Como filmar o outro sem dominá-lo nem reduzi-lo? Como dar conta da força de um combate, de uma reivindicação de justiça e de dignidade, da riqueza de uma cultura, da singularidade de uma prática, sem caricaturá-las, sem traí-las com uma tradução turística ou publicitária? (Jean-Louis Comolli)1
Se o tema central da 12ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto é a indagação em torno de quem conta a história de mulheres, índios e negros dentro do cinema brasileiro, podemos deslocar tal problemática da consideração urgente do lugar de fala dos sujeitos que filmam para os modos de operação fílmica que tais sujeitos inventam. Lugar de fala implica uma necessária adequação entre a integralidade de um sujeito e o discurso que ele produz. O confronto com os filmes e seus procedimentos pode colocar em crise tal adequação e perturbar o solo das representações que se cristaliza ou se reduz pelo viés das identidades.
Filmes como Martírio (2016), de Vincent Carelli – exibido na mostra – e Serras da Desordem (2005), de Andrea Tonacci – lembrado nos seminários pela presença da montadora Cristina Amaral, uma das homenageadas desta edição – são talvez os dois exemplos mais emblemáticos de como é possível tratar da questão indígena e, ao mesmo tempo, colocar em cheque a pergunta pelo lugar de fala. Uma análise detalhada dos dois longas-metragens – sem a habitual desconfiança de que são realizados por dois homens brancos – logo irá perceber que seus gestos fílmicos implicam forças de engajamento com o mundo em que só é possível fazer um filme a partir de uma transformação recíproca entre quem filma e quem é filmado.
Por outro lado, não há como ficar indiferente aos inúmeros contraexemplos que marcam a história do cinema brasileiro. Exibidos na primeira sessão da mostra histórica da CineOP, os curtas-metragens Rituais e Festas Borôro (1917), de Luiz Thomaz Reis, e Kuarup (1962), de Heinz Forthmann, partem de esquematismos formais semelhantes no trato com os povos indígenas: a criação de uma narrativa onisciente totalizante, completamente externa e estranha ao universo filmado, e que garante uma distância. Tal distanciamento é imbuído menos de uma preocupação ética da consideração das diferenças e mais reveladora do jogo de instrumentalização do realizador pelo pedestal da soberania em relação a quem ele está filmando.
Realizado por um militar envolvido com as expedições da Comissão Rondon e dentro do projeto do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, o filme do Major Thomaz Reis é uma montagem de registros imagéticos dos rituais dos índios borôro, alternadas com cartelas explicativas. Sem som e ancorado apenas por imagens em preto e branco dos índios em cenas de caças de animais, trabalhos de artesania, cerimônias fúnebres ou festas celebratórias, o filme se constrói pelo discurso descritivo de observação das imagens, que revelam suas distâncias já pela composição de planos gerais e de conjuntos. O texto é carregado do olhar científico de quem observa e transparece um tom de exotismo, principalmente quando demonstra espanto em relação às técnicas usadas pelos índios para pescar (descritas como “deixar os peixes atordoados”) ou às coreografias dos rituais (em que a cartela interpela o espectador com a frase “vê-se como é bem estudada a dança”).
É inegável o pioneirismo de Rituais e Festas Borôro, entre tantos filmes de expedição, como registro visual de povos indígenas no Brasil no início do século XX, dentro de uma perspectiva de construção de uma identidade nacional e da tentativa de entender o país como nação. Esse pensamento terá continuidade em Kuarup, feito no início dos anos 60, pouco antes da ditadura militar. Com uma força expressiva maior que o filme anterior, por ser repleto de planos coloridos e mais próximos com closes e detalhes, o curta de Heinz Forthmann carrega o peso de uma narração austera em voz over a enfatizar os saberes educativos das tribos indígenas do Xingu. Feito sob a chancela do Instituto Nacional de Cinema Educativo, o propósito de Kuarup fica evidente pelo esforço de traduzir didaticamente os costumes indígenas como práticas pedagógicas: o pajé é o “professor” que irá “transmitir às gerações mais novas o patrimônio cultural”; “a criança se adestra nas atividades indispensáveis em sua sobrevivência como adulto”; o “comportamento imitativo” é indispensável à “escolarização” das mulheres.
A visão do índio como o bom selvagem que inspira modelos educativos em Kuarup terá seu ponto de inflexão a partir do olhar caricato e intransigente dos personagens burgueses representados em Mato Eles? (1983), de Sérgio Bianchi. Do mesmo modo que os filmes anteriores, esse média-metragem também cria uma narrativa autocentrada na lógica do sujeito que filma, no entanto procura explicitar – ainda que pela chave do cinismo – os mecanismos de poder do homem branco sobre o índio. Ao partir do caso de uma liderança indígena assassinada no Sudoeste do Paraná, na década de 80, o filme procura investigar a exploração dos índios pelas madeireiras da região e a existência contraditória de uma serraria da FUNAI dentro da comunidade indígena. A força de Mato Eles? reside na visceralidade pela maneira como enxerga, em tom crítico e irônico, a capitalização da imagem do índio, que é massacrado e marginalizado. Não existe ponte conciliável entre branco e índio, porque desde sempre a relação estaria comprometida pelas marcas de uma colonização de base exploratória. Bianchi regurgita um mal estar de fundo e coloca um problema de método – talvez mais profundo que o simples lugar de fala – com o qual todo realizador não indígena precisa se confrontar: quais poderes se mobilizam no ato de filmar?