“Conhecer é ‘objetivar’, é poder distinguir no objeto o que lhe é intrínseco, do que pertence ao sujeito cognoscente, e que, como tal, foi indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto. Conhecer, assim, é dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito presente no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo ideal (ou ampliá-la demonstrativamente em vista da obtenção de efeitos críticos espetaculares)” Eduardo Viveiros em Metafísicas Canibais
Historicamente reconhecido pela importância política no cenário brasileiro, o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro não é apenas uma janela sobre a produção cinematográfica recente do país. É, também, uma oportunidade para se ter contato com modos de pensar e viver correntes no Brasil contemporâneo à realização do Festival. Na 49ª edição do evento, a promoção da mostra em meio a um golpe de Estado parlamentar em curso intensificou uma percepção dos filmes ali exibidos como uma oportunidade única para o diálogo e o debate político. Dentre as temáticas recorrentes, destacou-se a questão indígena, central em Martírio, de Vincent Carelli, vencedor do júri-popular e analisado nesse texto. Outro longa-metragem cujos protagonistas são índios é Antes o tempo não acabava (2016), de Sérgio Andrade e Fábio Baldo. Obra ficcional, o filme, que integrou a mostra competitiva do 49º Festival, aponta para o perigo das narrativas que simplificam e exotizam tradições dos outros.
Antes o tempo não acabava narra a história de Anderson, jovem indígena que está em conflito em relação ao pertencimento ao seu povo e identidade. O filme se inicia na infância do rapaz, quando ele é submetido a um ritual que coloca uma espécie de luva feita com palha e formigas cunhadas de formigas-de-fogo. O rito seria uma espécie de passagem para a juventude, em que enfrentar a dor provocada pelas picadas de inseto seria uma preparação para se defrontar com os obstáculos próprios do envelhecimento. Posteriormente, vemos Anderson em uma pequena casa pobre e da região periférica, em que vive com a mulher e com a filha. Contaminada por uma doença grave sobre a qual sabemos pouco, a menina é sacrificada pela tribo. A perda da filha parece disparar uma angústia e insatisfação que já assombravam o protagonista anteriormente, o qual deixa a casa da família e inicia outras buscas no mundo dos brancos. Anderson começa a trabalhar como cabeleireiro em um salão de beleza local, deseja homens e tem relações homossexuais, deita-se com uma mulher branca que deseja construir uma cooperativa de produção colaborativa na comunidade. Vemos Anderson passar batom vermelho e cantar um trecho de Single ladies enquanto se olha no espelho, caminhar sem rumos por uma rua em que parece que se encontram homens interessados pelos outros. Sem se reconhecer na tradição e nos modos de viver da tribo, Anderson percorre uma outra jornada, individual e dissociada dos meios de viver em comum da tribo, em que a fronteira com o mundo dos brancos é diluída.
A narrativa de Antes o tempo não acabava se inclina e constrói uma faceta em que exotiza a a cultura daquele povo, torna seus hábitos e cultura folclóricos. Os anciãos da tribo que argumentam que Anderson não percorreu o ritual de amadurecimento da forma correta e, por isso, tentam refazê-lo com o rapaz mais velho, são delineados de tal forma que parecem loucos, estranhos, atores de uma ideia bizarra e que não respeitam a liberdade individual de Anderson. Da mesma maneira, sob a necessidade de sacrifício da menina, as imagens do filme investem em uma compaixão despertada pela abordagem do sofrimento da mãe da criança, em que parece que o que é feito pela tribo é um ato insensível, cruel. Essa abordagem redutora da cosmologia desse povo é temerária, em um contexto brasileiro em que, sob a existência da PEC 2015¹, são correntes no país discursos redutores sobre esses povos, que não se atentam para as peculiaridades de cada tribo e para a necessidade de uma política efetiva para a preservação da cultura, vida e tradições desse povo.
Baseado na história real e drama individual do Anderson, o filme acolhe tensões que atravessam a individualidade de um personagem que adota as ferramentas de ficção como instrumento para perpassar a angústia que o enfrenta. No entanto, é necessário que compreendamos que os conceitos de individualidade entre índios e brancos operam de forma diferentes e acolher a representação e percepção do sujeito como balizadora da cosmologia da sua tribo é incorrer em discursos redutores. Se um dos desejos de Anderson é apagar o nome da sua tribo da sua identidade, adotar um nome do branco e de distanciar de formas de viver que parecem não o representar, o filme de Baldo e Andrade opera de forma semelhante. Se temos acesso ao lugar da cultura branca ao qual Anderson almeja, reconhecemos a canção de Beyoncé que ele entoa enquanto olha o espelho, estamos em contato com os discursos sobre a teoria queer, pouco temos contato com a realidade da tribo de Anderson. O contato com o filme, porém, pouco elucida sobre a complexidade desse modo de viver e nos concedendo apenas um acesso fragmentado do mundo daqueles índios. Não nos é preciso, nesta opressão em curso de um Estado em que se preza antes pela exceção e pela violência que pelo respeito e pela alteridade, olhares que simplifiquem, por meio dos brancos, vidas oprimidas dos índios.