Em estado de viagem – entrevista com Melissa Dullius e Gustavo Jahn (Distruktur)

Melissa Dullius e Gustavo Jahn formam a dupla Distruktur. Sua trajetória artística começa em Porto Alegre no final dos anos 90, quando começam a fazer filmes em super 8, integrando coletivos independentes, e alternando-se entre diferentes funções do processo de produção. No final de 2006, desembarcam em Berlim e passam a fazer parte do LaborBerlim, uma associação autogestionada voltada para o trabalho com o suporte de filme analógico. Lá continuaram e intensificaram a experimentação com revelação e copiagem de película 16mm, formato que utilizam majoritariamente até hoje.

Esta entrevista foi realizada à ocasião da Mostra do Filme Livre 2019, na qual Gustavo Jahn esteve presente no Rio de Janeiro para a realização de um minicurso e retrospectiva Distruktur, em que foram exibidos os curtas Éternau (2006), Triangulum (2008), No coração do viajante (2013), El meraya (2018), e o longa Muito Romântico (2016). Dias depois do nosso encontro, Gustavo voltaria para Berlim – Melissa já havia voltado semanas antes e participou por videochamada -, dando fim a um dos períodos mais longos em que a dupla esteve no Brasil desde que emigraram. Entre outubro de 2018 e junho de 2019, a dupla conciliou exibições de filmes, performances, exposições, oficinas de filmagem e revelação de película, e trabalhos com outros realizadores no Brasil. Por aí, percebemos a amplidão dos campos de atuação aos quais se dedicam: da realização fílmica à prática docente, das performances musicais às salas instalativas em galerias de arte. Nomeamos esses campos como coisas distintas, mas longe de estarem apartados, é possível perceber muito mais um imbricamento e uma retroalimentação entre eles. No limite, são experimentos que se colam uns aos outros, se influenciam mutuamente, compondo os álbuns – da vida.

FILMES DE VIAGEM

Isabel: A gente pensou em começar com uma questão bem pulsante do cinema de vocês – o Gustavo inclusive mencionou ontem na Mostra do Filme Livre – que é sobre filmar e viajar.  Então, se pudessem falar um pouco sobre essa prática de se colocar em estado de viagem e de estrangeiros, e como isso atua como um dispositivo de alteração da percepção.

Gustavo: Se eu fosse resumir de uma maneira bem simples e rápida o que unia os quatro curtas que passamos ontem, é o tema da viagem que está em quase todos eles. Desde o  Éternau, isso surge primeiro como um desejo, uma projeção de mundo, de tempos, de espaços, e depois, na Europa e no Egito, é um movimento de amadurecimento no sentido de que a gente criou uma ideia sobre um lugar. E aí a gente se dirige a esse lugar ainda com muita fantasia – o Triangulum é carregado de fantasia -, mas também para confrontar um pouco essa fantasia que a gente tinha com o que a gente fosse encontrar lá. Tem um desejo de penetração bem forte numa realidade, e como tu faz isso? A gente nunca teve a vontade de ser de um lugar, de ser do Cairo, de ser de Moscou, a gente sabia mais ou menos onde a gente se posicionava em relação àquela realidade dada: estrangeiros, passando um tempo, fazendo um filme. Mas o cinema permitiu que a gente penetrasse mesmo nesses lugares. E o que eu sinto é isso… essa experiência que tu vai adquirindo se tornando um viajante. Triangulum e No coração do viajante foram filmes que aconteceram num período que a gente tinha essa pulsão de ir para os lugares, ir com uma câmera e encarar o aspecto físico – passar o inverno, tinha uma coisa de provação que para a gente era bem interessante naquele momento, de aventura. Agora é de uma outra maneira, mas esse estar no mundo em movimento é o que move o nosso cinema, independente se o filme é em viagem ou não.

Melissa: A viagem também deixa tudo mais objetivo, pois não tem tanta coisa, não tem o dia-a-dia, é mais atraente por isso, fica tudo mais cristalino… E acho que o que mais acontece é voltar com novos olhos pra casa, pro que é mais estático, e com isso, tudo se ressignifica. Toda a acumulação que acontece quando a gente está mais estático não é possível quando a gente está em viagem. A gente fala às vezes da limitação como linguagem e fica bem claro, quando a gente viaja, que a gente tem menos coisa, a gente conhece menos, tem menos tempo, tudo a gente tem menos, então as limitações acabam sendo “co” – fazendo uma co-autoria desses filmes. Por outro lado, quando eu penso na película, ela nunca é uma limitação porque a gente sempre atuou em película. Ela tem as especificidades, mas eu não vejo como uma limitação porque eu já nem me lembro de filmar de outro jeito.

ROTEIRO: PLANEJAMENTO, LUGARES E MATERIAIS 

I: São duas perguntas juntas de caráter mais metodológico. O que é mais importante para vocês no momento pré-fílmico? Queria entender como se dá esse processo de planejamento, deslocamento, encontros, talvez de abandono e recriação.

G: O espaço tem um papel predominante e protagonista nesse primeiro impulso criador nosso, que tem a ver também com a criação do roteiro. Voltando ao Éternau: na época ele começa porque a gente vai mudar de casa, a gente vai fazer um filme naquele apartamento, mas que não é sobre o apartamento, é um cenário que a gente vai colocar lá dentro. Tinha um jardinzinho de inverno e um espaço ali que a gente queria filmar antes de se mudar. A questão da viagem: a gente vai para o Cairo para encontrar pessoas, situações, experiências, e a partir disso fazer um filme. Mas assim, o espaço funciona como um gerador de percepções, de ideias, de sensações. Por que a gente se sente atraído por alguns tipos de espaços? A gente está andando por uma cidade, por algum lugar e sente alguma coisa naquele lugar, são questões de magnetismo, de memória, alguma coisa que ativa. Isso acaba influenciando e moldando os passos seguintes… Muitas vezes não é uma pessoa, não é um evento, ou uma ideia de uma situação, um drama, uma narrativa que acontece, é um espaço – que dentro desse espaço a gente vai atuar. E aí o roteiro acaba sendo uma consequência direta desse primeiro encontro com o espaço, o que ele nos sugere em termos de ideia. Por exemplo, No coração do viajante, que era um espaço de natureza com uma característica específica – lagoa, dunas, floresta -, isso nos leva para um certo tipo de narrativa, para determinados personagens que executam ações, em que a gente preenche o espaço e traz o tempo.

Muito Romântico (2016)

Vitor: Existe alguma coisa que vocês fazem antes? De encontrar esse espaço?

G: Acontece de maneiras diferentes. Tem filmes em que há uma vontade de usar o material que a gente vai acumulando. Por exemplo, no Fotokino, a gente tinha vontade de usar aqueles três mil slides que havíamos fotografado ao longo dos anos e dar uma forma enquanto filme para eles, transformar numa outra coisa. E depois tem uma coisa muito prática: que tipo de película a gente tem disponível para filmar. Parte de uma coisa concreta, itens concretos que a gente tem, ou que a gente precisa conseguir, mas num âmbito viável. A gente não faz grandes deslocamentos, a gente não muda muito o nosso estilo de vida pra fazer um filme. A gente faz um filme dentro da maneira que a gente já está vivendo. Talvez isso tenha a ver também com essa mistura entre cinema e vida, que não há tanta diferença do momento que a gente tá filmando com o dia-a-dia, e o fato de a gente também estar filmando constantemente.

M: Essa ideia de trabalhar um tempo no roteiro para depois ver a transformação acontecer, de um roteiro bem denso… Sinceramente, a gente não teve essa experiência ainda. Tem o fato de a gente ser autodidata, de nunca ter aprendido a fazer roteiro… Talvez isso influencie.

V: Nem no Muito Romântico?

G: Muito romântico talvez tenha sido mais próximo disso. Teve um roteiro para a parte ficcional, que não tinha muito desenvolvimento cronológico, eram cenas que se sucediam, mas elas não tinham uma ordem necessária. Logo antes de começar a filmar, a gente voltou para o roteiro e deu uma formatada nele, apontando para esse caminho mais narrativo, mais linear. Apesar de ser um filme que tem tantas brechas e desvios, lacunas, ele é um filme que tem uma linha, né?

I: Com certeza.

G: É um casal, que tu acompanha, que vai de um lugar para o outro, que passa por uma situação, travessia, tempestades, e chega a algum lugar, então… Ali eu acho que teve um trabalho de roteiro. Mas, ainda assim, um pouco nessa questão quase meio modular. Eram blocos, que daí a gente, na hora de filmar, já sabia mais ou menos o que queria para o filme. Quando penso o Éternau, que eram as doze frases, ou no próprio El Meraya, que a gente pegou trechos do Triangulum, e também alguns objetos… Tinha um livro que a gente formou durante o Triangulum que aparece no El Meraya, e isso, de uma certa maneira, era o roteiro. Esse livro com cartinhas, com fotos, que aparece no El Meraya, que o personagem, o Mido folheia no carro, é uma espécie de roteiro…

M: O álbum!

G: O álbum, isso! É, acho que talvez pensar os nossos roteiros assim, eu não tinha pensado antes, mas o que a gente fez com Muito Romântico foi uma certa reorganização de blocos como se fossem módulos. Talvez os nossos roteiros tenham uma característica de álbum, que tem a ver com esse aspecto de colagem que o nosso trabalho tem. Nossos roteiros são planos de viagem, só que eles têm um formato de álbum, mais modular.

M: É, esse conceito do álbum tem tudo a ver com o que a gente faz, como a gente se prepara para um filme. Um álbum… a questão dele é: “o que eu guardo para colocar naquele álbum?”. Pode ser um álbum de recortes, aquilo que eu seleciono. Tem um fator bem subjetivo, não tenta ser outra coisa. Esse álbum me interessa porque eu tenho sensações, lembranças, sentimentos, que são ativadas em mim. Não é uma coisa tão pessoal, a gente mostra os nossos álbuns para outras pessoas, mas é uma coisa sem dúvida ligada às experiências e ao que aqueles objetos ou imagens evocam, né, e revivem…. Eu estou nessa onda do álbum, e é o nome de trabalho desse possível terceiro filme no Cairo, é Álbum.

G: Só mais uma coisa em relação ao roteiro… Eu acho que nosso trabalho tem uma característica, também, de rapidez. E tem essa característica das coisas acontecerem rápido, se tu pensar que foi para o Cairo fazer um filme sem nunca ter estado lá em quatro semanas, da maneira como foi feito, ou estar na Lituânia filmando e revelando. Isso marca nossos filmes e até vou ser autocrítico: não tem muito tempo de reflexão. Eu acho que isso é uma marca do nosso trabalho, a rapidez com que as coisas acontecem. Então, o roteiro também entra nessa linha. É a maneira que a gente vem fazendo os filmes até agora, talvez isso seja uma coisa que possa mudar mesmo.

I: Porque frequentemente também não tem muita grana né, então acho que isso implica na rapidez, você acha?

G: Isso tem a ver com a rapidez, porque tu não tem como manter nem uma equipe pequena. A gente faz esse tipo de cinema mais solitário. Mas a gente também faz, e é a nossa escola, vamos dizer assim, o cinema coletivo. Só que, pra manter mesmo uma equipe pequena por um tempo, precisa de uma estrutura econômica que a gente não tem. A gente consegue montar essa estrutura com fragilidade durante um período muito curto. No Muito Romântico foram dez dias de filmagem, que é um período pequeno para um longa, mas foi o tempo que a gente conseguiu… E filmando dentro de casa, a gente cozinhando, cada pessoa da equipe fazia uma comida… Um esquema super autossustentável, autossuficiente, mas que tem a sua fragilidade.

FIGURA x PERSONAGEM

I: Sim, e isso leva diretamente à próxima pergunta, que tem a ver com esse par escolher/deixar ser levado, esse duplo movimento de controle/descontrole. Como podemos pensar isso refletido na construção das personagens? De uma certa maneira, o tipo de atuação em que vocês apostam é menos ligada a um arco de construção de sujeito, de caráter, de uma história que você se identifica com a pessoa – ela está feliz, ou triste, e ela precisa conquistar alguma coisa – essa ideia de personagem clássico. Me parece ser mais ligada à ideia de figura, de dessubjetivação. Como superfície, como se fosse um alargamento de superfícies, ao invés de um adensamento numa personagem.

V: Isso faz sentido para vocês?

G: Faz. Faz sentido.

I: A exceção talvez seja o Cat Effekt, porque acompanha uma única personagem ao longo do filme. Enquanto, nos outros, há sempre dois ou três, isso faz com que vocês modulem também as aparições.

G: São várias coisas interessantes que vocês levantam, eu penso em outras coisas também. Eu penso que a gente faz filmes e projeta imagens que vão se tornar, de alguma maneira, a realidade depois. Talvez seja uma marca dos filmes, eu não sei, estou pensando agora, de legar à imagem esse poder – por quê não? – de se tornar realidade. Ontem, Sissa, depois da sessão de El Meraya, alguém falou: “faltou o protagonista, nos créditos, o Rio Nilo”. (risos) Enfim, mais num tom cômico, mas acho que tem a ver. O El Meraya é um filme que, claramente, é múltiplo: são aparições que gravitam, que transitam ali por aquele espaço, pelo filme, mas que tu não consegue se agarrar a ninguém – fora a narradora, que tem esse papel de ser uma âncora. Essa questão da figura, de superficialidade da imagem, a gente fala muito sobre ela, não é nada de muito específico, mas realmente é importante pra gente, vem desde Éternau: a imagem é superficial, está tudo na imagem, não tem que buscar nada atrás da imagem. Ela se apresenta, e o significado, o sentido dela já está dado. Os personagens também são marcados por isso, essa ideia de corpo de superfície mesmo, onde se projetam coisas, se colocam adereços que se mutam, se transformam… E isso é tudo visível.

Éternau (2006)

M: Improvisação e precariedade: são duas palavras que correm o risco de parecerem pejorativas, mas a nossa maneira, vamos dizer, guerreira, de fazer filme, nos leva geralmente a se associar com pessoas também em situações mais precárias, daí falta um pouco a chance de trabalhar mais com atores e atrizes “profissionais”, o que nos interessa muito, e é muito instigante. Porque quando você trabalha com não-atores, depende do jeito da pessoa, do caráter da pessoa, mas ela fica muito frágil e muito na sua mão. Daí você precisa dar apoio, tem que ter um cuidado, e quando você trabalha com atores e atrizes tem mais espaço para o jogo.

V: E como é que, no caso, vocês dois, quando vocês dirigem um ao outro, quando vocês estão em cena, na frente da câmera… Vocês têm uma intimidade, um convívio maior, já têm uma história anterior ao momento de fazer cada filme. É uma terceira coisa? Ou seja, uma coisa seria trabalhar com não-atores, outra trabalhar com atores, e uma terceira trabalhar entre vocês? Como que vocês veem esse trabalho interno, digamos assim?

G: Talvez possa ser isso que tu está falando, uma terceira coisa, mesmo. É muito natural essa passagem de trás da câmera para a frente da câmera. É uma coisa que acontece, que a gente não passa muito tempo preparando. Vou tentar ser bem concreto: a gente ensaia pouco, e quando a gente vai filmar a gente ensaia uma, duas, três vezes, corrige alguma coisa de movimentação, mas, assim, o atuário, o gesto, ele acontece.

M: Para poder atuar e se concentrar um pouco mais na nossa atuação, a gente geralmente não se dá ao luxo de ter uma pessoa operando a câmera, mas tem vezes que a gente precisa, é quando os dois tão na frente da câmera. Cada vez é mais difícil encontrar o tempo das pessoas, produzir como se produzia quando a gente tinha vinte e poucos anos.

Muito Romântico (2016)

TRIANGULAÇÃO

I: A gente ficou pensando nos filmes de vocês como pequenos rituais: aparece uma outra relação com o tempo; as ações são fragmentadas, mas filmadas como algo importante; as simbologias… O que vocês acham dessa ideia, como se o cinema fosse um grande ritual sobre pequenos rituais? As simbologias presentes acabam reforçando também uma mística, mas uma mística anárquica porque ela não está a serviço de nada para além do filme.

M: A gente vai participar de um festival na Suíça agora, e aí eu gostei da biografia que foi escrita, na qual eles incluíram a palavra “esoterismo”. Aí na hora eu fiz: “Ih, não gostei da palavra”. Porque parece um pouco pejorativo também, mas o quanto o preconceito não está na gente, né? Eu não diria que a gente se definiria como místicos ou como esotéricos, mas com certeza nos interessam as várias simbologias. Então, com certeza, a gente é simbolista. Definir um “-ismo” é fácil e também não basta, mas foi engraçado, porque depois que eu li o estudo das cores do Johannes Itten, fiquei tranquila com o esotérico (risos).

I: As personagens têm alguma missão a ser feita, né? Elas não tão ali relaxadas, existe uma tensão que a gente não sabe exatamente o porquê, é uma coisa misteriosa. Essa coisa da atividade das personagens, dessas ações que são feitas com cuidado, com atenção, com uma certa densidade, digamos assim, e ao mesmo tempo parecem fortuitas. Quando eu penso no ritual, eu não penso num ritual tão ligado a uma magia superior, a um sobrenatural não, é o ritual… Ritual da vida, das coisas que a gente se propõe a fazer e que podem ter essa estranheza e “para nada”, porque não tem função objetiva, não está convocando alguma coisa, invocando algum ente superior, um sobrenatural. Aliás, é uma coisa que não está presente no cinema de vocês: o sobrenatural e a fantasmagoria.

M: Eu gostei quando você falou, Isabel, de convocar e invocar… Essa coisa da voz, né, de chamar… Que é um vocalizar. Eu me lembro de falar dessa questão de que a magia é colocar intenção numa coisa, ou invocar, seja com uso da voz ou não.

G: Tem aquela música que eu gosto bastante… “até que não é tão esotérico assim”… Eu acho que a gente tem medo de algumas palavras e vamos lá, de “esotérico”. Por que esse desejo de racionalidade tão grande na sociedade que a gente vive? De ter os pés no chão, se agarrar a alguma coisa o tempo todo e tudo que saia disso já vira motivo de desconfiança? Eu acho que está por trás dessa rejeição a essa palavra esotérico, é uma desconfiança né? Não tem problema ser esotérico, não tem problema pensar que as coisas se organizam de uma outra maneira, que não é essa maneira que a gente é programado para viver, compreender, perceber o mundo, eu acho super válido, esses outros caminhos… Com os nomes que eles tomam.

V: Mas e quanto a isso dentro do trabalho?

G: Isso aparece bastante no nosso trabalho, quando se fala em sexto sentido, em intuição, essa reorganização da realidade. As escolhas que se faz são baseadas em intuição, em sentimento, quando falo do cinema enquanto profecia, imagens que vão afetar nossa vida de uma maneira, num nível bem real, vão se repetir na realidade. Acho que há, sim, um tanto de esoterismo nisso, é uma maneira de reorganizar e lidar com a realidade.

M: Essa ideia de estar na missão e seguir fazendo. Eu falo isso com o Gustavo às vezes, quando a gente está junto ou separado, a gente tem as visões quando está se sentindo bem, quando está em cima da onda, mas depois tem um bom tempo que a gente precisa ficar esperando uma outra onda. Ou nadando, ou mesmo se afogando. Eu acho que essa ideia da missão, de continuar na missão, de seguir fazendo não só no entusiasmo, mas seguir fazendo… Às vezes, não dá pra refazer algo que não ficou como se desejava, ou não se pode fazer algo que era mais complicado, mas a intenção que se tinha está dentro das lacunas que ficaram.

V: Pegando esse gancho do ritual, da missão, do trabalho… Como que a película entra nesse projeto de vocês, nessa metodologia? E porque insistir na película enquanto ferramenta primordial?

G: É mais uma triangulação, dá para ver desse jeito também, entre a Melissa, eu e o material, esse diálogo que foi se desenvolvendo com a película ao longo dos anos… É um elo de força bem forte. Criar familiaridade com as coisas, intimidade, e eu acho que essa persistência tem a ver com a vontade de seguir próximo de como começamos. O espírito, assim, é bem parecido. Eu arriscaria dizer: a gente não envelheceu nesse sentido, a gente começou com uma super 8, passou pro 16mm e continuou no 16mm. Acho que o ponto principal talvez seja esse, o da persistência.

M: Eu simplifico às vezes, falando assim: ninguém pergunta para alguém que desenha com o carvão “por que o carvão?”. De fato, todas as razões para não filmar em película fazem sentido, mas é a nossa ferramenta. A nossa experiência com outros formatos é bem pequena, e dá muito trabalho filmar em película, ainda mais quando a gente assume toda essa coisa de revelar, fotografar, testar, usar materiais velhos que tem que ser testados. Por um lado, é caro, por outro lado, a gente usa filme que iria para o lixo, porque quase ninguém está filmando. Eu acho que é insistir numa coisa que para nós não deixou de ser atual. É bem natural. Mas é difícil, gente, como é complicado (risos). O que precisa é todo um sistema, todo um aparelho que é incompleto hoje em dia. Filmar em película, revelar em película, e fazer um telecine, não é tão difícil… Agora exibir, projetar em película, chegar em um lugar e ter um projetor funcionando, é todo um sistema, então a gente está meio que fadado, por sorte, ao hibridismo… E a gente tem o melhor de cada um. Eu sou bem positiva quanto a isso.

UM SOM VIVO

V: E como entra a questão do som enquanto ferramenta? Vocês disseram que não mudaram tanto a forma de produzir imagem, desde que começaram a fazer sempre utilizaram película, super 8, o 16mm, vocês mesmo revelando…mas como fazem com o som?

G: A gente usa, na maioria das vezes, gravadores digitais como um Zoom. Não temos um equipamento de som muito sofisticado. Para alguns filmes, como Muito Romântico, tivemos técnicos de som que daí vieram com os equipamentos deles. Acontece com o som uma coisa parecida com o que acontece com a imagem: vamos produzindo sons e fazendo bancos, arquivos que vamos acessando e remoldando. O som ficou muito vivo através da performance, foi a partir daí que a gente formou uma banda. Então começamos a tocar e fazer música ao vivo, e isso começa a influenciar os filmes de alguma maneira através desse arquivo, que a gente vai experimentando.

CÍRCULO DE PESSOAS

I: Não sabia que vocês davam cursos há tanto tempo, eu soube ontem que isso acontece desde 2004. E queria que vocês falassem mais sobre isso, já que está tão presente na vida de vocês e que, me parece, tem a ver com essas duas práticas, que envolvem partilhar pesquisas e coletivizar os processos, essa coisa de aprender fazendo junto.

G: Fico pensando no fato de estar sempre reencontrando as pessoas que participaram da oficina. O próprio trabalho que eu fiz agora em Florianópolis foi com uma pessoa que conheci em uma oficina. E aí a película tem um papel fundamental, eu acho que a gente se sente parte de uma comunidade. A película é um elemento muito forte que une o interesse das pessoas, a maneira de fazer, a própria dificuldade de acessar os meios, e acaba, talvez, reforçando esse sentimento de comunidade. E o ensino, o educativo, talvez seja uma forma de alargar essa comunidade, fazer novos contatos, daí tu encontra, tu reencontra, a gente teve um encontro, agora está aqui conversando… Conseguimos produzir até agora em função dessa comunidade, e não estou falando só de película, mas desde lá atrás, do ensino ir agregando as pessoas, chamando os amigos que trabalham com arte, com cinema, para trabalhar com a gente. Então tem essa relação de apoio mútuo. E isso é uma sensação legal, o educativo tem um papel de tornar a comunidade real, palpável, sensível.

Oficina “Subversões Fotoquímicas” (outubro de 2018, São Paulo)

V: Na oficina, quando você pegou a câmera e começou a mexer, botar o filme, quando reuniu todo mundo em volta, eu tava afastado olhando aquela cena. Você em uma mesa, com uma câmera de trinta, quarenta anos atrás, e as pessoas olhando aquele objeto como se fosse algo que veio de um outro tempo. Um misto de espanto e deslumbre com aquele objeto e cada um com seu celular tirando foto. Tinha um cara com um pau-de-selfie, fazendo um retrato dele próprio olhando aquela câmera, foi todo um frisson em cima daquele objeto. Essa ideia de comunidade ficou muito clara, aquilo uniu você com aquelas pessoas. E quando vocês foram para a rua, todo mundo muito empolgado por estar filmando com uma câmera de película – ligada a outro tempo, mas ainda aqui. E isso está na obra de vocês, nas falas de vocês, tá tudo junto, o ensino, a película, a linguagem… É como se fosse uma coisa só.

M: Tem sido uma constante. Na nossa turnê do Brasil, as oficinas foram mesmo completamente necessárias no sentido de financiar, mas foi tanta troca também. Daí, como o Gustavo falou, esse círculo de pessoas que aprende com a gente acaba ensinando com a gente… É natural que aquilo continue, que aquilo reverbere, e vai ficando, vai se tornando uma comunidade, a gente faz parte de tantas comunidades… por não querer pertencer a nenhuma acabamos sendo parte de todas. Tentando ser independente, a gente acaba se tornando dependente dos outros independentes. (risos)

Por Isabel Veiga e Vitor Medeiros

Transcrição: João Rezende

Site oficial Distruktur: www.distruktur.com
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