Introdução
Há um tempo atrás, uma amiga produtora comentou comigo sobre um roteiro que recém tinha lido para um trabalho. Ela havia se emocionado muito e a confirmação foram as lágrimas que escorreram por seu rosto. “Eu chorei só de ler”. Aquela frase ficou ressoando em mim. Mesmo sendo roteirista, nunca tinha escutado alguém dizer que havia chorado lendo um roteiro. No entanto, por ser roteirista, eu sabia que era perfeitamente possível. E então me pus a pensar.
Ainda com o filme em questão em produção, sem ter tido acesso ao roteiro, suspeitava que estava diante de procedimentos padrão do melodrama em ação. Contudo, todo o arcabouço teórico que eu carregava até então me dizia que esses elementos estariam distribuídos primordialmente pela mise-en-scène, que a eficácia do melodrama estava no modo de filmar uma história. Close-ups, repetição de quadros, trilha sonora, iluminação, cenários, figurinos e gestuais comporiam uma “expressão visual a serviço de uma obviedade estratégica que toma corpo, na maioria das vezes, de uma maneira exuberante e espetacular” (BALTAR, 2019, p. 100).
Nos estudos de cinema, tradicionalmente, a mise-en-scène é o espaço privilegiado da análise estética. À narrativa, cabe o papel de reunir repertórios temáticos, construir conflitos e personagens condizentes com o universo proposto. No gênero melodramático, por exemplo, alguns dos elementos narrativos recorrentes são a publicização da vida privada, aspectos da intimidade dos personagens – principalmente femininas – que vem à tona para articular polaridades morais (bem/mal, virtude/vilania); a construção de conflitos centrados na família e/ou no par amoroso; personagens condizentes com os arquétipos do gênero, sobretudo femininos (a boa mãe/esposa, a mulher má/prostituta, etc); e diálogos que reforçam esses elementos. Thomas Elsaesser define o melodrama como uma forma específica de mise-en-scène dramática, na qual a materialidade do som, juntamente com iluminação, composição de quadros e cenários contribuem semântica e sintaticamente para o efeito estético final (ELSAESSER, 1991, p. 76).
Mas será que alguns desses elementos já não podem estar indicados no roteiro? Falar em estética, no roteiro, seria então abordar uma forma de roteirização da mise-en-scène? E, afinal, pode o roteiro ser dotado da capacidade de afetar o espectador, causar um impacto subjetivo, corporal e sensorial, um arrebatamento, se o mesmo configura na prática uma etapa “pré-filme”? Como a escrita fílmica pode antecipar a sensação? Como tocar o corpo através das palavras que querem virar imagens?
No clássico artigo Film bodies: gender, genre and excess (2004[1991]), Linda Williams denomina de “excesso” um sistema estruturado a partir do espetáculo visual e sensorial do corpo que é mais facilmente reconhecido nos chamados “gêneros do corpo”, o horror, o melodrama e a pornografia. Segundo a autora, esses três gêneros (ou modos) compartilham entre si formas de mostrar “excessos corporais”, referindo-se ao fato de proporcionarem um espetáculo visual/sonoro do corpo no instante em que ele é acometido de uma intensa emoção ou sensação – mais especificamente, na representação do orgasmo na pornografia, da violência no horror (violência esta que é corpórea, manifesta em gritos, sangue, excrementos corporais, etc) e das lágrimas no melodrama.
Outra característica compartilhada por esses gêneros é o êxtase, ou seja, não se trata apenas da mera amostragem do corpo, mas sim de corpos que convulsionam e sentem espasmos incontroláveis, reproduzindo na tela a sensação do corpo “fora de si” causada pelo prazer, o medo e a tristeza, de modo a inspirar a mesma reação no corpo do espectador. Apesar de haver outros gêneros cinematográficos que privilegiam a representação afetada do corpo (como thrillers, comédias e musicais), esses três são historicamente considerados “ruins”, de “mau gosto” justamente pelo fato de que esses filmes nos mobilizam corporalmente de modo muito mais intenso. Desse modo, essas obras nos convidam a expressar com nossos próprios corpos o que está sendo encenado pelos corpos na tela; não coincidentemente, corpos na maioria das vezes femininos, o que reforça o desprezo por tais gêneros:
O que parece contrapor esses gêneros particulares a outros é uma aparente falta de distância estética adequada, uma sensação de envolvimento excessivo na sensação e na emoção. Nos sentimos manipulados por esses textos […] os espectadores se sentem muito diretamente, muito visceralmente manipulados pelo texto de jeitos específicos marcados pela (diferença) de gênero (WILLIAMS, 1991, p. 5, tradução e grifo meus).
No lastro teórico de Williams, Mariana Baltar (2012, 2019) vem, há alguns anos, sistematizando o que seria esse “modo de excesso”. Para a autora, o excesso seria uma matriz cultural que atravessa diversas formas da cultura popular massiva e das artes; mais comumente associado ao melodrama, o excesso em seu sentido mais amplo de fluxo cultural diz respeito a um imaginário visual, sensório e sentimental. Em sua sistematização do conceito, Baltar aponta procedimentos estilísticos comuns ao excesso, criando categorias de análise dos elementos narrativos úteis para a análise fílmica e, aposto, também para análises de roteiro. Assim, proponho uma introdução às categorias propostas por Baltar, a saber, 1) obviedade; 2) antecipação e 3) simbolização exacerbada, por ora denominadas “marcas estilísticas do excesso”, que podem ser aplicadas para analisar, pensar e construir roteiros.
Um convite a sentir
Roteiros são escritos com o propósito de se descrever imagens e sons. Não argumento nem que o roteiro seja encarado como peça literária finalizada – uma vez que o objetivo do roteiro é, em última instância, tornar-se filme ou outro produto audiovisual – nem como transitoriedade, que reduz a noção de roteiro a um texto passageiro, que em breve será descartado. Prefiro trabalhar com a ideia de Pier Paolo Pasolini (1966) do roteiro como tradução, uma estrutura que deseja ser outra estrutura.
Se, até o momento, pouco ou nada foi elaborado sobre como a sensação pode ser construída desde o roteiro é também porque na tradição do pensamento teórico cinematográfico adotou-se uma perspectiva crítica dominante centralizada no paradigma da direção e da autoria. Um dos dogmas da política dos autores é que “o roteirista faça ele próprio seus filmes. Melhor, que não haja mais roteirista, pois em um cinema desses a distinção do autor e do realizador já não tem mais sentido” (ASTRUC apud MARIE, 2011, p. 67), tese que se tornaria popular no Brasil sobretudo a partir dos anos 1950/1960.
Segundo Michel Marie (2011), é com Godard que a noção clássica de roteiro perde sua força e a imagem do realizador autor se consolida, traduzida em uma pedagogia que aposta não na concepção clássica de “roteiro-programa” mas sim de “roteiro-dispositivo”. Esses são conceitos de Alain Bergala desenvolvidos por Francis Vanoye que designam, respectivamente, o documento que organiza as peripécias em uma estrutura dramática pronta para a filmagem e o roteiro que é aberto aos acasos da filmagem, ao improviso das ideias surgidas no momento da filmagem. Concepções binárias de roteiro que persistem até hoje e foram sedimentadas ao longo da história como opostas: uma, diretamente associada ao cinema clássico narrativo e à ideia de que o roteiro seria mera ferramenta funcional sem participação efetiva no resultado estético do filme, supostamente mais próximo de uma concepção de cinema industrial e comercial; e outra, o ideal a ser seguido pelo cinema de autor, mais próximo da Arte, na qual a improvisação assumiria um papel muito mais preponderante e a mise-en-scène prevaleceria sobre o roteiro padrão¹.
Entretanto, Marie aponta ainda que, apesar da popularidade da tese de que o autor-realizador deveria escrever seus próprios filmes e que a função do roteirista já não seria mais necessária, um estudo aprofundado dos filmes da Nouvelle Vague² evidencia que “o caso do cineasta que dirige o roteiro que ele escreveu sozinho está longe de ser dominante. Rapidamente, os jovens autores colaboraram com novos roteiristas, de maneira regular, estes últimos raramente se tornaram novos realizadores” (MARIE, 2001, p. 68).
Tal desvalorização do papel do roteiro pode ter se dado, dentre outros motivos, pela rejeição de certa crítica valorativa aos filmes que mais fortemente fariam adesão à narrativa clássica e ao cinema comercial e, portanto, à “necessidade” de um roteiro: os gêneros cinematográficos. De acordo com Rocha Melo (2006), Glauber Rocha valorizava o potencial artístico e autoral dos roteiros de Alinor Azevedo pois esse estaria próximo de um “realismo carioca”, fazendo um contraponto às chanchadas e aos melodramas da Vera Cruz, exemplos de cinema comercial que deveriam ser combatidos pelo cinema de autor. “Nas argumentações de Alex Viany e Glauber Rocha, portanto, o melodrama será tratado com indiferença ou visto como um corpo indesejável, sendo por isso necessário o seu apagamento, para que assim se fortaleça a perspectiva do realismo” (MELO, 2006, p. 155).
Acredito que a leitura de um roteiro possa gerar experiência estética e que os aspectos textuais também contribuam para a proposição de uma linguagem. Quando falo de traduzir a linguagem do roteiro para a linguagem do filme, isso significa analisar o modo como as expressões literárias são dotadas da capacidade de expressar uma ideia visual e sonora, bem como construir um engajamento com o leitor/espectador. Desse modo, argumento que a estética fílmica não é algo que se dá, exclusivamente, no âmbito da realização e da montagem. Com base na noção de “escrita invisível” de Jean-Claude Carrière e Pascal Bonitzer (1996), sustento que há informações ocultas na própria escrita do roteiro, como indicações de decupagem, ritmo das cenas, momentos de cortes, construção sonora e, como pretendo demonstrar ao longo da minha pesquisa, até mesmo de sensação.
Em Film Structure and the Emotion System (2003), Greg M. Smith propõe uma teoria das emoções com base na psicologia experimental para pensar a narrativa fílmica. De acordo com sua perspectiva cognitivista, experiências socioculturais ajudam a definir emoções, mas há estruturas básicas, fisiológicas do corpo humano que são responsáveis por provocá-las, de modo que haveria limites neurológicos para a influência da cultura nas emoções humanas (SMITH, 2003, p. 36). Apesar de não ser muito afeita a esse tipo de abordagem, concordando com Sobchack (2004) e Shaviro (1993) na crítica à ideia da experiência humana como fundamentalmente cognitiva, por entender que essa visão coloca-se mais ao lado da linguagem do que do corpo, equivalendo a sensação à consciência reflexiva da sensação (SHAVIRO, 1993, p. 26-27), acredito que as contribuições de Smith acerca de como as emoções funcionam podem ser, como é de seu gosto, úteis para pensarmos a manipulação das mesmas pelas estruturas narrativas do roteiro cinematográfico.
A escritura das emoções
Emoções são estados orientados por um objeto. Nós temos medo de algo, ao invés de simplesmente termos medo. Emoções tendem a nos levar à ação, como fugir de um objeto que tememos, abraçar uma pessoa querida ou bater em alguém com raiva; emoções demandam urgência de curto prazo, que nos motiva a agir para mudar nossa situação (SMITH, 2003, p. 21). Por isso, são tão bem manipuladas pelo cinema e pelo teatro, artes que dependem da ação. De acordo com a teoria de Smith, os filmes primeiro criam uma predisposição para o espectador experimentar as emoções, que ele chama de mood (clima ou estado de espírito). Ao estabelecer o mood nas sequências iniciais do filme, estruturalmente busca-se criar uma orientação emocional em relação ao resto do filme, aumentando assim as chances de provocar emoções/sensações no espectador.
A forma de se manter um mood é proporcionar, ao longo do filme, momentos ocasionais de emoção, de modo que emoção e mood se sustentam. No âmbito da narrativa, isso acontece através da criação de objetivos para os personagens e de obstáculos a esses objetivos.
Alegramo-nos quando o protagonista atinge um objetivo ou subobjetivo; ficamos tristes, com medo ou ansiosos quando um objetivo é frustrado. Objetivos e obstáculos são altamente destacados na narrativa e, portanto, criam oportunidades altamente marcadas para momentos significativos, tanto narrativamente quanto emocionalmente. (SMITH, 2003, p. 44, tradução minha).
Assim, gêneros cinematográficos especificam padrões de endereçamento emocional, fornecendo ao espectador scripts para o tipo de relação que devem estabelecer com o filme. Smith denomina de “micro-scripts de gênero” o conjunto de expectativas intertextuais que o espectador leva para a narrativa. Em um filme de horror, por exemplo, espera-se ver ambientes noturnos, mortes, sangue, a figura de um monstro ou vilão; em um melodrama, por sua vez, esperamos confrontos familiares, dramas românticos, vamos ao cinema com a expectativa de chorar. O que Smith denomina de “micro-scripts de gênero”, para autores como Peter Brooks, Thomas Elsaesser e Mariana Baltar, seriam elementos da chamada “imaginação melodramática”, conceito que propõe um alargamento do entendimento do melodrama como gênero para uma percepção de mundo guiada pelo excesso, fundamental na construção da subjetividade moderna.
A narrativa melodramática apresenta modelos de comportamento a serem seguidos ou rejeitados pelo público, articulados por uma lógica de polarização que mobiliza noções de virtude e vilania, bem e mal, tendo a moral como instância organizadora. Desse modo, a dramaturgia do excesso – conceito que pretendo aprofundar em futuros artigos – deve tratar de enredos compartilhados pelo público, trazendo aspectos do cotidiano e da vida privada, mobilizando repertórios estéticos e temáticos fundamentados pela imaginação melodramática e sedimentados ao longo da história por meio do melodrama clássico teatral, o melodrama literário e o melodrama audiovisual.
O convite narrativo ao espectador a sentir se dá por meio do engajamento, mais que a identificação. O espetacular, a exacerbação visual são estratégias de engajamento operacionalizadas pelo excesso, e esse excesso é trabalhado nas narrativas audiovisuais por meio de estratégias específicas vinculadas ao gênero melodramático, tais como:
Obviedade – A obviedade é um elemento de exacerbação do sentido ou sensação da cena, em que todas as instâncias da narrativa convergem para a expressão de um mesmo olhar público de julgamento que faz mover o enredo do melodrama. A obviedade é estratégica para que o público possa compreender de imediato as polaridades moralizantes que distinguem o bem do mal na narrativa melodramática.
Em A Vida Invisível (Karim Ainouz, 2019), por exemplo, a obviedade é trabalhada através de uma polaridade moral que assume uma dinâmica generificada. As mulheres são as vítimas de uma sociedade patriarcal na qual os homens são os algozes. A sequência de abertura traz um exemplo: Eurídice e Guida se embrenham na mata até que Eurídice perde a irmã de vista. Ela define o mood do filme e antecipa a narrativa que irá se desenrolar, já informando ao público, através de uma metáfora óbvia, que estamos diante de um melodrama sobre duas irmãs que se desencontram, o que é reforçado pela narração de Eurídice.
Antecipação – a antecipação possui um vínculo com o suspense (no sentido de colocar em suspensão, uma expectativa ansiosa vinculada ao que está para ser revelado) e é um dos mecanismos que produzem as lágrimas no melodrama, construído ao longo da narrativa por meio de pistas que antecipam o desfecho da narrativa e mobilizam a empatia do público.
Em As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2018), um exemplo de antecipação é a cena em que o menino lobisomem Joel mata o amigo Maurício com uma espada de papel em uma brincadeira na sala de aula.
Simbolização exacerbada – a simbolização exacerbada presentifica, normalmente através de uma imagem ou objeto, os elementos-chave da narrativa, seguindo a lógica da obviedade exposta acima. É como se, por meio desses símbolos, os conflitos fossem visualmente expressos, materializando os dilemas morais da narrativa.
Em Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019), o “forte psicotrópico” é um elemento de simbolização exacerbada, materializando em um objeto uma cultura compartilhada por uma mesma comunidade, uma “arma secreta” que une os cidadãos de Bacurau na luta contra um inimigo comum.
Breves ressonâncias à procura de um corpo
As categorias apresentadas acima devem ser entendidas como pontos de partida para pensarmos como as marcas estilísticas do excesso estão presentes no roteiro. Ao longo da tese,³ pretendo esmiuçá-las, confirmando ou não sua importância para a construção de um modo de excesso na escritura cinematográfica dos roteiros de longa-metragem no Brasil. Pretendo empreender análises comparativas entre roteiro e filme a fim de identificar como o projeto estético pode ser trabalhado desde a etapa da escrita fílmica, procurando nesses textos vislumbres do filme que ganhará corpo mais adiante.
Que podemos – e conseguimos – mobilizar sensações através da imagem e do som, muito já foi escrito sobre. Mas como essa mobilização pode ser praticada através de palavras que evocam, sugerem sensações é a provocação que faço a mim mesma como roteirista, diretora e pesquisadora. Você já chorou lendo um roteiro? Já sentiu medo? Ficou excitado, ansiando o que estava por vir? Por quê? E como essas sensações estão sendo operadas nos roteiros brasileiros? No que elas contribuem? De que modo a relação entre palavra, imagem, sensação e corpo é especificamente mobilizada nos roteiros brasileiros? Existe essa especificidade, ou não? Essas e outras perguntas são as quais pretendo mergulhar durante o processo da minha pesquisa, que no momento é apenas uma fenda, pedindo para ser tocada.