda para aqueles que acabara de tentar assassinar, perdendo sangue por uma de suas mãos completamente dilacerada. Sua tentativa de utilizar uma espécie de tradutor simultâneo futurístico para que seu pedido de socorro seja compreendido é, no mínimo, patética – e provocou risadas entre aqueles espectadores. O casal não termina de matá-la: seu objetivo é estritamente a sobrevivência e autodefesa, afinal não foram eles que iniciaram a violência perpetrada insanamente contra si (inclusive, tentam socorrê-la, mas ela não resiste aos ferimentos). Damiano e Deisy parecem mais preocupados em indagá-la, perplexos, quais seriam suas motivações para tamanha barbárie (“Por que você está fazendo isso?”), sem obterem uma resposta satisfatória – e, neste momento, vemos ambos em contra-plongée, nosso olhar coincidindo com o ponto de vista da vilã. Se neste momento, por analogia, os diretores Mendonça Filho/Dornelles estão para Damiano/Deisy assim como nós (público) estamos para a assassina Kate, a devolução do olhar dos personagens diretamente para nós coloca em xeque nosso lugar ambíguo de espectador: nos sentimos vingados pelo exitoso contra-ataque dos personagens, ao mesmo tempo em que gozamos da “extrema violência como efeito cômico” e da “tortura como entretenimento”.7

Em Bacurau (2019), Deisy (Ingrid Trigueiro) e Damiano (Carlos Francisco) encaram diretamente Kate (Alli Willow) e os espectadores: “Você quer viver ou morrer?”

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O final de Bastardos Inglórios só é surpreendente porque sabemos de antemão que Hitler e seus asseclas não pereceram nas chamas de um teatro parisiense. A materialização fílmica de uma vingança judaica não é por nós esperada como desfecho de um filme que, até aquele momento, parece preocupado com uma convincente reconstituição histórica através de seus cenários, roupas e adereços. É precisamente esse deslocamento para uma história alterada ou realidade alternativa que permite que o clímax do filme, a fantasia de vingança em si, seja bem sucedida.8 Adilifu Nama afirma que o longa de Tarantino seria “mais que a-histórico”, na medida em que “apresenta algo mais semelhante a um mundo alternativo que existe em um universo paralelo”, e por isso mesmo considera que o gênero cinematográfico que melhor descreve o filme seria “a fantasia de ficção científica”:9

Bastardos Inglórios não é uma tentativa de narrativa histórica, uma vez que o filme existe claramente além do limite da plausibilidade. Em vez disso, Bastardos Inglórios explora completamente a considerável licença poética permitida na ficção científica para (re)apresentar várias figuras históricas e eventos históricos; e, como praticamente toda ficção científica, seja boa, ruim ou medíocre, o filme se entrega à retórica e às imagens metafóricas para examinar algum dilema ético atual por meio da alegoria social ou política. Bastardos Inglórios é menos sobre a II Guerra Mundial e mais sobre desconstruir criticamente a patologia política da violência racial.10

Na ficção científica ou mesmo em gêneros relacionados, como o filme de super-herói, “a história pode ser fluida, especulativa e flexível”,11 e eventos históricos podem receber desenlaces inusitados em universos paralelos ou divergentes, que não alteram a linha do tempo de outras narrativas – para ficar apenas em um exemplo, a fictícia atuação decisiva dos mutantes na resolução da Crise dos Mísseis entre Cuba e Estados Unidos, imaginada em X-Men: Primeira Classe (Matthew Vaughn, 2011). Numa aproximação um tanto inusitada, é possível dizer que a trama de Vingadores: Guerra Infinita (Anthony Russo, Joe Russo, 2018) e Bacurau é bastante parecida. Em linhas gerais: um grupo de personagens, cada um utilizando suas melhores habilidades, se juntam para derrotar um inimigo estrangeiro em comum que, se não for impedido a tempo, dizimará boa parte da população. E se os personagens de Bacurau não precisam voltar no tempo para eliminar seus algozes, talvez seja porque a temporalidade com a qual o longa está lidando é mais complexa que sua aparente linearidade. É como o drone/disco voador rasgando o céu de tempos em tempos: uma tecnologia já existente, que finge ser algo futurista ao mesmo tempo em que se disfarça de iconografia sci-fi retrô, criando uma reiterada indefinição temporal que irradia por todos os lados. Nesse sentido, a realidade alternativa imaginada pelo filme, localizada “daqui a alguns anos”, parece que, estranhamente, já aconteceu: um futuro distópico, dominado por ideias reacionárias que estão em plena ascensão atualmente, como se fosse um presente hiperbólico, mas que também aponta para um passado remoto, cujas feridas ainda se encontram abertas em nossa sociedade.

Se revisitar a história colonial e sua ideologia é uma tendência da ficção científica,12 Bacurau faz precisamente isso ao reencenar o encontro violento entre os colonizadores estrangeiros e os povos originários em terras brasileiras em forma de alegoria deslocada no tempo – a nudez de Damiano e Deisy e o uso dos psicotrópicos na forma de sementes corroboram essa leitura, enquanto o triunfo do casal sobre os genocidas adquire status de reparação histórica. Aqui vale uma aproximação com um filme como Distrito 9 (Neill Blomkamp, 2009), no qual a chegada da nave alienígena em Joanesburgo se dá no passado em vez de acontecer em um futuro próximo, enfatizando a analogia entre os extraterrestres guetificados e os negros sul-africanos segregados durante o Apartheid. Tanto Distrito 9 quanto Bacurau narram, com a ajuda de seus objetos voadores não-identificados, “não uma fantasia do que poderia acontecer”, mas “a história como ela já aconteceu”.13

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Apesar de bastante diferentes, Bastardos Inglórios, Distrito 9 e Avatar, de James Cameron são filmes que culminam, em algum momento, em uma “fantasia de vingança racializada, espetacularmente violenta”,14 direcionada a homens brancos, hiper-masculinizados e em posições de poder,15 em que representantes dos grupos racializados passam a exercer uma “resistência ativa e violenta” frente às estruturas de poder político e econômico pelas quais são explorados, excluídos e oprimidos. Assim, segundo John Rieder, esses três longas lançados em 2009 encenam, cada um a seu modo, “sinédoques convincentes das catástrofes históricas mundiais do racismo moderno”, ou seja, narrativas alegóricas que remetem a “exemplos notórios de injustiça racial” – respectivamente, o anti-semitismo nazista, o apartheid sul-africano e o extrativismo colonialista.16 Tais “fantasias de vingança”, para o autor, devem ser levadas a sério, na medida em que “o padrão de violência nessas fantasias não está direcionado somente aos seus alvos imediatos” (os “soldados psicopatas”), mas “se estende claramente para além deles, para as estruturas institucionais de poder que comandam, apoiam e legitimam suas ações.” Tais filmes aludem “à questão social fundamental da distribuição do direito à violência”,17 operando um deslocamento no qual tal violência é exercida contra aqueles que a perpetravam, uma espécie de “vingança-como-justiça-política”.18

Se, por um lado, o autor despreza possíveis críticas rasas a esses filmes – que os leem enquanto versões contemporâneas das “brigas de gladiadores”, cujos diretores se aproveitariam de uma suposta sede “natural” dos seres humanos por espetáculos violentos –, por outro, ele elabora sua própria crítica à efetividade do potencial transgressor dos mesmos, uma espécie de “contenção da utopia via reificação”:

No próprio ato de suscitar e atrair os desejos libertadores da violência popular e as demandas agressivas pelo fim da injustiça racial inerente ao seu conteúdo, os filmes encontrarão maneiras de desviar e redirecionar esses desejos. Isso quer dizer que os filmes continuam sendo artefatos culturais de massa da indústria do entretenimento, distribuídos em massa, que recorrem à energia do bode expiatório vingativo e racializado, não para atiçar o fogo da rebelião ou despertar a consciência política da platéia de seus devaneios, mas sim para lucrar com esses devaneios.19

A crítica do autor recai principalmente ao “capitalismo verde” e neocolonial de Avatar, enquanto o doloroso “tornar-se alienígena” de Distrito 9 aparece como contraponto.20 O exemplo de Bastardos talvez seja um pouco mais ambíguo que os anteriores, não apenas porque sua complexa estratégia autorreflexiva “nega seu investimento no racismo bruto e na violência gráfica” que o filme, no entanto, “continua a explorar descaradamente”,21 mas também porque o filme recusa veementemente qualquer redenção possível para os nazistas/racistas – as suásticas marcadas em suas testas seriam uma forma de garantir que não passassem despercebidos depois da guerra, para que seus crimes jamais fossem esquecidos.22

No “multiverso” de Tarantino, a II Guerra Mundial é recontada através do tratamento caricatural ou mesmo cartunesco dos personagens – particularmente dos patéticos nazistas – para chamar a atenção, de maneira ostensiva, para a loucura destrutiva e patológica do racismo.23 Uma estratégia similar é esboçada em Bacurau. Os diálogos pouco fluidos ou um tanto engessados do filme não configuram falhas técnicas, mas uma forma de encenação deliberadamente esquemática, não somente para salientar o absurdo de toda aquela situação, reiterando uma dimensão fantástica que foge do realismo, mas também para permitir comentários políticos os mais explícitos possíveis, em que os vilões são corporificações arquetípicas de certos discursos. Uma cena exemplar é a longa conversa em que Forasteira (Karine Teles) e Forasteiro (Antonio Saboia), auxiliares dos estrangeiros na chacina, afirmam que se sentem superiores aos nordestinos por serem “do Sul”. Esses brasileiros brancos são prontamente esnobados pelos vilões, que acabam por aniquilá-los – eles não são, no fim das contas, brancos “o suficiente” para serem poupados pelos europeus e americanos. No caso desta cena, os diretores estão lidando, evidentemente, com a polarização sudeste-nordeste, essa espécie de “xenofobia” dentro do próprio país e que é senso comum nos discursos de ódio da direita no sul-sudeste. A morte da dupla não deixa de ser irônica, uma espécie de “justiça” pela traição de seus compatriotas que, ao mesmo tempo, critica essa concepção de pensamento entreguista, cujos defensores estariam fadados ao descarte pelos mais poderosos.

Os atiradores de elite estrangeiros também são eliminados, um a um, numa “pedagogia” próxima aos filmes de horror, ou seja, morrendo exemplarmente enquanto “castigo” pelos seus crimes: Julia (Julia Marie Peterson), por exemplo, é executada antes de invadir a escola onde parte da população se escondia em barricada – sua morte é a garantia de sobrevivência tanto daqueles homens, mulheres e crianças, quanto da instituição de ensino em si. Outro colaborador, o demagogo e corrupto prefeito da cidade, Tony Jr. (Thardelly Lima), é humilhado publicamente: despido, amarrado e encapuzado, aparentemente deixado para morrer vagando nas costas de um burro pelo sertão.24

A personificação máxima do mal fica a cargo do líder do grupo, Michael (Udo Kier). Quando um dos atiradores insinua que ele é neonazista (ao chamá-lo de “alemão”), Michael o repreende de uma maneira debochada ao mesmo tempo que quase letal, lembrando a perversidade dissimulada de Landa em Bastardos. É apenas o prenúncio do que ocorrerá de fato no final do filme – uma vez que o plano desanda, e o contra-ataque da cidade é exitoso, o que resta ao sniper é dizimar, de longe, sua própria equipe, regozijando em suas mortes com seus tiros de precisão antes de ser capturado.25 Ele é aprisionado, por fim, numa espécie de cela subterrânea que Lunga (Silvero Pereira) desenterrara no meio da cidade – é bastante significativo que Lunga, um personagem de gênero não-binário, esteja na linha de frente da derrota de seu hiper-masculinizado algoz. Conforme Michael é enterrado vivo, aquela mesma estrutura de plano-ponto-de-vista é evocada, como se fôssemos enterrados com ele: seria a tentativa do filme de enterrar essa violência colonial fundadora que espreita dentro de cada um de nós – e que se expressa atualmente através do bolsonarismo?

O hiper-masculinizado genocida alemão Michael (Udo Kier), em Bacurau (2019)

Afirmar que Mendonça Filho e Dornelles estejam mexendo com o “mal” que existe em cada um de nós não é o mesmo que dizer que o filme seja adepto de um bolsonarismo às avessas – leitura sustentada, por exemplo, por Eduardo Escorel quando afirma que o longa faz uma exaltação da “parceria entre povo desassistido e os bandidos” que poderia “estimular vários tipos de ações violentas”, equiparando o gesto do filme em si ao apoio perpetrado pela própria família Bolsonaro a milicianos.26 Tarantino também foi alvo de críticas parecidas por Bastardos Inglórios, acusado de equiparar os judeus aos nazistas ao encenar sua hipotética vingança em vez de representá-los como vítimas passivas que apenas guardam a memória do Holocausto a posteriori, para que não volte a acontecer. Mas Charles Taylor nos relembra não só que exemplos verídicos de vingança judaica não são escassos, mas também que nem por isso estes sujeitos se tornaram “iguais” aos seus algozes, simplesmente porque existe uma diferença entre a violência que provém de uma ideologia racista e de ataque à diversidade humana e a forma como as pessoas respondem a essa violência enquanto ela está ocorrendo contra elas, o que é completamente diferente de um gesto memorialístico pacífico posterior. E Taylor prossegue:

Os críticos que acreditam que mesmo as fantasias de vingança reduzem aqueles que se satisfazem com elas a bárbaros estão mantendo as rédeas bem curtas, especialmente quando a fantasia não permite que o público finja que existe uma maneira clara de definir o tipo de justiça que os crimes nazistas mereceriam. A arte não deveria lidar somente com sentimentos refinados e nobres – e Bastardos Inglórios é uma obra de arte. Por trás da desaprovação moral do filme está a confusão da arte com a virtude cívica, a crença de que a arte deve ser enobrecedora e digna, e o medo tolo de que ceder ao nosso gosto pela sede de sangue nos torna depravados.27

Se, por um lado, Bacurau tem sido experimentado como reação alegórica frente à opressão bolsonarista, com ênfase em suas sequências de contra-violência e a catarse coletiva das plateias nos cinemas (explorada pela própria campanha de marketing do filme),28 por outro, reduzí-lo a uma simples “celebração da barbárie” é, no mínimo, insuficiente. Seria também alegar que o que uma pessoa vê na tela e o que ela escolhe de fato fazer na realidade são coisas coincidentes, o que não procede.29

A violência em Bacurau trata de outra coisa, que leituras ao pé da letra perdem de vista. Arriscaria dizer que não se trata de encenar uma violência simplesmente reativa. Bacurau não é uma “prescrição médica”, seguindo o “diagnóstico” político elaborado pelos cineastas a partir dos “sintomas” que aparecem na contemporaneidade, nem mesmo um “manual de instruções” a ser mimetizado pela militância de esquerda na vida real. Trata-se, antes, de dar a ver, através das imagens, uma violência primeira ou fundacional. Na leitura de Michel Foucault, “a política é a guerra continuada por outros meios”,30 o que significa dizer que o poder político funcionaria de forma a “reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e de outros.”31 A “paz” não seria alcançada através da lei, uma vez que a lei havia brotado da própria guerra, a qual continuaria “a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regulares”.32 Diante da falsa “pacificação” através da qual a política teria mascarado essa problemática primeira, Foucault conclama que redescubramos “o passado esquecido das lutas reais, das vitórias efetivas, das derrotas que talvez tenham sido disfarçadas, mas que continuam profundamente inseridas.”33

Em Bacurau, as lutas que estiveram presentes desde sempre, constitutivas mesmo daquele tecido social, vêm à tona da maneira mais violenta possível. Uma guerra permanente que, se antes parecia de certa forma diluída naquele cotidiano – por exemplo, nos vídeos dos assassinatos de Pacote (Thomas Aquino) assistidos nas telas dos celulares ou no telão em praça pública –, de repente se (re)corporifica diante do desafio da luta pela sobrevivência daquela comunidade em uma situação-limite. Uma (re)corporificação brutal ou mesmo irracional, afundanda entre paixões e raivas desnudadas em plena luz do dia, de maneira sangrenta e incômoda, que nenhuma abordagem “polida” ou demasiado “racional” conseguiria dar conta. E quando Bacurau mostra os cidadãos da cidade fotografando e filmando, eufóricos, as cabeças dos vilões decaptadas em praça pública, o filme não deixa de nos confrontar com a nossa própria participação na produção e disseminação dessas imagens violentas (é o mais próximo que o filme chega de uma cena metalinguística que encena diretamente uma situação espectatorial coletiva, tal qual a sequência dentro do cinema em Bastardos).

A forte impressão que essas imagens brutais causam concretizam o que poderíamos chamar de gesto genealógico do filme: uma “redescoberta exata das lutas e memória bruta dos combates” é o que Foucault chamava de “genealogia”, ou seja, “o acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais, acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização desse saber nas táticas atuais.”34 Nós, enquanto público, não temos acesso ao planejamento do contra-ataque gestado silenciosa e horizontalmente, de liderança rarefeita e sem protagonistas. O máximo que presenciamos consistem em pequenos gestos comunitários: “são muitas mãos que levam a mala de remédios” trazida por Teresa (Barbara Colen), e também são muitas as que “pegam em armas”, na bela síntese de Maria Bogado.35 Mas se os habitantes de Bacurau saem vitoriosos, talvez seja porque, de alguma forma, eles foram exitosos em fazer justamente um trabalho genealógico: uma reativação, em seus próprios corpos, dos saberes que haviam armazenado através dos artefatos, imagens, ou mesmo armas usadas em lutas passadas a serem reacessadas no presente. Quando um dos atiradores é executado justamente na emboscada dentro do museu, após tentar roubar um dos itens (novamente, o saque colonial reencenado), Isa (Luciana Souza) é enfática em proibir o apagamento da marca de sua mão ensanguentada na parede, que passava a ser, a partir daquele momento, uma inscrição memorialística da própria luta que acabavam de travar – literalmente não deixar esquecer “o sangue que secou nos códigos”36 enquanto memória daquela violência primeira. Não seria esta cena exemplar da “genealogia” enquanto método de vida, de luta, ou mesmo de arquivamento? Ao invés de uma reatividade vazia e imediatista ao presente, Bacurau está preocupado em levar a sério a memória das lutas que continuam (e continuarão) surgindo (e ressurgindo) de tempos em tempos – na verdade, nunca deixaram de estar presentes.

Por Jocimar Dias Jr.

Notas:
1. CHRYSTALL, 2015, p. 163.
2. CHRYSTALL, 2015, p. 166.
3. CHRYSTALL, 2015, p. 155.
4. CHRYSTALL, 2015, p. 159.
5. CHRYSTALL, 2015, p. 159.
6. As reações aqui descritas se referem tão somente à sessão mencionada e, evidentemente, não abarcam todas as possibilidades de respostas espectatoriais que o filme pode suscitar, as quais variam de sessão para sessão.
7. WALTERS, 2009, p. 21.
8. RIEDER, 2011, p. 51.
9. NAMA, 2015, p. 94.
10. NAMA, 2015, p. 95.
11. NAMA, 2015, p. 95.
12. RIEDER, 2011, p. 47.
13. RIEDER, 2011, p. 51.
14. RIEDER, 2011, p. 41.
15. No filme de Tarantino, como já visto, a suástica estampada no rosto de Landa por Raine é a epítome da vingança fabulatória dos judeus contra o III Reich. Em Avatar, por sua vez, o arrogante Coronel Quaritch (Stephen Lang), personifica a ganância da corporação mineradora que invade o planeta da princesa Neytiri (Zoë Saldana) – e sua morte, com as flechas da heroína indígena cravadas no peito, reflete a força da tradição do povo Na’vi frente ao aparato tecnológico dos humanos invasores. Já em Distrito 9, uma gangue de “camarões” alienígenas esquarteja o soldado Koobus Venter (David James), vilão representante do regime político racista que os oprime e os guetifica.
16. RIEDER, 2011, p. 45.
17. RIEDER, 2011, p. 42.
18. RIEDER, 2011, p. 45.
19. RIEDER, 2011, p. 44.
20. Para Rieder, Avatar apresenta “um ajuste indolor de fantasias de apropriação da época colonial às condições políticas e ecológicas contemporâneas” – na trama, Jake Sully (Sam Worthington), o humano branco protagonista passa a viver definitivamente no corpo/avatar alienígena e é, no fim das contas, acolhido pelos Na’vi como seu salvador (e possível rei, a partir da união amorosa com Neytiri) (RIEDER, 2011, p. 48). Distrito 9 segue pelo caminho oposto, no qual a metamorfose de Wikus van der Merwe (Sharlto Copley) em alienígena submerge-o na miséria da favela alienígena, trazendo à tona o sofrimento histórico de sujeitos colonizados e racializados em vez de uma apropriação colonizadora (RIEDER, 2011, p. 49).
21. RIEDER, 2011, p. 47.
22. RIEDER, 2011, p. 53.
23. NAMA, 2015, p. 96.
24. Tony Jr. parece remeter mais imediatamente a uma certa classe política branca de demagogos assistencialistas que exploram a população nordestina no interior, mas podem ser estabelecidas ressonâncias de sua figura com a do próprio Bolsonaro, principalmente no tocante ao entreguismo em relação aos estrangeiros.
25. Difícil não relacionar a figura do sniper com a violenta iconografia que o atual governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, constrói sobre si mesmo.
26. ESCOREL, 2019.
27. TAYLOR, 2010, p. 106.
28. Uma das postagens no perfil de Bacurau no Instagram traz um vídeo de reação da plateia, enquanto a legenda celebra: “Bacurau é eletrizante! Olha só a reação do público a uma das cenas mais empolgantes do filme, que vem sendo aplaudida durante as sessões. E na sua sala, como foram as reações? Conta pra gente! HOJE NOS CINEMAS.” Disponível em: https://www.instagram.com/p/B11Lqk2notq/?igshid=agd030b2jpaq
29. WALTERS, 2009, p. 22.
30. FOUCAULT, (1997) 2005, p. 22.
31. FOUCAULT, (1997) 2005, p. 23.
32. FOUCAULT, (1997) 2005, p. 59.
33. FOUCAULT, (1997) 2005, p. 65-66.
34. FOUCAULT, (1997) 2005, p. 13.
35. BOGADO, 2019.
36. FOUCAULT, (1997) 2005, p. 66.
Referências bibliográficas:
BOGADO, Maria. “O estranho otimismo de Bacurau”. Letterboxd, 04 de setembro de 2019. Disponível em: https://letterboxd.com/maria_bogado/film/bacurau/1/?fbclid=IwAR3rhgfqSziUhclowqwgyaG5ZbpT8dLcvsX8xfeDFgcPVFP4zqKs0Rlwr-A
CHRYSTALL, Andrew. “Inglourious Basterds: Satirizing the spectator and revealing the ‘Nazi’ within”. New Cinemas: Journal of Contemporary Film, vol. 13, n. 2, 2015, pp. 153–68.
ESCOREL, Eduardo. “Bacurau: celebração da barbárie”. Revista Piauí, 28 de agosto de 2019. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/bacurau-celebracao-da-barbarie/
FOUCAULT, Michel (1997). Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-176). São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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