Fala
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
Orides Fontela
O que pode mesmo o cinema e a imagem reter enquanto o tempo é a matéria que se dissipa? Ou, em outra medida, o que a imagem pode dissipar e acusar na matéria o tempo que nunca é, de fato, retido? Algumas respostas não se materializam. São, pela escrita própria das imagens, impossível de se colocarem como narrativa, diálogo ou informação. No entanto, talvez ainda residirá na imagem um regime em que qualquer sentido, ainda que despreendido de fala ou narração, permanece com a mesma densidade e pungência que a palavra. Em Exilados do Vulcão (2013), de Paula Gaitán, há uma investigação de um passado que, se acessado pela palavra escrita de um diário, apenas se materializa pela imagem imaginada, pela imbricação dos corpos e pela observação atenta e silenciosa do que é possível apreender da matéria vivente. A memória sobre a qual o filme se debruça não é algo organizado cronologicamente pelo tempo vivido ou em retrospecto aos acontecimentos passados; estabelece, porém, concatenações próprias entre afeto, experiência e imaginação. Elementos que, como investigaremos nesse texto, podem ser compreendidos por meio das teorias de Henri Bergson (1990). Arriscamos, também, a compreender a representação dos corpos e a fotografia do filme como atenções de uma mulher que olha.
Após um incêndio que destrói a casa e é responsável pela morte do homem que amou, a mulher protagonista de Exilados resgata um diário em que há as memórias do antigo companheiro. A personagem se indaga: “Me pergunto como era a sensação de estar perdendo a memória. Se as coisas eram esquecidas aos poucos. Ou se tudo desaparecia de repente. Se a perda de memória é diferente do esquecimento”. A narrativa imprecisa do filme nos fornece pistas e indícios para que possamos interpretar a fala da protagonista como se referisse a um eventual problema neurológico que houvera causado a perda de memória do companheiro. Entretanto, é impossível afirmar esta condição, sugerida na imagem apenas por uma sequência em que a mulher observa o exame radiológico de um crânio. A fala citada acima poderia, talvez, corresponder a uma projeção dos próprios estados de esquecimento. Nesse sentido, é interessante a recorrência de elementos como a névoa, poeira, fumaça e nuvem para dar volume ao ar, tornando-o palpável e visível enquanto matéria e escondendo o que está atrás. Sob essa opacidade, o longa-metragem de Gaitán compreende a indiscernibilidade e mutabilidade entre os tempos passado, presente e futuro.
Em Matéria e memória, Henri Bergson (1990) debruça-se sobre a história da filosofia para elucidar formas possíveis da apreensão e registro do tempo vivido. A matéria seria constituída de imagens e não haveria coincidência entre imagem e representação. Segundo o filósofo, espírito, matéria e tempo pertenceriam a um só todo. Essas imagens estariam no mundo sob um regime de indeterminação e a percepção seria construída a partir do estímulo dessas imagens em movimento. Para o filósofo, o que distinguiria presente e passado seria a capacidade sensória motora do presente, em que haveria a possibilidade de ação, ao passo que o passado corresponderia à imagem daquilo que já foi. Porém, ambos seriam influentes na construção da memória. Quando assistimos a Exilados do Vulcão, percebemos o esforço de construir presente e passado em uma só imagem. Pensemos, por exemplo, na cena em que a mulher protagonista acompanha – ainda que por meio da própria recordação e reconstrução do passado escrito no diário e impresso nas fotografias – o envolvimento do companheiro morto com outra mulher em uma espécie de pântano. Nessa cena, ambas as mulheres e o marido nunca ocupam o mesmo quadro: há os planos do homem que se deita com a amante anterior, há os outros em que a protagonista espera no mesmo ambiente deitada sobre folhas. Sob a ação rememorada e passada não é mais possível agir; no presente, porém, é possível visitar o ambiente que se recorda e, sob o efeito angustiante do passado do antigo companheiro, esforçar-se em movimento para se apropriar de ações encerradas.
Ainda pensando na montagem que promove aproximações de corpos em um tempo-espaço indeterminado, podemos analisar a sequência emblemática do encontro dos dois amantes na mesa manuseando fotos. Eles só coexistem no mesmo plano através das mãos, em planos-detalhe; seus rostos não coabitam o mesmo quadro nem o mesmo fluxo imagético, configurando uma espécie de montagem proibida baziniana¹. De quem são aquelas mãos? A voz nesta sequência está sempre em off. Quando a mulher fez aquelas indagações? A situação aconteceu fisicamente ou está sucedendo em um outro plano? Os rostos só se encontram visualmente na cena seguinte, mas o toque é impossível. O reflexo do homem (Vincenzo Amato) se sobrepõe ao rosto de Clara. O máximo que ela consegue fazer é espremer a ponta do nariz no vidro.
Para Bergson, o corpo seria apenas uma imagem que organizaria as imagens exteriores, não sendo o cérebro um elemento responsável pela percepção anterior à afecção do movimento. O filósofo argumenta: “tudo se passa como se, nesse conjunto de imagens que chamo universo, nada se pudesse produzir realmente novo a não ser por intermédio de certas imagens particulares, cujo modelo me é fornecido pelo meu corpo” (BERGSON, 1990, p.10). Em Exilados, é curioso pensarmos que, não somente o corpo é posto em um lugar de deslocamento e indeterminação em contato com as imagens do mundo – seja em um campo aberto de terra, seja no alto de uma laje sem grades de uma cobertura -, como aparece em um regime particular de tempo e atenção. Filósofa e artista múltipla, Paula Gaitán é reconhecida pelo experimentalismo em suas obras. Em Exilados, podemos dizer que há um olhar para o corpo da protagonista que, em si, é emblemático na reconstrução de um passado cuja representação ainda deve ser construída. Nas cenas de sexo, os planos se detém com lentidão e cuidado sobre o corpo que jaz após o prazer e escolhas estéticas que tendem a abstraí-lo de seu reconhecimento habitual. A predominância do uso da lente teleobjetiva contribui para este efeito, recortando fragmentos e achatando os corpos e paisagens, figuras e fundos em formas. Em determinado momento, há quase uma dissolução de uma curva da cintura para que a compreendamos como um pequeno vale, um declínio em um morro como tantos outros que estão nas cenas de paisagens do longa. Os corpos adquirem status de lugar, de paisagem, radicalizado na sequência em que animais de brinquedo são colocados sobre a barriga do homem.
Ao investigar – e reconstruir – os caminhos do antigo companheiro, a mulher protagonista inicia uma outra relação com os espaços habitados, passando a se relacionar e a ser afetada por eles em uma ordem que não é apenas a órbita da vida do companheiro que se foi. No início do filme, ela diz: “Por um momento acreditei que nós envelheceríamos juntos, até que fosse possível pensar os pensamentos do outro. Repito suas frases incessantemente para ter a mesma sensação que ele teve ao escrevê-las.” Tal qual o casal arqueólogo (Maira Senise e Daniel Passi), que mimetiza as poses dos afrescos, Clara resgata as imagens e palavras do amado para reviver algo que ela não sabe o que é. Ainda que a narrativa não se organize de forma cronológica, sua jornada segue o fluxo da superação de um ser que ultrapassa a dor e o sofrimento da perda para se reconfigurar enquanto indivíduo, enquanto sujeito. O filme proporciona ao espectador uma experiência sinestésica que remete à vivência dessa personagem: temos o uso de sobreposições, fusões, repetições e outros recursos de montagem que reiteram esse processo da personagem. Perto do final, ela solta as fotos ao vento, libertando-se daquelas imagens. Elza Soares canta “Solto, quase outro / Corpo, o meu corpo / Caminha sozinho sem você”, mas, ainda assim, a personagem de Clara lê o poema de Cummings (provavelmente escrito no diário de seu amado): “Levo o teu coração comigo. Levo-o dentro do meu coração. Nunca estou sem ele. Onde quer que eu vá, tu vais comigo, e o que quer que eu faça, é obra tua, meu amor.”