Em um contexto político contemporâneo tenebroso, o 49º Festival de Brasilia do Cinema Brasileiro instaurou, ainda que circunscrita, uma instância acolhedora – e propulsora – de protestos e contestações ao cenário da realidade brasileira atual. Em diversas sessões, o público interagiu verbalmente com o que era mostrado na tela, vaiando ou aplaudindo as imagens exibidas. A questão indígena atravessou alguns filmes escalados no evento, como Taego Awã (2016), de Marcela Borela e Henrique Borela, Martírio (2016) de Vincent Carelli, e Antes o tempo não acabava (2016), de Sérgio Andrade e Fábio Baldo. Neste texto, analisamos aspectos de Martírio, eleito melhor longa-metragem do festival pelo júri popular. Em tempos sombrios, nosso esforço é pensar como o cinema ainda é uma ferramenta de combate e resistência.
Vincent Carelli é um antrópologo e indigenista de histórica atuação em prol dos direitos e proteção dos povos indígenas no Brasil. Carelli atua em frentes diversas, nas quais se destacaram a fundação do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), em 1979, e, em 1986, a criação do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA). O VNA surgiu em uma ação junto aos índios Nambiquara, em que se gravava a vida na aldeia e exibia-se, logo em seguida, as imagens produzidas aos indígenas. A origem do projeto é comentada no longa-metragem Corumbiara (2009), também assinado por Carelli. Nesse filme, o diretor retoma a denúncia do massacre de índios na Gleba Corumbiara, em Rondônia, denunciado em 1985 pelo indigenista Marcelo Santos e objeto de gravações interrompidas, devido a ações institucionais em conjunto com ataques dos fazendeiros locais. Logo no início do filme, Carelli relata que a atividade do VNA estimulou que uma tribo voltasse a realizar um rito de furar os lábios dos jovens que não ocorria há 20 anos. A potencialidade do cinema passa a ser explorada de diversas formas pelo projeto ao longo das décadas e, a partir de 1997, são realizadas oficinas de produção e realização audiovisual para que os próprios índios dirijam filmes sobre sua realidade.
Em Martírio, Carelli aborda questões similares àquelas de Corumbiara. Nessa obra, o indigenista retoma imagens e memórias da resistência dos índios Guarani-Kaiowá pela preservação das suas terras e a perseverança das suas tradições, desde filmagens da década de 1990 à pesquisa de episódios seculares que resultaram em agressões a esses povos. Se, em Corumbiara, o cinema existia, sumariamente, como instrumento de visibilidade da presença dos índios na terra, aqui há uma maturidade maior no uso dos elementos próprios ao cinema. Em Corumbiara, somos surpreendidos com planos médios de um homem cujos óculos exibem reflexos que ofuscam a visão do seu rosto, outros cujos enquadramentos, especialmente nos encontros de brancos em suas residências, revelam estranhos focos em telas de computador, escolhas não conscientes. Agora, em Martírio, há o reconhecimento e controle preciso das habilidades possíveis do cinema no combate à opressão dos povos indígenas, especialmente da montagem, e do alcance da imagens em movimento na construção de outras narrativas sobre os índios no Brasil.
O uso da narração, mecanismo já utilizado em Corumbiara, é explorado com destreza, na escolha de um discurso que, antes de ser apenas comentador das imagens que vemos, é o depoimento – e o assombro – de um pesquisador que reflete sobre décadas de negligência do Estado brasileiro em proteção e respeito efetivo à vida indígena em território brasileiro. Se, como expõe Timothy Corrigan, “o ensaístico executa uma apresentação perfomativa do eu como uma espécie de autonegação em que estruturas narrativas ou experimentais são subsumidas no processo do pensamento por meio de uma experiência pública” (CORRIGAN, 2015, p.10), em Martírio, a subjetividade de Carelli é construída pelo contato com os índios, afetada pelo distanciamento deles e pelos ataques do Estado e do agronegócio. Nesse processo, o uso das imagens de arquivo e de trechos de transmissões em canais ligados à organização do poder no país, como a TV Senado, intensifica e corrobora a gravidade da memória e experiência de Carelli no trabalho em prol da sobrevivência dos índios Guarani-Kaiowá.
No início do longa-metragem, Carelli relata ter exibido, na Reserva de Saossoró, onde se encontram alojados índios Guarani-Kaiowá, imagens realizadas no final da década de 80 e início dos anos 90. Ao ter contato com essas imagens, os índios que ali estão se emocionam, ficam surpresos, desabafam dizendo que vêem a imagem de um parente que imaginavam não ser possível mais rever. Carelli aborda o conflito histórico nas terras ocupadas pelos índios Guarani Kaiowá, especialmente no Mato Grosso do Sul, capitaneado por fazendeiros e líderes do agronegócio. A obra apresenta o argumento recorrente na mídia massiva, que defenderia a invenção e a falácia do pertencimento histórico dos Guarani àquelas terras, além de representar um obstáculo ao desenvolvimento e à produção do país. No registro da fala de Kátia Abreu na TV Senado, o discurso é análogo: a senadora e antiga ministra da agricultura no Brasil alega que os índios Guarani-Kaiowá representam um movimento organizado contra a produção brasileira, constituindo um novo desafio a ser superado, em uma estratégia próxima à oposição ao código florestal e às ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). A montagem do filme possibilita que se veja e coteje dois cenários devastadores: o sofrimento, a violência e as perdas dos índios Guarani-Kaiowá que resistem pela manutenção da terra dos seus ancestrais e à ambição agressiva daqueles que celebram – e defendem – o boom do agronegócio no país.
A resistência dos índios Guarani-Kaiowá almeja a preservação dos seus tekohas, que representa o espaço físico – formado pela terra, roça, córregos, dentre outros elementos -, onde é possível a conservação do teko, modo de viver desse povo. Um dos princípios dos Guarani-Kaiowá, por exemplo, é o enterro dos seus ancestrais em terras próximas àquelas que habitam e a necessidade de permanecer nas proximidades do cemitério, o que os fortalece espiritualmente. Em várias cenas dos filmes, vemos a resistência dos índios que, acampados à beira da estrada ou ameaçados nos territórios das fazendas em que adentram após terem sido despossuídos da sua terra, declaram antes a preferência pela morte que o distanciamento daqueles que necessitam estarem próximos aonde a vida persiste. Essas imagens, em que se revela a empreitada de extermínio dos índios Guarani-Kaiowá protagonizada por autoridades e fazendeiros, conjugam-se ao registro de festas luxuosas dos pecuaristas, em que as luzes e música estridentes compõem a cena de um espetáculo em que o interesse monetário e por poder trucida a vida daqueles índios. É, como afirma um promotor de justiça que defende o respeito às terras desse povo, como se uma cabeça de gado valesse mais que a vida daquelas pessoas. Como se aquelas crianças e idosos, acusados pelos fazendeiros de se apropriarem de terras que não pertencem a eles, não tivesse nenhuma origem, nenhuma identidade, apenas vagassem por descampados em que o valor maior é sempre o do gado – e o enriquecimento milionário proporcionado por ele.
Afora a abordagem da situação contemporânea dos Guarani-Kaiowá, Carelli constrói um retrospecto histórico que elucida a opressão secular vivida por esse povo. Martírio retoma o episódio da Guerra do Paraguai, na época do império, em que o Brasil, como vencedor do conflito, agregou ao seu território a extensão de terra correspondente ao estado do Mato Grosso do Sul. Antes do combate bélico, as extensões dessa terra pertenciam às fronteiras paraguaias. Sem que se respeitassem a vida e os povos que existiam nessa terra, o império incentiva o cultivo de erva-mate nessas terras, considerada um dos principais produtos de exportação da época. Com a proclamação da República, são ampliadas as áreas de cultivo da planta, em uma lógica em que o povo indígena ali presente é tomado como mão-de-obra natural para a extração do produto. Em 1910, com a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), por Rondon, militar positivista que emplaca um ideário do índio civilizado, essa lógica é reforçada, com a perspectiva que os índios deveriam trabalhar obedientes para o progresso. Na década de 1940, durante o governo Vargas, a lógica desenvolvimentista conduz à Marcha para o Oeste, em que as terras dos Guarani-Kaiowá são tornadas colônias agrícolas e os índios estimulados a migrarem para reservas indígenas em que não só são colocados em áreas de terras muito pequenas como também desassociadas do seu modo de viver. Durante o regime militar, a formação da Guarda Rural Indígena (Grin) ensinou aos índios técnica de tortura e incentivou o uso de extrema violência no contato com eles. Carelli utiliza imagens da formatura de uma das turmas da Grin, em que se vê os índios exibindo as técnicas aprendidas, desfilando, dentre outras ações, a perfomance do pau-de-arara, uma das técnicas de tortura cruéis adotadas pelo regime. As operações da Grin seriam encerradas em 1971, mas suas ações marcariam violentamente índios vitimados a aprenderem, forçadamente, hábitos distintos daqueles do seu povo.
Na década de 80, a expansão do cultivo de açúcar e álcool representa a ameaça contundente aos índios Guarani-Kaiowá. Nesse período, o presidente Geisel propaga a ideia do índio emancipado, o qual é considerado aculturado e habita as terras de reservas. Os índios que persistem contrários a essa conduta são colocados à margem do direito, sem proteção das terras e da própria vida. Em 1983, o índio Marçal de Souza, um dos líderes da resistência, é assassinado com três tiros. Sem poder contar com a proteção legal e com a ação de um estado realmente concernente de sua cultura e necessidade, os índios Guarani-Kaiowá seguem, até hoje, resistindo pelas ações de retomada, em que esses povos ocupam as terras dos seus ancestrais e, com o auxílio dos seus apoiadores, permanecem batalhando judicialmente pela demarcação e respeito aos limites da área do seu povo. Os ataques, porém, são assassinos, devastadores. Como mostra Carelli, fazendeiros e pecuaristas se reúnem e organizam milícias privadas que têm como objetivo exterminar todos os índios que ocupam a área. Não há sequer pudor para essa orquestração violenta: Martírio mostra imagens das reuniões de pecuaristas e políticos que se articulam por um fundo para que possam financiar as guardas particulares. Acusados pela justiça de formação de milícia criminosa, os associados passam a defender um outro slogan, agora voltado para a criação de um fundo coletivo que custeia os processos aos fazendeiros pela agressão aos índios. Em 2011, o índio Nísio Gomes é assassinado à queima-roupa por três tiros. A investigação resulta na condenação de uma dessas guardas privadas, condenada a encerrar as atividades. No entanto, a equipe de Carelli volta à sede da empresa e, em plano fixo, vemos o prédio cuja reforma da fachada está sendo efetuada. Ao fundo, ouvimos uma conversa que soa como despretensiosa entre o documentarista e um dos trabalhadores. No diálogo, o operário diz, com tranquilidade, que, em verdade, a empresa não se encerra de fato, apenas muda a razão social e o nome para que siga operando.
Em 2015, os 25 anos do trabalho da Constituinte responsável pela Constituição de 1988 são marcados por uma ofensiva radical no desmantelamento dos direitos indígenas. A proposta da PEC 215, que retira do Executivo e passa para o legislativo a determinação final sobre os territórios indígenas, é votada em um congresso retrógrado, ruralista e conservador. Martírio exibe os depoimentos de deputados fazendeiros, que acusam a Funai de ser parte de uma conspiração contra o desenvolvimento e o progresso brasileiro. Na fala dos deputados do Mato Grosso do Sul, há a hipocrisia de alcunhar os índios Guarani-Kaiowá de assassinos, de nômades importados do Paraguai interessados nas terras brasileiras. Com gritos que acusam a presidente deposta Dilma Rousseff de “assassina”, os índios adentram o saguão da câmara na época da votação, enquanto outros afirmam se arrependerem de terem rezado tanto para que a presidente fosse eleita em 2014. A aprovação da emenda é um das grandes ameaças à vida dos povos indígenas em terras brasileiras, cada vez menos amparados pelo Estado do país. Apesar do cenário catastrófico, Carelli aborda a esperança, a persistência e a alegria de um povo que, mesmo às margens da estrada, à espreita da morte, segue prosseguindo pela batalha de poder viver como deve. Para os Guarani-Kaiowá, as terras são sagradas, não serão jamais dos que a tomam por meio do sangue e do fogo. A beleza desse povo de seguir vivo e altivo diante dos miseráveis homens brancos emociona Carelli que, em um relato, diz precisar ter parado o carro e chorar convulsivamente após se despedir dos índios na incerteza do seu destino. Em um contexto de trevas, nós, os espectadores, também nos afetamos e, em um Estado cuja legalidade é questionada e a exceção é a regra, levamos conosco a angústia de um país opressor, a luminosidade dos índios Guarani-Kaiowá que persistirão e viverão apesar do homem branco.