Em umas das cenas de Vazio do lado de fora (Eduardo Brandão Pinto, 2016), vemos um plano em que há o movimento das garras de um trator ao fundo, um senhora que sabemos que reza, um homem com o pé descalço e um jabuti que se movimenta devagar, em frente a um tênis deixado ali. O homem se escora na parte de um muro que existia e, por toda parte, há pedras amontoadas. Já não se trata mais de um processo de demolição, o desejo de revelar a remoção daquela comunidade: animal, máquina e gente convivem juntos, em uma harmonia estranha, que se orquestra apenas naquele território. Há algo que persiste apesar da violência do Estado que opera na desapropriação do espaço da Vila Autódromo: aquele não é um lugar qualquer, possível de ser removido, transferido para outra região. A destruição não o apaga, provoca a sua morte: como vestígio pulsante, o que persiste e existe ainda é a vida possível, o cotidiano que se reconfigura e resiste porque, no limite, não pode ser deslocado. Se, em função dos jogos olímpicos, há um projeto de governo que pensa a cidade não a partir de todos que nela vivem, mas em prol de atender objetivos econômicos específicos, o curta-metragem de Pinto radicaliza uma proposta contrária: a cidade ainda será dos homens que nela circulam, mesmo que a vida se modifique entre escombros, coberta de poeira, desamparada e violenta.
Se o acesso a esse mundo se torna vazio do lado de fora, isso acontece na impossibilidade de um lugar de dentro. Um varal já não consegue delimitar o que seria uma divisão entre a vida privada e a experiência pública: enquanto colocam roupas para secar, cujas estampas ironicamente dizem “I love Rio”, as mulheres conversam sobre as exigências dos clientes para as roupas sem dobras, em perfeitas condições. É ali, em um ambiente que, a um primeiro olhar, parece impossível a qualquer ordem, que reclamam da camisinha deixada por um vizinho, o que uma das personagens afirma ter jogado fora. Se já não há mais limites entre os chãos das casas, um piso que divida um lar do outro, resta, ainda, o que aqueles que ali habitam possam considerar como fronteira entre si e o mundo, entre uma residência e outra. Morar e habitar parecem transcender as divisas de uma parede, de um teto: consistem e sobrevivem na maneira pela qual aquelas pessoas compreendem o seu cotidiano, a sua vida, os seus desejos e necessidades. Da mesma maneira, ainda é possível almoçar junto, equilibrar-se sobre as pedras, pintar as unhas, tocar um piano de brinquedo por dentre os escombros. Há algo que o Estado ainda não é capaz de destruir ou levar consigo: o desejo de ficar ali, o pertencimento e o apreço por um lugar medido já não mais por suas construções ou limites, mas pelo afeto e hábito que aqueles que ali moraram possuem. Nesse sentido, também uma senhora reza, com um ramo na orelha, utilizando um chaveiro como instrumento e chama sua divindade, enquanto há velas que vemos através de um buraco de uma parede. Essa fé não é acessível a todos: logo depois que ela acaba de rezar, um homem do lado de cima dessa casa coloca uma escada no chão, para descer de um ponto ao outro, com o rosto coberto por uma máscara e vestindo uma roupa que o protegerá da poeira e de doenças. O trabalho e o progresso comandados por um plano de Estado não têm a fé como proteção ou esperança, mas os instrumentos da lógica, as ferramentas que permitem ir de um lugar ao outro sem o risco de ser afetado ou machucado.
Vazio do lado de fora (Eduardo Brandão Pinto, 2016)
Em Vazio do lado de fora, escolher a ficção como instrumento para contar aquela história parece agir como uma maneira de vasculhar ruínas, escrever uma narrativa que é diferente daquela divulgada pelo Estado ou por enquadramentos midiáticos favoráveis à remoção. Não se trata de uma nostalgia, de uma tristeza por aquilo que foi, mas viver e imaginar por aquilo que ainda é, ou é possível ser. Não há raiva ou melancolia: do buraco de uma parede, uma moça passa batom, enquanto, do lado de fora, a festa já começou, todos dançam e é possível escutá-la ainda sem ir até o lugar do baile. Da mesma forma, um casal, que poderia se deitar em qualquer lugar, mesmo que no chão, continua ali, naquele território. Em penumbra, eles estão sonhando com o mar e com a orientação de uma estrela, ao lado de um pedaço de muro onde agora só nos é possível ver o pezinho de uma bailarina sem corpo. Imaginar parece operar de maneira ainda mais potente e resiliente que o ato de lembrar, pensar o que foi: é somente por meio do sonho, do afastamento da concepção de uma realidade em que tudo poderia ser compreendido como destruído que a vida ainda pode prevalecer. Vivenciar o vestígio parece ser o que intercede de forma contrária à morte: ainda que em destroços, aquele não é um lugar qualquer, mas é e ainda será a Vila Autódromo.