Entrevista com as vampiras – um bate-papo monstruoso com a equipe de “Canto dos Ossos”

Vencedor do prêmio do júri na Mostra Aurora da 23ª da Mostra de Cinema de Tiradentes, Canto dos Ossos (dirigido por Jorge Polo e Petrus de Bairros, 2020) possui peculiaridades que apontam para a diversidade da mostra competitiva neste ano. Em primeiro lugar, trata-se de um filme de horror jovem, com direito a vampiros, múmias e conspirações. Porém, contornando as dificuldades de produção que esse gênero narrativo poderia demandar, o projeto foi feito de forma colaborativa, entre amigos. Todos trabalharam voluntariamente, com um orçamento total de R$ 15 mil, investidos basicamente em transporte, alimentação e sangue falso. Dentro de tais limitações, Canto dos Ossos não foge do trash, mas consegue construir uma atmosfera sombria e perturbadora, flertando ainda com linguagens da performance, dança, e uma postura diante da imagem que muitas vezes se aproxima das artes visuais. Esse resultado é fruto de uma metodologia de criação colaborativa com os artistas envolvidos, tendo sido gravado em quatro etapas espaçadas por alguns meses, de maneira não-linear e processual, entre Canindé/CE, Búzios/RJ e Fortaleza/CE.

A equipe estava presente em peso no festival, tanto o núcleo cearense quanto o carioca, e alguns só se conheceram pessoalmente durante o evento. Na penúltima madrugada da mostra, ou seja, véspera da premiação, convidamos o grupo para uma entrevista. Participaram: Jorge Polo e Petrus de Bairros (roteiro, direção, produção, elenco e montagem); Júlia Couto (produção); Lucas Inácio Nascimento (elenco); Paula Haesny Cuodor (elenco e figurino); Isabela Vitório (montagem); Ana Luiza Santos (direção de arte, efeitos e maquiagem); Catu Gabriela Rizo (fotografia e elenco). A conversa foi conduzida por Vitor Medeiros (editor da Moventes) e Caio Casagrande (colaborador).

Vitor Medeiros: Uma coisa que nós escutamos muito nos últimos dias, conversando com vocês, foi sobre o processo de criação colaborativa. Isso me lembra outros trabalhos que Jorge e Petrus já participaram: tanto os que vocês fizeram no Rio de Janeiro, pelo coletivo Osso Osso, com as pessoas que frequentavam o Palacete dos Amores, quanto os filmes feitos no Ceará. Não me parece à toa que esse trabalho tenha sido gravado nesses dois pólos com artistas formados em instituições públicas como UFF, UFC, Vila das Artes… Tem essa ponte Rio-Ceará, que me parece muito sintomática, inclusive de um certo pensamento sobre o cinema.

Petrus de Bairros: Foi um processo que teve momentos diferentes. Cada momento e cada equipe teve uma forma dessa coisa colaborativa acontecer. 

Vitor: Por exemplo?

Petrus: A parte inicial [das gravações], de Canindé, foi a que a gente conseguiu ter mais tempo de pensamento coletivo. A gente sentou, fez um roteiro inicial, trabalhou esse roteiro coletivamente, conversando, normalmente em grupo.

Vitor: Tinha quantas pessoas nesse processo?

Petrus: Mais ou menos umas 9. No set, a gente tinha uma dinâmica de tanto abrir para algum tipo de improvisação, ou coisas que não estavam no roteiro, mas também mudar cenas de um dia para outro. A gente gravava uma cena e discutia a partir do que a gente tinha gravado se o que tava no roteiro fazia sentido ainda, ou não. Sempre buscamos uma abertura para transformar as coisas ou não considerar tudo cristalizado.

Jorge Polo: A gente tinha em mente que o processo todo ia desviar bastante das ideias originais. Tanto uma coisa de produção que ia demandar adaptações e, sei lá, o cachorro de alguém que estava doente e tínhamos que repensar a história por não ter essa pessoa durante algum tempo. Acontecia uma bad num dia que a gente deixava de filmar numa locação X, fazendo roteiro de viagem de um jeito que ainda tivesse uma potência. Essas coisas se imbricaram muito: roteiro, produção, todas as equipes.

Paula Haesny, Heloise Sá, Elena Meirelles, Jorge Polo e Petrus de Bairros viajando para o Canindé

Vitor: E isso tem a ver com processos que vocês já tinham feito antes, né?

Jorge: A gente sempre trabalhou muito com amigos e pessoas próximas. Esse tinha uma coisa de trabalhar com pessoas que pesquisavam atuação de algum jeito, junto com outras que não necessariamente faziam isso como profissão. Isso trouxe muitas outras camadas de experimentação. Seja uma galera como a Maricota, que está mais relacionada com a dança, Noá [Bonoba], que tem um percurso no teatro muito forte, a Helô [Heloise Sá], da música, aqueles cantos vêm da improvisação dela. Foi o momento de se abrir para isso. No Antes da Encanteria [2016, Jorge Polo, Paula Haesny Cuodor, Lívia de Paiva, Gabriela Pessoa, Elena Meirelles], a gente já tinha experimentado um pouco isso de performance, a gente tinha uma semana para fazer o filme, tentava entender o que fazia sentido para o pessoal do coletivo Chá das cinco, do qual a Paula [Haesny Cuodor] faz parte também. Trabalhar esse repertório, tanto de coisas que a gente gostava como coisas que a gente já tinha feito, o curta da Paula, Santa porque avalanche [2015], era uma experimentação. Tem no Vimeo

Paula Haesny Cuodor: Eu moro com a Maricota há um tempão, então isso me acessava num lugar para o filme que eu acho que ajuda, porque a gente tinha essa independência dos boys. Tinha uma proposição, e a gente pensava muito sozinhas, enquanto eles estavam dando os corres de produção. Além disso, no Canindé, a gente ainda tava na casa do pai dela [Maricota], que tinha toda uma relação de respeito com a casa, a dinâmica do espaço. A gente até levou um “chop” da comunidade, porque a gente foi gravar à noite e alguém achou estranho, o povo se assustou.

Jorge: A galera ficou zoando o figurino da Helô e ela se sentiu assediada, daí a gente desistiu de filmar nesse lugar.

Paula: A Maricota dizia: “gente, isso é uma hora boa, aqui é um lugar bom.” Porque ela era dona da casa, né, mores, do sítio lá que tem uns bodes do pai dela, um bafo assim. Uma parada muito de vida no interior, então a gente tinha que respirar e ter calma. Um tipo de sensibilidade maior com o ato de fazer um filme, e também sofrer com as consequências disso, que às vezes é um tempo mais longo.

Jorge: A Maricota, em Canindé, tinha uma segurança do espaço, toda uma dominação, no sentido de compreender aquele lugar. [Quando gravamos] em Búzios, foi o inverso, ela estava deslocada. E tem aquele encontro com o personagem do Lucas, que ela parece muito frágil.

Paula: Que tem tudo a ver com o momento dela no filme.

Ana Luiza Santos: Teve gente [do público] que nem reconheceu que era a mesma personagem, a Maricota de Canindé e a Maricota de Búzios.

Paula: Sim, eu gosto disso.

Vitor: Como é que vocês [Jorge e Petrus] trouxeram essa dinâmica do Canindé para as outras etapas do projeto? Porque só quem estava em todas as gravações eram vocês dois, certo?

Petrus: Só nós.

Vitor: Em Búzios, como foi a proposta?

Lucas Inácio Nascimento: Quando eu entrei no filme, essa parte de Canindé já estava meio montada. Percebi que ali tinha uma coisa que já estava sendo criada muito forte e que era potente por si só, mesmo que ela não tivesse uma narrativa acabada. Do ponto de vista do teatro, é como se eles estivessem em jogo ali há muito tempo, como se fosse o registro de uma coisa muito viva. Eu entrei no momento que já tinha um roteiro mais específico, coisas direcionadas. E agora, ouvindo vocês falando, eu tô refletindo sobre o quanto a organização do tempo no processo, de qual cena é gravada primeiro, tudo isso pode realmente transformar o filme. Eu estava viajando pra trabalhar com pessoas que conhecia, gostava, já tinha visto trabalhos, mas não tinha intimidade, não era amigo. Isso trouxe uma distância, uma relação meio estrangeira. Talvez isso tenha feito o personagem virar o fotógrafo, e não o estudante que seria inicialmente. Eu estar com menos intimidade com a Maricota em tal cena, isso gera alguma estética, diferente de uma cena gravada em outro dia. Sinto que o filme realmente se aproveitou muito disso, dessas relações que foram sendo criadas pela estrutura, e as pessoas foram brincando de acordo com ela.

Lucas Inácio Nascimento, Patrícia Cavalheiro, Petrus de Bairros, Maricota, Helena Lessa, Jorge Polo, Gustavo Pires, Elena Meirelles

Júlia Couto: Gostaria de botar a gente para pensar sobre o que foi passar aquele tempo, todo mundo numa casa em Búzios, que não tinha tanto espaço. Um do ladinho do outro, para deitar, junto com as coisas de produção, camarim. E aí, fico pensando se não tem algo disso nas imagens. O que tem lá no Canindé que é do viver junto numa casa há mais tempo… Em Búzios, foi um expresso intensivão parcelado.

Lucas: A gente convivia muito junto, ficava conversando sobre o filme dessa maneira mais despachada. E também rolou isso que a Paula falou de Canindé, da gente ser obrigado a ter reunião.

Paula: Que não é uma coisa assim: eu tenho uma questão, aí vou lá pro assistente de direção, comunico isso, pra ele passar pra direção. Não, a gente tava lá fritando ovo, dando corre. Isso acaba se quebrando mesmo, a gente entendendo o que cada uma tá produzindo ali mas também interferindo nesse lugar de função e hierarquia, pra poder se articular com mais velocidade, intimidade, e sinceridade também.

Vitor: É muito curioso porque vocês falam muito de improviso, de lidar com coisas novas, de criar junto, mas esse é um filme de terror, tem uma mitologia, um símbolo que reaparece, uma conspiração, vampiros de diferentes tipos. São várias camadas que constroem o universo que eu, enquanto espectador, fico tentando entender a unidade enquanto assisto. Como é que vocês [Jorge e Petrus], que estavam lidando com o todo, faziam para que desse certo esse método tão irregular – no sentido de roteiro, dramaturgia, construção?

Petrus: Será que deu certo?

Jorge: Tem essa coisa do terror que a gente queria experimentar, uma narrativa que pode ser delirante… A gente gostava da ideia de um filme que é narrativo, é pop – em algum lugar (risos) – que pode não ser necessariamente compreensível, mas tem uma base ali pra você pirar. Ou não.

Júlia: A gente falava do roteiro muito. Era frenético, todo dia era muita luta, só que toda noite a gente tava ali, no roteiro. Ele ficava pregadinho na parede, víamos o que já tinha sido gravado. Não era sempre claro se era mais pro futuro ou mais pro passado o que a gente tava filmando.

Ana: Eu descobri… não sei se isso vai queimar o filme, mas eu descobri que o filme se passava no passado só depois de quinze dias fazendo o filme.

Petrus: Mas em Búzios não tinha o passado.

Ana: Aí eu falei: “caralho tem um passado.” Porque, assim, vocês [Jorge e Petrus] são enrolados. Isso a gente pode falar aqui na entrevista: que os dois são enrolados, sabe? Mas também são virginianos, importante falar, e generosos e cuidadosos. E disso também vem a enrolação porque era muito cuidado com muita gente, e estar fazendo a produção também, junto com a Ju…

Júlia: Isso encarnou na gente, porque tinha 3 a 5 cômodos pra tudo… todos nós montamos a múmia, fizemos teste. Tinha que fazer sangue, fazer massa, botar figurino, olhar se o equipamento tava bem guardado. Você tinha noção do que o outro precisava, se precisava de mais tempo… essa parada do método. O tempo dos outros foi entrando na gente, e a gente foi se adequando a isso.

Vitor: Quando vocês começaram a gravar no Canindé, vocês já sabiam que ia ter outra parte em Búzios? Que ia ter início, meio e fim, que o meio seria ali e o fim seria outra coisa?

Petrus: A gente não sabia que ali seria o meio, por exemplo, mas a gente queria deixar pistas, ou aberturas, pra retomar coisas em Búzios.

Vitor: Então, como que o roteiro foi se construindo?

Jorge: Tem uma cena que é bem doida nesse sentido. Foi na primeira etapa [a ser gravada] em Búzios, que o personagem do Lucas recontava o momento em que assassinavam ele. A gente fez o diálogo pensando numa cena que a gente queria filmar, só que depois virou outra cena. A gente não gravou [daquele jeito] porque não fazia mais sentido em vários níveis: em termos de arte, por exemplo, a gente não conseguiria ter alguém atirando e fizemos diferente. Então, tentamos aproveitar isso enquanto potência, um delírio desse personagem, que não consegue lembrar do que aconteceu de fato.

Vitor: Essa foi uma das coisas que mais me espantou no filme, a gente ficou conversando muito, eu e Caio: “por que a gente vê acontecer uma coisa e ele fala outra?” Eu achei isso muito perturbador e é louco pensar que isso aconteceu por um acaso, que acabou se dando assim, mas isso não era o projeto do filme inicialmente. É uma camada de roteiro que se deu a partir do que o processo praticamente obrigou a ser.

Petrus: Acho que vai ser até difícil lembrar a ordem das coisas, mas quando Canindé rolou, não tinha mais nada muito específico, além daquilo que a gente gravou lá.

Vitor: O personagem do Lucas, que na montagem final é quase um protagonista, vocês sabiam que existiria?

Petrus: Não, a gente não sabia que existiria múmia, nada. A única coisa que a gente sabia era dessa pessoa que estaria fora, a Naiana.

Jorge: E talvez uma professora de literatura.

Petrus: Seria essa pessoa que saiu de um lugar e foi pra outro. Que é o que a gente achava que aconteceria no processo. O Jorge voltou pro Rio, eu também tinha compromissos lá na UFF, e a gente queria continuar de alguma forma aquela história. Todos os elementos foram surgindo assim: gravava alguma coisa e surgia outra coisa.

Vitor: Então, vocês já foram gravar a primeira parte sabendo que não acabaria ali, no Canindé. Beleza, foram pra Búzios gravar a segunda parte… Nesse momento, vocês já sabiam que haveria uma terceira, quando gravaram a segunda?

Petrus: [para Jorge] Acho que não, né?

Jorge: Acho que a gente achava que talvez desse conta na segunda. [Risos] Só que assim, a segunda teve 11 dias, a terceira teve 30 dias, e ainda teve mais 2 dias em Fortaleza, mais a narração da Noá, que mexeu com o filme todo, a partir de um texto que ela trouxe pra personagem dela. Como se ela estivesse narrando a partir de uma conversa que teve depois de tudo acontecer.

Isabela Vitório: Sobre essa coisa da coletividade, eu entrei quando eles já estavam montando, depois de ter gravado todas as partes.

Paula: Vocês já se conheciam antes, na época das gravações?

Isabela: Não. Eu tinha me mudado pra Fortaleza, fui morar com os dois [Jorge e Petrus] e eles tavam montando o filme. Aí eles mostraram um corte pra mim, e nem chamaram, eu que me meti. Falei: “quero ajudar a montar.” Pra mim, tem uma coisa da coletividade muito foda, de eu ser amiga da Noá, então quando eu comecei a mexer no filme, falava muito com ela: “amiga, quero que sua personagem cresça no filme.” Aí, ela me contou como ela via a personagem, me deu gás também pra botar fogo nos meninos pra gravar a narração e ela estar no filme todo. E também foi importante conversar com a Ana Luiza, que tinha feito a arte em Búzios, e falava muito sobre a montagem. 

Paula: Fico pensando que processos assim também lidam com isso que não é exatamente um erro ou uma poética do precário. É encontrar um princípio de realidade, de objetividade e de carinho com o negócio que você tá fazendo.

Vitor: Se a gente pensar que é um filme que estreou na competitiva de longas metragens de um festival de cinema, ao lado de filmes feitos com estruturas mais tradicionais… Canto dos Ossos parece que foi criado de uma outra forma, dialogando inclusive com outros filmes que já passaram aqui pela mostra, filmes feitos entre amigos, as pessoas acreditando nos projetos, não porque foram contratadas e tão recebendo uma grana. Aliás, qual foi o orçamento do filme?

Petrus: Ao longo desses três anos, a gente gastou uns 15 mil reais.

Vitor: Então, só deixando registrado que isso nem chega a ser considerado um filme de “baixo orçamento”, sabe?

Isabela: Eu fiquei um pouco com medo disso no debate, quando alguém perguntou sobre o ritual de filmagem. Acho muito importante que não caia num lugar de romantizar a precariedade do cinema, porque uma coisa é o processo ser colaborativo, e isso é muito massa, e temos sim que pensar o cinema de outras formas. Como a Castiel [Vitorino] falou ontem na mesa: pensar como num terreiro que rola uma hierarquia – que, segundo ela, talvez nem seja a melhor palavra – cada um tem sua função, mas existe uma coletividade. A gente gostaria de ter feito esse filme com dinheiro. Não atrapalharia ter o dinheiro, seria só um up.

Petrus: A gente botou muita fé no que tava fazendo, mas agora realmente ficamos até meio assim: “pô, gastamos uma grana e tal.” O festival seleciona, mas também a gente não vai ganhar nada com isso, a princípio, nem pra manter uma certa sustentabilidade da coisa. É importante não romantizar porque foi uma verdade desse filme, desse momento.

Jorge: É, eu não faria uma coisa dessas de novo. Foi muito desgastante.

Lucas: Tinha aquela responsabilidade de empurrar o carro quando a bateria tava gasta, porque era a luz da cena. Vamos nos responsabilizar em coletivo.

Vitor: Dentro dessa dinâmica toda, de perrengue, essas dificuldades em grupo, o que vocês acham que, individualmente, fazia vocês se interessarem e continuarem no projeto? Quando cada uma de vocês podia ter desistido… Vendo o filme, o que vocês acham que é a potência dele?

Isabela: Eu gostei muito de pensar os vampiros em outros corpos, que não os que eu tava acostumada. E eu queria pensar montagem junto com os meninos… Eu começava a pirar em cima do filme e os meninos me davam corda. Esse lance do tarô que eu falei no debate: de eu tirar um tarô e sair a carta da morte. E eu falar com eles “gente, escrevi um texto sobre a morte.” Teve esse lugar deles fomentarem meu interesse, um lance que se retroalimentava.

Vitor: Uma pesquisa em comum.

Isabela: É, eu tava lendo muitas coisas da Jota [Mombaça], que fala sobre monstruosidade, sobre morte, sobre já estarmos mortas. E também tava acompanhando o processo da Noá, que tava numa fase muito louca da transição dela, e aí eu conversava com ela e ela falava: “boto muita fé”. Aí eu jogava pros meninos, a gente pirava junto.

Paula: Sobre motivação, tem pra mim dois pontos: esse rolê da monstruosidade enquanto possibilidade do corpo. É um interesse meu enquanto possibilidade de vida e proposição estética há um tempo. Por entender processos de desumanização nas pessoas que tão perto de mim, que são sempre bichas, travestis, sapatões, bichas pretas, pessoas pobres. Desde 2015, quando fiz meu primeiro curta, eu penso sobre isso. Me motiva pensar uma monstruosidade fílmica. Porque não dá pra propor uma ideia de vida monstruosa, num lugar dissidente, e ter um cinema que não esteja buscando isso. Quero propor outras coisas. Pra que a gente não vire pessoas que produzem cinema de uma forma medíocre, e pessoas que assistam e recebam isso de uma forma medíocre. É esse princípio, de ir pruma sala e perceber a imagem de um outro lugar, que faz também com que você tenha na vida uma outra relação com o real em si. E isso reverbera em muitas coisas. Por exemplo, isto pra mim era uma questão: ter dois boys cis, hts, brancos, propondo coisas pra mim. Então, eu tenho que mediar as coisas nesse lugar, onde eu fique confortável, onde as minhas fiquem confortáveis, onde a gente se entenda e quebre um pouco esse muro que existe, e é de fato um marcador entre nós. Pra tentar assimilar outro bafo. Porque heterossexual cisgênero branco tá aí pra todo lado, né. Como lidar com isso no real? Como lidar com isso dentro do cinema, que é esse antro disso?

Júlia: Eu tenho uma pira pessoal de filmagens em cidades do interior, de desenvolver coisas práticas. Era um desafio de produção, de arranjo, e ao mesmo tempo de improvisação, de entender a história, o lugar… A gente lançou várias vezes o papo: “ah somos estudantes da UFF, Niterói, fazendo um filme… Abre essa porta aí pra gente.” Era um exercício de desenrolo. E, ao longo do processo, foi virando exercício de convivência.

Ana: Pra mim foi o negócio de monstro, também. Quando eles falaram que ia ter uma múmia, vampiros… Isso me empolgava: “caramba, que doido!”

Júlia: Fazer sangue, vamos fazer sangue!

Paula: Da experiência que eu tive com alguns tipos de cinema, tem duas coisas que eu consigo enxergar, que é uma espécie de extrativismo velado nas relações e também um tipo de charlação do cinema, que enrijece muitos processos, deixa tudo dentro de uma camada de hierarquia. Às vezes, os filmes conseguem transpor essa tensão. Mas, em alguns processos, não. Eu vi isso em alguns filmes aqui [na mostra], isso tá ali, reverbera no filme. E é horrível. A gente faz um cinema muito mais de corre do que de romantismo. A gente tem um corre, a gente quer fazer, e como resolve um corre? Como não impedir a criatividade de acontecer? Não dá pra fazer cinema sem dinheiro, é fato. Mas o dinheiro não precisa moldar nossas relações, hierarquizar os corpos.

Isabela: Esse lugar da grana no cinema é muito tenso. Agora eu vou fazer um filme com dinheiro, que vou dirigir junto de uma amiga minha travesti, e eu sinto uma responsabilidade muito grande, em pleno 2020, de conseguir dinamizar essa grana.

Paula: Não é mais só sobre sua carreira, é um processo de dinâmica enquanto sociedade. Democratizar o acesso ao audiovisual, já passou esse momento de muita grana… Não é aceitar isso como fato, mas sendo o caso no momento, como dinamizar de outra forma? Se vai fazer filme sobre alguém, não faz, dá o dinheiro pra pessoa fazer o corre dela.

Isabela: Dá o aqué pra ela.

Paula: Quer fazer a linha “culpa branca”? Faz direito, né, amore!

Isabela: Ontem ficamos um tempo falando de autoria no cinema. Quando você faz cinema de autor, você bota o dinheiro num lugar e quando você vai fazer um cinema mais aberto e colaborativo, tem que pensar nessa redistribuição da grana também. Vai dissolvendo toda essas relações que existem dentro do audiovisual.

Vitor: Isso é algo interessante mesmo pra pensar aqui em Tiradentes, que é um festival que, tradicionalmente, trabalha muito a ideia de autoria.

Ana: A primeira coisa talvez seja a questão dos vouchers [de alimentação], que a gente tá dividindo entre 30 mil pessoas, cada hora come um.

Isabela: É, e as passagens. O festival oferece X passagens, e a gente divide essas passagens entre o dobro de pessoas que eles queriam trazer. Eram 3, aí vêm 6. E vai todo mundo comer junto, a gente enche o saco do povo do restaurante… todo mundo chega lá pra pegar o voucher do Canto dos Ossos.

Ana: [para Jorge e Petrus] Fala aí, gente, da “autoria” de vocês.

Petrus: É, não, autoria… eu acho, assim, que… hã?

Júlia: O CPB [Certificado de Produto Brasileiro]! A divisão do documento.

Petrus: Esse lugar da direção, eu não vejo como um criador único, mas vejo o lugar de uma responsabilidade. A gente [diretores] foi responsável por tocar isso, por fazer acontecer, mas a partir do momento que chamamos uma pessoa pra atuar, ou fotografar, ela tá criando.

Jorge: Essa questão da autoria é meio louca. O problema tá muito mais como as relações foram colocadas e estão sendo colocadas ao longo dos tempos. Isso foi muito concentrado de um jeito, de que o diretor é “A” entidade criativa da coisa, e acho que é muito mais tentar descolar esse lugar, pensar outras formas em que isso se dá.

Catu Gabriela Rizo: Eu fui uma das sete fotógrafas do Canto dos Ossos, mas eu tô aqui pra comentar que a direção não acumula a centralidade da autoria, mas ela acumula a centralidade da responsabilidade do projeto. Eu, por exemplo, fiz foto em Búzios, entrei no processo em setembro de 2018, fiquei duas semanas, mas o filme é do Jorge e do Petrus. Porque eu não vou dar conta de estar nesses 2 anos, eu não vou dar conta de mergulhar nesse filme com eles. Enquanto eu tava em Búzios, eu tava criando, tava sugerindo, mas eles que tavam na responsabilidade total. E agora, eles que vão seguir nos caminhos de circulação. Vai passar um ano, e eu não vou estar mais pensando em Canto dos Ossos, mas Petrus e Jorge, sim. Acho que é importante também a gente falar dessa importância que a direção conduz, para além do processo criativo: o processo do trabalho, que sobretudo no rolê independente não é mensurado. Vai ter festival que vai ser massa pro filme, mas vai dar uma passagem pra um diretor, quando der… e aí tem muito também a solidão da direção nesse momento pós filme. Acho importante a gente pensar nesse lugar da direção para além do rolê criativo, mas no rolê do trabalho do filme. É isso.

Petrus, Lívia de Paiva, Helena Lessa e Jorge em Búzios

Por Vitor Medeiros e Caio Casagrande
Nota:
1 – Filmes disponíveis online: O mundo sem nós (2016, Noá Bonoba); Santa porque avalanche (2015, Paula Haesny Cuodor); Casa do crucifixo + 268988 (2014, Paula Haesny Cuodor); Antes da encanteria (2016, Jorge Polo, Paula Haesny Cuodor, Lívia de Paiva, Gabriela Pessoa, Elena Meirelles); Terra ausente (2018, Noá Bonoba); filmes do coletivo Osso Osso.