“Hoje, o problema do documentário não é colocar em cena aqueles que filmamos, mas deixar aparecer a mise-en-scène deles. A mise-en-scène é um fato compartilhado, uma relação, algo que se faz junto, e não apenas por um, o cineasta, contra os outros, os personagens. Aquele que filma tem como tarefa acolher as mise-en-scènes que aqueles que estão sendo filmados, regulam, mais ou menos conscientes disso, e as dramaturgias necessárias àquilo que dizem”.
Jean-Louis Comolli em Ver e poder
O que é possível ao cinema na representação daquele que é diferente de nós? Dar a ver é o suficiente para que olhemos aqueles que, distante da tela, não se aproximam de nossos corpos cotidianamente? Qual é a forma do cinema que pode convidar o universo do outro às imagens audiovisuais? Essas questões atravessam a história e as teorias acerca do cinema documentário. E pontuam: qual é a postura possível do cineasta ao escolher realizar uma obra construída com outra pessoa?
Em Divinas divas (2012), de Leandra Leal, exibido na noite de abertura da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes, conhecemos a história de travestis que se apresentaram no teatro Rival, na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Ainda em atividade, o teatro foi referência, especialmente durante a década de 60 e 70, para a apresentação de travestis, cujos shows estampavam capas de revistas importantes da época e, no período da ditadura militar, eram um escape possível à dureza e melancolia dos tempos. Ao longo do filme, ouvimos o relato de mulheres que contam dos caminhos que envolveram o processo de travestir-se, o enfartamento dos preconceitos, a vivência dos espetáculos. Essas histórias são recuperadas pela diretora, cuja família gerenciou o teatro por décadas. No entanto, no decorrer do filme, o acesso a essas memórias permanece obstruído pelos lugares de personagens e realizador que o filme estabelece.
Pensemos em algum lugar possível ao espectador no filme. Como uma das mulheres aborda, o lugar das travestis, por décadas, permaneceu restrito ao teatro, sendo que elas não podiam aparecer nas televisões, ou dar entrevistas às revistas. A partir do filme de Leal, podemos pensar que há outro convite, outra abertura ao lugar das travestis no mundo. Em um país como o Brasil, considerado o que mata mais travestis no mundo, com 604 mortes registradas entre 2008 e 2014¹, apresentar essas mulheres em condições de respeito e que permitam contar a própria história é incomum. No entanto, Divinas divas ainda não consegue dar um passo maior: além de ver a história dessas mulheres, acompanhar as suas perfomances, como podemos conviver com elas como iguais? Para Leal, isso não se materializa. Se, logo no início do filme, ouvimos a voz narrativa da diretora em off, em tom confessional e emotivo, que rememora nostalgicamente a sua infância e juventude, em que ir ao Rival correspondeu à descoberta do palco, do espetáculo, do corpo, ao longo do filme, essa proximidade não se sustenta em imagem. Em algumas cenas, as entrevistadas se dirigem à diretora pelo próprio nome, parecem tentar estabelecer algum convite à intimidade. No entanto, em nenhum momento a diretora aparece na imagem, coloca o corpo ao lado de mulheres que, durante sua vida, tiveram suas relações sociais marcadas pelo distanciamento. A posição da diretora se assemelha a um espectador de teatro, que observa afastado do palco o movimento dos corpos. Lembremos da potencialidade da entrevista que é possível ao documentário: a partir dos trabalhos de Eduardo Coutinho, por exemplo, a entrevista é o método que permite a convivência com outro e a escuta próxima. Revelar o método e mecanismo do cinema – o diretor em cena, a evidência do filme em curso – torna-se mais honesto e potente que, por exemplo, o excesso de efeitos que a montagem de Divinas divas escolhe trabalhar. Qual é o sentido de uma escolha por uma pluralidade de linguagens – corpos destacados da cena, máscaras que envolvem efeitos plásticos e pop com a foto original dessas mulheres – se isso apenas as torna distanciadas? Talvez, fosse possível argumentar: o lugar das estrelas, das divas, do teatro, das perfomances é distanciado, deslocado dos homens comuns. Contudo, se a proposta do filme surge e se apresenta como um retrato confessional e um convite à divisão das memórias não só de Leal, mas dessas mulheres, o que há de proximidade em seguir apresentando-as em um lugar exótico, do espetáculo? Espetacularizar não é dar a ver, mas obstruir a capacidade de olhar um outro que, cotidianamente, permanece marginal – seja pela proliferação dos preconceitos, seja pela perpetuação da única possibilidade de convivência em um regime de atrações que apenas regozija quem olha.
Em uma das primeiras cenas de Divinas divas, uma das travestis que se apresentou no Rival conta como, em um processo inicial de se assumir como mulher, emocionava-se ao andar pela janela de um ônibus e, nessa ação, sentia que as pessoas que a vissem de fora pensariam que ela era mulher. Talvez seja esse o potencial do cinema em algum lugar na discussão dos gêneros: com pequenos detalhes, com a forma que escolhe enquadrar – ou, como nesse relato, abrir ou fechar a janela – possibilitar a quem vê alterar as percepções originais do mundo. O que o filme de Leal consegue, porém, é só manter a relação que a maior parte das pessoas que o assistem mantém com as travestis: se encantar com seus corpos e perfomances, rir do seu humor, afetar-se em compaixão pelas dificuldades que elas enfrentam pelo preconceito. Com uma linguagem tradicional que apenas apresenta os personagens por cartelas, utiliza-se de uma voz em off que somente explica e organiza o mundo, o filme não explora as potencialidades do cinema em acolher a mise-en-scène do outro, apenas impõe uma memória de uma realizadora que não permite àquelas mulheres uma outra representação para além daquela que a história as colocou.