Estruturas em decomposição, matéria de resistência: Clara e o tempo que habita em Aquarius

O que se é, de fato, possível dizer sobre alguma condição feminina? Debruçamo-nos sobre esse tema, alimentamos dúvidas, optamos pela sabedoria de não reconhecer uma resposta. Cremos, porém, que há uma característica indelével das mulheres que sobrevivem: resistir. Fundar em si recônditos de resiliência, em que, em face a tragédias, reconfiguram modos de ser possível. Em Aquarius, a personagem Clara, interpretada por Sônia Braga, sobressai papéis destinados ao feminino. Tal como tia Vera, cujo aniversário de 70 anos é celebrado ainda nos anos 80, a trajetória de Clara foi marcada pela persistência pelo direito à fala, ao desejo. Resistir habitando um prédio antigo, alvo do interesse da Bonfim Imobilliária, não é perseguir qualquer apego material: é defender modos de viver em comum e íntimos em que seja possível construir com espaços algo além da utilidade.

No universo de Aquarius, o mundo da imobiliária é essencialmente masculino, os personagens têm “sangue nos olhos”, como Diego placidamente ameaça Clara. O Capital-câncer vai lentamente corroer as memórias e histórias pessoais contidas no prédio se Clara não reverter a situação. A vida está incrustada na matéria, nos objetos, nos corpos, e a lógica funcionalista e utilitarista vai de encontro à forma de Clara viver o mundo. O amarre dos cabelos, a interdição do toque no seio operado, as rugas na face que não se envergonha de sorrir: o corpo de Clara, assim como os objetos, como o prédio, carrega consigo uma memória física, visual. E é curioso como Clara se configura como uma espécie de permanência de Tia Vera, preservando o móvel de madeira na casa, recipiente de memórias de Vera. O lugar de visionamento em Aquarius é fascinado por Clara. Quando ela discute com Diego, a câmera está posicionada em contra-plongée, filmando-a de maneira imponente, enquanto o rapaz é visto de cima, quase na altura do olhar. Sendo que seus olhares não se cruzam, ou seja, o desnível da câmera não é um recurso para deixar a cena mais “confortável” para o espectador, compensando uma eventual diferença de altura dos atores (até porque Sônia Braga é mais baixa que Humberto Carrão); ao invés disso, trata-se de um gesto puramente expressivo, discursivo. A forma de Clara viver o mundo é abraçada também pela estrutura narrativa, que deixa inúmeras tensões não-resolvidas, sem se preocupar com uma lógica de funcionalidade. Certas situações ocorrem sem uma utilidade óbvia e vão se acumulando no filme, com o mesmo valor e o mesmo peso que as cenas que poderiam estar associadas à noção de causa e efeito.

Diego (Humberto Carrão), Ladjane (Zoraide Coleto) e Clara (Sônia Braga) em Aquarius

Diego (Humberto Carrão), Ladjane (Zoraide Coleto) e Clara (Sônia Braga) em “Aquarius”

Se em O som ao redor, Kleber Mendonça Filho já nos apresentava um horizonte desencantado e sombrio da vida em cidades no Brasil, em Aquarius o aspecto tenebroso advém de pequenos elementos da narrativa pessoal dos personagens. Clara habita um mundo em que a noção de casa, de abrigo, está em desmantelamento: um dos filhos se distancia e não apresenta o namorado, outra parece mediar as relações com a mãe por interesse, ser gentil é símbolo de fraqueza, o corpo carrega em si uma morada irredutivelmente transformada após a doença. Enquanto a morte não se materializar, será preciso reinventar-se quantas vezes forem possíveis para que não se reprima ou se guarde lamentos, mágoas ou o aparecimento de um câncer. Enquanto houver vida, será necessário causar câncer nas estruturas doentes – seja a família, seja o mercado imobiliário.

É preocupante, porém, que o empoderamento em Aquarius permaneça em uma secção de classe. Ladjane, mulher também mais velha, empregada de Clara, parece persistir em um lugar em que o acesso ao desejo, à mudança, ao progresso lhe é negado. Se Clara é representada de forma condolescente ao ir na comemoração do aniversário do filho assassinado da empregada, ela não a convida para que vá dançar e se divertir com outras amigas. A alegria como gesto revolucionário não é permitida a todos: para uma mulher de classe média, é permitido ir dançar; para uma senhora pobre que é vítima da violência, é possível apenas recordar e se entristecer pela lembrança do ausente. O único gesto de contestação de Ladjane é encarado de forma repreensiva pela família de Clara: quando eles se reúnem para selecionar fotos para um álbum de casamentos, Ladjane invade a sala e a cena mostrando uma humilde foto 3X4 do filho morto. A representação e a possibilidade de se estar presentes são segmentados em classes como é na rotina da família: como o esquecimento de Clara do nome de uma empregada que só é recordado posteriomente, o corpo do filho vitimizado de Ladjane só existe em imagem, cuja visão é refutada. Aquarius se constrói de forma narrativamente maniqueísta. Os homens da empreiteira e do jornalismo hegemônico são maus e vis, enquanto a heroína é íntegra e resiste em um prédio prestes a ruir, lutando contra armações e conspirações. No entanto, essa heroína pertence (e existe) na classe média: o poder de salvação e de vitória pode ser enaltecido pelos empregados da empreiteira ou do guarda-vidas, mas não se voltam à realidade deles.

Em Aquarius, o espectador é convidado a acompanhar Clara e toda a linguagem do filme está atrelada à subjetividade dessa personagem. Seguindo a linhagem dos clássicos narrativos, em especial os filmes identificados com os gêneros do suspense e horror, a tradicional estrutura de plano ponto-de-vista é recorrente em toda a decupagem. Clara olha, vemos o que ela está vendo, em seguida voltamos ao seu rosto para verificar sua reação. Uma sequência emblemática nesse sentido ocorre no momento em que Clara sobe as escadas do prédio para espiar a festa que seus vizinhos estão fazendo. Ela vai lentamente até a porta, aproxima-se, olha pela fresta. Vê uma animada orgia. Continua olhando. Os participantes do sexo grupal não parecem notar a presença de Clara. Ela sorri, maliciosamente. Outra ferramenta de identificação é a do flashback, quando os pensamentos de Clara invadem o fluxo de imagens do presente: um exemplo são os trechos em que ela se esforça para rememorar a noite com o garoto de programa, as lembranças vêm fragmentadas, descontínuas. Há, ainda, momentos em que o comportamento da câmera é abalado por uma notícia grave recebida por Clara, passando do tripé para uma desconfortável câmera na mão. No entanto, o filme radicaliza alguns procedimentos associados aos códigos do suspense, abusando de zooms, fusões, duplo foco na imagem, trucagens em geral e até mesmo utiliza o “efeito Hitchcock” em uma sequência de sonho. Esses artifícios evidenciam um olhar que se impõe enquanto olhar, enquanto cinema, conferindo uma camada de opacidade ao filme. Ele está ali construindo um discurso com aquela narrativa, e são momentos como estes que solapam uma eventual ingenuidade no espectador, lembrando-o estar diante de uma invenção de mundo, de um recorte parcial feito por um olhar bem específico.

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Em um contexto recente da política brasileira, consolidado nas eleições de 2014 e aguçado em 2016, a bipolarização é preponderante, reiterada por muitos discursos do “bem contra o mal”. Aquarius emerge, assim, como símbolo de uma insurreição que não ultrapassa a insuficiência da busca pelo herói.  Pela sessões de exibição do filme relatadas em reportagens, gritos de “Fora Temer” ecoam, inebriados, sob a reação de um público que permanece suspenso e afetado pela força de Clara. No entanto, algo se constrange e não se resolve: qual a dimensão política que não evita que sigamos na marcha do espetáculo das paixões, apenas ovacionando heróis e odiando vilões em um plano cujas ações materiais são nebulosas? Voltando a uma história recente, notamos semelhanças com as reações do público durante as exibições de Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora É Outro (2010). Capitão Nascimento enfrentava traficantes de drogas e políticos corruptos (sempre com bastante violência) e, em ambos os filmes, Nascimento humilhava os vilões, exaltado pelos movimentos de câmera. Coincidentemente (ou não), os dois longas tiveram ampla repercussão quando de seus lançamentos, foram bem sucedidos na bilheteria e há inúmeros relatos de aplausos durante as projeções, assim como outros indícios de intenso engajamento do público com o herói que falava e fazia, na tela, tudo aquilo que se queria fazer na vida “real”. O herói, porém, agora é uma senhora, mãe de família que fuma maconha, goza com sexo comprado, gosta de beber vinho e dançar sozinha em sua sala de estar. Essa heroína reanima a esquerda insatisfeita com o golpe de Estado que se consolidou no dia anterior ao lançamento comercial de Aquarius. Em 2016, não é mais a polícia militar que vai salvar o país, nem um ex-coronel do BOPE, estressado e amargurado, mas uma personagem feminina cuja revolução individual permanece ligada às paredes, aos corredores e a vista do Edifício Aquarius.

Notas:
¹ Junção de dolly com zoom popularizada por Alfred Hitchcock em Um Corpo Que Cai (1958) e utilizada geralmente para causar efeito de vertigem.
² Seleção de textos sobre o assunto: El País, FolhaCorreio do Povo.
Por Laís Ferreira e Vitor Medeiros