Inicio este texto respondendo à pergunta feita por Dandara a Pedro em uma das primeiras cenas de Dandara Através do Espelho (2016): “Quantas travestis você conhece?” Poucas, Dandara. E nenhuma é minha colega de trabalho. Em nome da equipe editorial desta revista, convido autorxs trans interessadxs a publicarem textos sobre audiovisual a nos contactarem via email ou inbox em nossa página do facebook. Feito o preâmbulo auto-reflexivo, pretendo discutir, com este ensaio, questões que extrapolam as ideias de representação e representatividade trans através de duas obras que utilizam a frágil materialidade da imagem em movimento para tensionar os estatutos de real e ficcional nas narrativas.
Tangerine (2015), longa metragem estadunidense estrelado pelas atrizes trans Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor, foi quase todo gravado em locações utilizando a câmera de um iPhone, o que possibilitou a produção de imagens que muito se aproximam de intervenções performativas em espaços públicos. O próprio diretor Sean S. Baker incorporou em entrevistas o termo “pop verité”, utilizado por um crítico na época de lançamento do filme para caracterizar a estética adotada. Além da forma de produção, o trabalho na pós foi crucial para a identidade estilística: diferente do procedimento usado em suas obras anteriores, em que as cores eram “lavadas” da imagem para atingir um maior efeito de real, Baker aposta na saturação em Tangerine. O resultado é uma imagem plástica e pulsante, o que nos remete à projeção de Dandara Através do Espelho¹. A peça se configura como uma espécie de instalação com videoarte e performance, uma semi-arena em que o público tem acesso às memórias de Dandara assistindo à realização em tempo real do filme de sua vida e à sua simultânea projeção no cenário. As imagens refletidas na tela cênica são imperfeitas. Eventualmente, a representação visual da atriz Dandara Vital e do ator Pedro Bento se transformam em nuvens de pixels, outras vezes quase desaparecem, mas acabam resistindo e se fundindo com os ruídos da transmissão sem fio.
Ambas as obras aqui comentadas tematizam o universo de mulheres transgêneras através da dissolução dos gêneros “documentário” e “ficção”. Seja a trajetória de transição de Dandara, que utiliza o audiovisual em um palco com elementos documentais, ou a anedota de vingança de Sin-Dee Rella, que descobre que seu namorado a está traindo com uma mulher cisgênera e sai pelas ruas de Los Angeles acompanhada pela câmera, as duas obras mesclam gestos e linguagens que fundem realidade e representação. Este procedimento em si não é nenhuma novidade na história do cinema ou do teatro, mas elejo-o metodologicamente para pensarmos em como a presença das atrizes trans afeta as imagens moventes dessas obras. Se pensarmos na transgeneridade como potência de explicitação do caráter performativo da própria noção de gênero e na fundação ficcional de gêneros sexuais construída em nossa sociedade, é interessante observar como essa problematização de gênero se imbrica nas estruturas narrativas. Como pensar em gêneros narrativos únicos ou puros, quando os elementos contidos na obra transgridem e transbordam essas noções? Portanto, ao invés de usarmos termos como docfic, docudrama, neo-realismo na ficção, narrativas híbridas ou tantos outros que já surgiram, proponho aqui o trans-realismo, que considero uma categoria muito mais pintosa e, por isso, mais adequada à ocasião. As obras comentadas abaixo apresentam uma imagem trans que busca um maior “realismo” através, paradoxalmente, de uma representação extremamente artificiosa dos corpos de suas atrizes.
Poderíamos fazer uma lista com todas as recentes polêmicas envolvendo problemas com representatividade trans em trabalhos ficcionais. Enquanto não são comumente escaladxs atores e atrizes trans para atuar como personagens cis, o caminho contrário é recorrente. Eddie Redmayne no longa A Garota Dinamarquesa (2015), Andrew Garfield no clipe We Exist (2014), de Arcade Fire, Cauã Reymond no clipe Your Armies (2016), de Barbara Ohana, são alguns dos exemplos recentes. Todos foram duramente atacados e até mesmo Silvero Pereira em seu monólogo BR-Trans (2013-) foi alvo de críticas nas redes sociais. Caio Blat poderia ser mais um ator a integrar essa lista se o antigo sonho de Dandara fosse realizado e um filme sobre sua vida fosse produzido (ela declara-se apaixonada pelo galã), mas seu projeto de longa não se concretizou. Ao invés disso, ela decidiu que “precisava eu mesma fazer isso”, então montou uma peça-filme, atuando junto com seu colega Pedro. Depois dos calorosos aplausos, Dandara encerra o espetáculo agradecendo ao público e ressaltando a importância de uma mulher trans ser protagonista de sua própria história.²
Dandara Através do Espelho já teria sua relevância cultural simplesmente pelo fato de ter uma travesti no palco e no telão do cenário. No entanto, o espetáculo ultrapassa essa camada (rasteira) de possível legitimação artística a priori e constrói um jogo de reflexões e espelhamentos utilizando o recurso do telão, no qual são projetadas as imagens captadas em tempo real por uma câmera filmadora. Na tela, além das imagens em movimento – fantasmas do presente, efêmeros e exclusivos de cada apresentação – há também pequenos ganchos em que são pendurados os objetos apresentados por Dandara. Alguns objetos são meros adereços utilizados em cena, mas muitos deles são índices de “real” trazidos pela atriz: porta-retratos com fotos de situações previamente relatadas, presentes de ex-namorados, cartas de amor, entre outros “documentos” que compõem a encenação ficcional e, assim como o corpo de Dandara, carregam histórias e memórias. O encontro do teatro documentário com autoficção e cinema ao vivo é a solução inventada pela moça para compartilhar com o público sua biografia. Mais que a mera existência de um corpo trans diante do público, Dandara Através do Espelho propõe um exercício imagético em constante construção e desconstrução, em que Pedro interpreta a si mesmo e a Dandara no passado, antes de transicionar, enquanto Dandara interpreta a si mesma e os personagens coadjuvantes de sua história – assim como o público, que também é convidado a participar. Tudo isso mediado pelo artifício da câmera e projetado na tela cênica, elemento este que consolida o fluxo presente e “ficcional” das imagens projetadas sobre os objetos fixos, estáticos e “reais” que ali resistem. Eles atravessam tempo, espaço e chegam até o púbico como sobreviventes, tal qual Dandara, que se emociona ao declarar-se parte de um seleto grupo de travestis que consegue viver até os 36 anos.
Antes de passarmos a Tangerine, vale ressaltar alguns dos momentos mais interessantes do uso do vídeo por Dandara (e sua equipe de realizadores extra-cena). Apesar dela ironicamente afirmar ter começado sua jornada autobiográfica depois de assistir a um tutorial no YouTube sobre “como fazer um filme em 7 passos”, são construídas imagens cinematograficamente muito potentes. Destaco, principalmente, o uso do close-up na cena em que a mãe expulsa Dandara de casa e todo o bloco sobre sua atuação como prostituta. Esse último capítulo inicia, na verdade, com um super-close dos olhos de Dandara enquanto Pedro se posiciona na frente da tela. A voz de Dandara fala através de seus olhos agigantados e sobrepõe-se a todos os objetos acumulados nos ganchinhos, cobrindo também o corpo de Pedro travestido para o trabalho noturno. Em seguida, os atores executam um pequeno e inventivo recurso visual, no qual a janela de um carro é simulada com um pedaço de plástico posicionado na frente da câmera, que sobe e desce para abordar Pedro (interpretando Dandara) no ponto. Essa cena proporciona um dos momentos mais bonitos da peça, em que um possível cliente se aproxima da travesti e diz: “Sabe o que é? É que eu só tenho dez reais… você topa?” O tempo da reação do rosto de Pedro pensando sobre a proposta absurda de programa dilata-se na tela e adquire dimensão cinematográfica.
Situações semelhantes aparecem em Tangerine, que mergulha no submundo das ruas de Hollywood, acompanhando prostitutas travestis que esbarram em outras personas trans, prostitutas cis, cafetões, traficantes de drogas, famílias de imigrantes armênios, orientais e todo um universo marginalizado que caminha pela mesma calçada da fama que os turistas e as celebridades do mainstream. O iPhone de Baker se disfarça nas ruas de Los Angeles para revelar estas figuras e traçar suas relações, assim como a câmera 16mm de Andy Warhol se dedicou às trans de Nova Iorque e a de John Waters construiu todo um ambiente trash e camp orbitando ao redor da drag queen Divine em Baltimore. A maior parte da narrativa de Tangerine se concentra em observar esses corpos se movendo geralmente com acompanhamento não-diegético de alguma música eletrônica ou hip hop. A montagem é clipada, alguns planos curtos seguidos de outros mais longos, o movimento seguindo a batida da música. Nesses momentos musicais, o filme evidencia seu deslumbramento pelos corpos trans transitando pela cidade, desfilando nas calçadas ou passeando de ônibus. Mais importante que as ações dramáticas que elas executam é observar esta pulsação e experimentar movimentos de câmera ao redor delas, o que é facilitado pela leveza da câmera de celular – há relatos de que alguns planos tenham sido rodados utilizando uma bicicleta como dolly.
Se uma traição conjugal anunciada nos dois minutos iniciais do filme é o estopim narrativo para colocar aqueles corpos em movimento, no final, um ato de violência transfóbica funciona como ferramenta de apaziguamento de conflitos entre as personagens. As meninas brigam umas com as outras, agridem-se verbal e fisicamente durante toda a projeção. No entanto, é literalmente um balde de urina fria que as retira da bolha de brigas internas. Diante de uma sociedade violenta e intolerante, resta-lhes o afeto umas com as outras. E a necessidade de união para enfrentar a cis-realidade opressora.