Em uma das cenas de Os primeiros soldados (2022), de Rodrigo de Oliveira, Suzano (Johnny Massaro), um dos protagonistas do longa-metragem, encontra-se em um estado de grande agudização clínica. Com máculas e pápulas dispersas pelo corpo, o personagem distribui, durante uma festa numa boate, fotografias de fragmentos do seu corpo e da sua pele. Sem entender ao certo o porquê daquelas imagens, aqueles que ali se encontram recebem as fotos com os olhares surpresos e temerosos. Em um gesto derradeiro, enquanto tem consciência da proximidade de sua morte, Suzano se empenha, ainda sob o risco do julgamento e da discriminação, em mostrar aos outros o que aconteceu. Se, em 1983, a AIDS soava como maldição, ele oferece, aos seus amigos, o seu corpo como testemunho e memória.
No corpo físico, há elementos que remontam o passado e sinalizam quais foram os processos de saúde e de doença vivenciados por alguém. Nesse sentido, aqueles que habitam cada corpo têm a maior intimidade possível com o sofrimento por ele vivido. Em Os primeiros soldados essa perspectiva é reconhecida e intensificada, na medida em que aqueles que estão vivendo na medida em que aqueles que estão percebendo os sintomas decorrentes da AIDS se manifestarem se colocam não só em extrema atenção ao que acontece em seus corpos, como, também, reconhecem a necessidade de registrar esses eventos e direcioná-lo ao outrem. Se, enquanto aqueles que adoecem são os maiores protagonistas de suas vidas, a possibilidade de adoecer nos é pública e comum, havendo, assim, possibilidade de nos reconhecermos enquanto comunidade a partir da troca entre o que acontece em um organismo e que pode acontecer com todos os outros.
Os processos de doenças são inerentes à vida e, também, motores da construção e exercício da subjetividade. Na vida humana, o desenvolvimento e crescimento do corpo físico não existe apartado de uma existência psíquica e emocional, que codifica e ressignifica todo o corpo que ali está. Rose (Renata Carvalho), em perfomance vigorosa na virada de ano novo para 1983, realiza uma paródia de Gonzaguinha e, contrariando a versão original do compositor carioca, afirma vai dar para ser feliz. É também Rose que, quando Suzano se apresenta em grande sentimento de derrotismo e melancolia após a morte do companheiro dele, coloca-se a dizer e projetar um futuro onde haveria tratamento, cura e vacina para o HIV. Se, nesse momento, Suzano, solicita a Rose que minta para ele, o que ela oferece, por outro lado, é uma aposta de esperança. Assim, é pela ordenação do próprio sentimento e da própria mentalidade que há a possibilidade de engendrar e sustentar um mundo outro, especialmente quando ainda existe grande desconhecimento da fisiopatologia da doença que se experiencia.
Na Terra, a existência humana se depara com um dilema. Se, enquanto espécie, vivenciamos processos evolutivos paulatinos e esparsados no tempo, nossa experiência de sociabilidade e de cultura é atravessada por possibilidades diárias de novos modos de viver – e de morrer. Nos pouco mais de 40 anos desde que o vírus do HIV foi descoberto, a ciência nos possibilitou grandes avanços. E, hoje, ao contrário do tempo em que as primeiras pessoas se infectaram com esse patógeno, é possível, por meio da adequada adesão ao tratamento, viver com carga viral indetectável e, desse modo, não evoluir para o quadro de AIDS. No entanto, enquanto a ciência não tem todas as respostas, a vida das pessoas acontece e elas adoecem. A vida de cada um, tantas vezes mais ampla e urgente do que nos é possível, no presente, dar conta.
Os primeiros soldados mostra um deslocamento do fluxo comum do trabalho na atividade médica. No sítio configurado por Suzano, são aqueles que estão doentes que se colocam como investigadores dos possíveis e ainda incertos tratamentos, mantendo anotações e cadernos sobre aquilo que conseguem ver que está acontecendo em seus corpos. De uma perspectiva que se organiza antes de dentro para fora, essas pessoas partem dos sintomas para angariar formas de compreensão dos processos biológicos microscópicos cujo funcionamento era desconhecido até então. Adam, de Paris, investiga e oferece tentativas possíveis de tratamento, com medicamentos oriundos de diversas partes do mundo, alguns contrabandeados, na tentativa desesperada de cura. Em certo momento, mesmo após ter explicado algumas questões de farmacologia a Humberto (Vitor Camilo) e descrito o uso de alguns remédios, Suzano diz ao amigo, que, ao fim, todos aqueles remédios são caixas de foda-se, o que podemos entender no pesar de saber que em nenhuma delas se encontraria a cura para a AIDS. Entretanto, no dia em que buscavam a encomenda no correio, quinzenalmente, manifestava-se, sempre, ânimo e celebração.
Na medicina, temos diversos debates no campo dos cuidados paliativos que se orientam e se direcionam para a necessidade de pensar como podemos atuar de forma a aliviar o sofrimento dos que ali se encontram, ainda que não seja possível encontrar resolutivas para a cura das doenças em alguns quadros. Reconhece-se, assim, a necessidade de entender e respeitar como o paciente gostaria de ser tratado, colocando-se em escuta genuína do que é compreendido por ele como uma escolha e metodologia que proporciona maior bem-estar. Em Os primeiros soldados, encontramos similaridade e afinidade com essa postura, na medida em que os protagonistas estabelecem, para si, o que lhes parece o melhor caminho para viver e confrontar-se com o seu adoecimento, criando e sustentando em comunidade formas de cuidado que lhes fortalecem para o imprevisível. Quem sabe curar-se, num lampejo de esperança. É importante ter em mente, porém, que esse movimento acontece em um cenário de negligência do poder público. Nesse período, evitava-se a transparência de escrever, nos prontuários, a verdade do quadro do paciente. Como é mostrado no filme, existia um temor que, ao se contar a verdade, fosse desviada verba para a manutenção dos postos de saúde. É triste, porém, perceber que, em detrimento da vida e do bem-estar dos sujeitos que estavam ali, a medicina estava se organizando apenas para manter estáveis os recursos que recebia, sem ordená-los da forma correta. Revela-se, assim, que quando os médicos se recusam a fazer o seu trabalho da forma ética, criam demandas para aqueles que estão mais necessitando de sua ajuda. E vão encontrá-la, muitas vezes, nos braços dos seus pares.
Ainda hoje, viver é o maior instrumento político contra a morte. É a sobrevivência a maior ferramenta de enfrentamento à necropolítica que existe contemporaneamente e a qual retroalimenta a morte de gays, negros, travestis, pobres, dentre tantas outras vidas atacadas. É a alegria uma ferramenta poderosa na resistência à violência contra pessoas LGBTQIA+. É o corpo que dança, que tem prazer, que ri, que canta, que ama, o agente de memória e de transformação do presente, irradiando formas de um futuro outro. Os primeiros soldados, as primeiras pessoas infectadas pelo vírus do HIV e que foram a óbito em decorrência do quadro complexo da AIDS, inscreveram, na história, a fragilidade e insuficiência do nosso pensamento científico, cujo tempo nem sempre acompanha a urgência de sobreviver. E trouxeram, à superfície, os abismos de escuridão que podem se alimentar pelo medo e pela ignorância diante do sofrimento e do adoecimento do outro.
Em uma das cenas finais do longa de Oliveira, Muriel se encontra debruçado sobre as cartas, materiais do tio falecido, enquanto assiste ao filme realizado por Suzano, Rose e Humberto, em outra noite de reveillón. Em seguida, ele é interrogado por outro garoto se ver aquele vídeo não o fazia sentir mal. Muriel responde de forma incisiva e corajosa, afirmando que alguém tem que ver. É preciso ver e recordar, reconhecermo-nos falíveis e cientes de que, por mais que avancemos no pensamento acerca da natureza do organismo humano, haverá, ainda, fenômenos de vida que sobrepujarão os recursos que temos conosco. É necessário ver e revisar a História, para que, também, os prontuários que a documentam sejam discutidos e avaliados enquanto dados e testemunhos possíveis do tempo.
Olhar, hoje, para o sofrimento e para o adoecimento físico das pessoas cujas vidas foram ceifadas pela AIDS no início da epidemia é escovar a história a contrapelo, como nos propõe Walter Benjamin. O autor afirma:
[…] existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente (BENJAMIN, 1987, p. 223).
Escovar a história a contrapelo é colocar-se distanciado de uma postura hegemônica, a qual culpa e pisoteia todos aqueles que adoeceram e morreram com AIDS. É conceder memória e corpo emocional àqueles que, se enquanto estatísticas, poderiam ser esquecidos ou ter o rosto apagado, permanecem para sempre vivos nas lembranças daqueles com os quais conviveram – especialmente com aqueles que amaram. Será, assim, preciso, também, tantas e infinitas vezes, o recuo dos pilares de segurança que o conhecimento técnico, por vezes, tende a oferecer, e uma humilde escuta àquele que mais sabe do que lhe causa uma doença: aquele que dela padece e sofre.
Que a medicina possa, cada vez mais, estar de mãos dadas e braços estendidos à vida que não apenas resiste, mas que abre e vislumbra caminhos que, se não vividos ou antes concebidos, foram sonhados há tanto mais tempo. Que seja possível a felicidade.