“Na cultura da diversidade, múltiplas identidades (e as histórias e lutas que elas invocam) são discutidas, representadas e celebradas, mas também são administradas, mercantilizadas e reduzidas a estereótipos fáceis de entender” (WARD, 2008, p. 29).
Para Onde Voam as Feiticeiras (Carla Caffé, Eliane Caffé e Beto Amaral, 2020) aposta no registro de uma intervenção artística, montada em uma rua movimentada do centro de São Paulo, e como ela afeta o cotidiano da cidade. O elenco principal, não-heterossexual e racialmente diversificado, é formado por personagens ligadas ao Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), e proclama seus discursos militantes a plenos pulmões, gerando todo tipo de reações de transeuntes que são incentivados a interagir. Comprometido com a denúncia das mazelas coloniais que ainda perduram em nosso tecido social, o documentário recorre à hipervisibilidade das personagens minoritárias e de seus discursos para marcar seu posicionamento político enquanto aliado a essas causas. Mas será que a presença desses corpos na tela e suas palavras de ordem são o suficiente?
Não há nada que cineastas brasileiras/os da esquerda contemporânea gostam mais atualmente do que militantes “profissionais”, de preferência que sejam também artistas. É que estes entregam não só discursos bem articulados, mas também os envolvem em uma embalagem estética atraente para as câmeras, permitindo ao filme se eximir de uma maior inventividade de linguagem sob o pretexto de que filmá-los é, em si, um gesto político. Não estou dizendo que as personagens do filme não sejam interessantes com seus discursos eloquentes – elas o são, e, enquanto espectador, fico feliz que o filme me permita conhecê-las, mesmo que de maneira superficial. Também não estou dizendo que o registro de suas performances não tenha um valor em si mesmo. O que proponho, neste ensaio, é refletir sobre as maneiras como o documentário instrumentaliza a “diversidade” para outros fins.
Para Onde Voam as Feiticeiras seria a versão fílmica de certa lógica neoliberal de instrumentalização da diversidade presente em algumas organizações não-governamentais LGBTI+, tal qual Jane Ward critica no excerto acima. Ao mesmo tempo em que supostamente celebra a diversidade dos corpos em frente às câmeras, o filme as reduz a estereótipos que se contentam em reafirmar suas próprias identidades ad infinitum. Pouco importa o cotidiano de tais personagens, contanto que elas demonstrem eficiência técnica em seus discursos militantes diante de um fundo colorido em estúdio, de modo similar ao que já vimos em inúmeras propagandas de cosméticos. Cada identidade se torna um produto a ser administrado pelo filme, como se ele quisesse provar que é “diversificado” o suficiente. Um filme “queer” onde a palavra “queer” não se constitui enquanto “uma metáfora política desafiadora das forças institucionais e estatais que normalizam e mercantilizam a diferença” (WARD, 2008, p. 18), uma vez que o próprio longa consegue operar uma commodificação e estabilização de identidades que seriam, por definição, não-fixas, instáveis, dissidentes (como é o caso de pessoas não-binárias).
Curiosamente, a personagem mais queer acaba surgindo por acidente: um transeunte que se apresenta como tendo “duplo sexo”. Ao explicar que pratica atos sexuais com mulheres e com homens, é rapidamente corrigido pelo elenco em tom professoral, que o ensina que ele nunca fora “heterossexual” e sim “bissexual”. Mas ele insiste em não se identificar com o rótulo oferecido, e se auto-proclama “bi-heterossexual”. Sua falha em “compreender” o termo correto a ser usado se torna uma espécie de gag, e o filme parece debochar de sua suposta incapacidade cognitiva. Mas certa ironia surge se relembrarmos que o termo “heterossexual” aparecia, em escritos médicos da virada dos do século XIX para o XX, patologizado como um interesse sexual intermitente por ambos os sexos – uma espécie de “hermafroditismo [sic] psíquico” na concepção do Dr. James G. Kiernan, em 1892, por exemplo – ou seja, sinônimo do que chamamos de bissexual hoje em dia (KATZ, 1996, p. 32).
Um tanto à revelia de seu aparente objetivo cômico, a cena nos coloca uma questão: o que seria mais frutífero para os embates políticos contemporâneos em torno das questões de gênero e sexualidade? Uma reafirmação insistente, essencialista e a-histórica das categorias identitárias? Ou o questionamento do caráter contingencial e histórico de todas as identidades essencializadas, o que incluiria a heterossexualidade mas também as homossexualidades e demais identidades dissidentes celebradas no próprio filme?
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“Quando chega o momento de convergência, grupos privilegiados ainda podem tentar controlar, liderar ou ainda se apropriar de uma determinada luta política, especialmente quando eles têm maior acesso ao poder político tradicional” (WARD, 2008, p. 36).
Buscando fabricar sua própria importância histórica, Para Onde Voam as Feiticeiras procura desesperadamente ligar as lutas micropolíticas de seus personagens a conflitos macropolíticos brasileiros e mundiais, particularmente através do uso desenfreado de imagens de arquivo. A tentativa vertoviana não me parece bem sucedida, uma vez que tenta dar conta de todas as opressões sociais ao mesmo tempo, suprimindo suas particularidades – como se fossem todas, intrinsecamente, a mesma luta. Em um procedimento de montagem meramente cumulativo, a direção quer demonstrar que “fez o dever de casa” em termos de pesquisa historiográfica, mas o resultado em tela se confunde por vezes com a lógica do “feed” de uma rede social. Se você é um espectador “iniciado”, que se identifica a priori com certos ideias de esquerda, há uma grande chance de você já ter visto boa parte destas mesmas imagens circulando em suas bolhas virtuais nos últimos anos, e o filme pode se tornar um enorme déjà vu.
Sem ignorar um possível valor arquivístico de tal saturação (que talvez seja melhor apreciado num futuro vindouro), me parece que o uso excessivo das imagens de arquivo tem um efeito monumentalizador, que tem menos a ver com os acontecimentos históricos em si, e mais com a preocupação do filme em se autoproclamar historicamente relevante. Para citar apenas um exemplo, após a “batalha” entre pastores em praça pública, o depoimento da artista trans Ave Terrena Alves é sucedido pelas imagens de arquivo do famoso discurso da ativista trans Sylvia Rivera na Parada Gay de Nova York, em 1973, que circularam com força nas redes principalmente depois de aparecerem em A Morte e Vida de Marsha P. Johnson (David France, 2017). Entretanto, no documentário da Netflix, tais imagens aparecem contextualizadas: Rivera quase fora impedida de discursar, rejeitada pelos seus pares, e sua crítica a gays e lésbicas homonormativos era completamente dissidente do que se esperava de um discurso naquela ocasião. Inserido fora de contexto em Para Onde Voam as Feiticeiras, um ato contracultural aparece triunfante, como se fosse parte de uma “história monumental LGBTI+”, e não fruto de uma incansável resistência trans, que era marginal aos próprios movimentos que estavam sendo construídos à época. Para além de serem ambas trans-ativistas, o paralelo entre as duas soa particularmente forçado porque não decorre de uma ressonância substancial entre as situações de ambas militantes, mas antes de uma tentativa de auto-monumentalização pretensiosa por parte do filme. O resultado, infelizmente, é a despotencialização de ambas as falas.
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“Na medida em que o comentário político autocrítico é lucrativo, ele se tornou uma estratégia popular para invocar conceitos de justiça social, fazendo pouco para transformar ou desestabilizar as hierarquias institucionalizadas em si” (WARD, 2008, p. 43).
As últimas palavras proferidas por Ave Terrena Alves, antes dos créditos finais, são estas: “Cuidado, cuidado… É mais difícil do que parece fazer alianças…”. A frase resume, de certa maneira, a premissa que organiza todo o filme, e não à toa é eleita como a derradeira. É possível fazer uma aliança através do cinema? O longa quer demonstrar que sim, e coloca seu próprio processo de elaboração enquanto exemplo. Assim, as intermináveis rodas de conversa nos espaços da ocupação, em que as personagens debatem calorosamente sobre problemáticas sociais contemporâneas (como racismo, machismo, transfobia, genocídio indígena etc.), funcionam como “prova” de que o filme teria “dado voz” e “poder de decisão” às personagens militantes marginalizadas. Ironicamente, o próprio dispositivo metalinguístico usado para comprovar a horizontalidade e co-criação do conteúdo audiovisual tem uma segunda função, que é registrar constantemente os conflitos internos entre tais indivíduos, transmitindo a sensação de que as pautas não avançam devido à fragmentação interna do movimento, a despeito das legitimidades das demandas. Nesse sentido, Para Onde Voam as Feiticeiras assume para si um papel mediador dos conflitos. E se o filme registra as tensões entre o movimento negro e integrantes LGBTI+ na ocupação, é tão somente para mostrar a derradeira reconciliação entre Preta Ferreira e Thata Lopes, ostentando seu próprio processo enquanto dispositivo político criador das tais “alianças”.
A tentativa empírica de desfragmentação das esquerdas em formato fílmico não deixa de ser louvável. Entretanto, apesar da diversidade de corpas dissidentes, as escolhas de direção, roteiro e montagem estão em descompasso com esses agentes, e por vezes apontam para caminhos contraditórios. Por exemplo, a cisgeneridade é questionada frontalmente nas rodas de conversa, numa das falas mais interessantes de Ave Terrena Alves, na qual ela justifica sua recusa em denominar a transgeneridade enquanto um “terceiro gênero”, argumentando que as categorias “homem” e “mulher” é que seriam, antes, “uma grande ficção”. Próximo ao fim do filme, o depoimento de Gabriel Iodi expressa sua gratidão por ser homem trans – se ele fosse cis, afirma, talvez não fosse tão sensível às causas sociais, poderia ter se tornado um conservador – e, em meio a sua fala, um plano detalhe de sua genitália é exposto. É possível argumentar que a nudez fazia parte de sua performance e que o filme está apenas “registrando o real”. Mas cinema é montagem, e o plano foi deliberadamente guardado para o final, num flash desnecessário, ao invés de utilizado – se necessário fosse – em outros momentos performáticos das sequências de estúdio, como as no início do filme. Não se trata aqui de um discurso moralizante ou pudico de cerceamento à nudez, mas apenas um questionamento da escolha de montagem em si. Uma vez que nenhuma das outras personagens havia sido genitalizada durante todo o filme, porque que justamente um personagem trans precisava o ser, faltando poucos minutos para encerramento do longa? Diante do rechaço à lógica da “revelação” da genitália, ponto central nas críticas sobre a representação trans no cinema (PHILLIPS, 2006), não seria um gesto muito mais “político”, muito mais “de aliança”, recusar a genitalização, resistir ao olhar cisgênero fetichizante? De que adianta a representatividade LGBTI+, se não for acompanhada de uma des-cisgenerização do olhar e, por conseguinte, de sua des-genitalização?
É por essas e outras que a tal “aliança” que o filme afirma no âmbito do discurso não parece acompanhada em termos formais, e é possível pensar um falso protagonismo das corpas dissidentes que estão na tela, uma vez que é uma instância narrativa branca cisgênera a força organizadora por trás das escolhas de realização. Os discursos de “lacração” parecem fomentados apenas para culminar nos momentos em que uma das diretoras é questionada sobre seus privilégios, permitindo-a encenar sua fragilidade branca. Ao ser confrontada de maneira bastante incisiva pelas artivistas trans Erika Hilton e Renata Carvalho numa das últimas rodas de conversa, seu silêncio segue a cartilha comportamental esperada dos brancos “aliados”. Mas é através da montagem que a instância narrativa constrói seu verdadeiro contra-argumento, escolhendo a dedo uma fala que clama pela desfragmentação da esquerda pela filósofa trans Helena Vieira, e encerrando a sequência com um discurso apaziguador da filósofa lésbica americana Judith Butler, via videoconferência, que de certa forma funciona como “palavra final” (salientando que “aliança” não é o mesmo que “amor”, e portanto não precisamos amar aqueles com quem fazemos alianças, mas nos encontrarmos num lugar comum do combate às opressões). É colocando cada voz minoritária em função, na verdade, da reflexão sobre qual é o papel da branquitude contemporânea nas lutas políticas e sua suposta paralisia que o filme, melancolicamente constatando a virtual impossibilidade das alianças, finaliza embalado por uma fúnebre (e cheirando a mofo) versão de Bella Ciao.
Por Jocimar Dias Jr.