Sessão 5 – O espanto delas

Nota da curadoria:
A Sessão 5 (“O espanto delas”) da Mostra de Cinema Moventes reúne filmes sobre mulheres nos limites das relações e/ou do próprio corpo. São reunidas nesta sessão histórias e retratos sobre a estranheza nos afetos familiares e do desconforto como filhas, mães ou avós em situações cotidianas. Uma sessão de nuances, que navega do terror ao humor, do descontrole à clarivisão, do espanto à afirmação de outras formas possíveis de ser.

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Sobre medos e aflições: o ciclo da maldição identitária sobre as mulheres
por Alice Name-Bomtempo

A sessão “O Espanto Delas” me parece propor uma estrutura narrativa cíclica composta pelos ciclos individuais de cada filme que a compõe. Sua organização, mais do que exibir uma obra atrás da outra, concatena causas e consequências entre essas histórias que, por sua vez, são também causas e consequências do mundo externo.

Começamos por Vinil Verde (Kleber Mendonça Filho, 2004), que se utiliza de uma estrutura de conto e introduz a rotina cíclica de uma mãe e uma filha. Esse cotidiano, no entanto, logo é afetado (mas não interrompido) pelos disquinhos de vinil verde que a mãe proíbe a filha de ouvir, e mesmo assim ela o faz. A partir daí, a rotina segue girando, porém cada vez com mais alterações. Pois, a cada dia que a filha ouve o disquinho sozinha em casa, sua mãe volta com uma parte do corpo faltando, causando também uma inversão de papéis: com a mãe desmembrada, é a filha que passa a ter que cuidar dela. O final desse ciclo, marcado pela morte da mãe, é também o começo de outro. No último plano do filme, no enterro, o narrador conclui sobre o desdobramento da vida da filha: “Mais tarde, ela também se apaixonou, teve filhos, e para eles deu todo o seu amor e todos os seus medos e mais profundas aflições”. Interpreto aqui essa frase como uma maldição que obriga a passagem geracional desse mal que são os medos e as aflições que, por sua vez, não recai somente sobre a personagem de Vinil, mas também sobre os filmes seguintes da sessão.

O primeiro curta a reagir à maldição é Estátua! (Gabriela Amaral Almeida, 2014), que já abre com a imagem de uma aeromoça arrumada tal qual uma Barbie, esse ideal de imagem da mulher. Isso muito remete a uma cena do curta anterior, na qual a filha brinca escondida com a maquiagem da mãe, e o narrador aponta que a mãe sabia e achava curioso esse interesse da menina pela aparência alterada de uma mulher. Em contraste a essa mulher de imagem ideal, temos em Estátua! a babá grávida (Maeve Jinkings) que vem cuidar da filha de nove anos enquanto a primeira viaja a trabalho. A personagem de Maeve demonstra um afeto por crianças, e logo é alertada pela mãe aeromoça, como se ela já conhecesse a maldição lançada por Vinil Verde: “criança suga a energia da gente.” O filme então explora a rotina da protagonista na casa, vendo-se cada vez mais presa a esse espaço e à menina que aos seus olhos se torna maquiavélica, junto à sua gravidez, que logo descobrimos ser cheia de questões, como um pai que não assume o filho e trata a grávida mal, culpando-a e abandonando-a. A personagem, por fim, não consegue escapar nem da casa, nem da criança e nem da gravidez, terminando literalmente paralisada, amaldiçoada pela imagem de maternidade cheia de medos e mais profundas aflições.

O terceiro filme, já muito diferente dos anteriores que exploram o cinema de gênero de terror, segue por um caminho documental. Até o céu leva mais ou menos 15 minutos (Camila Battistetti, 2013) foca em uma câmera fixa para o banco de trás de um carro onde estão três crianças pequenas que são conduzidas por suas mães, uma delas também diretora do filme. Ela, inclusive, inicia a obra com um breve relato de uma lembrança que a marcou, de uma vez em que sua mãe brigou com ela e jogou sua lancheira para o alto, quebrando-a toda no chão. Alega que não foi um trauma, mas que ela nunca entendeu o porquê da mãe ter feito isso. Em seu filme (agora não mais no lugar de filha, mas no de mãe), Camila e sua amiga nunca aparecem por completo, são como entidades invocadas pelas crianças para dar água, brinquedos, atenção. Aqui, o ciclo trabalhado é o da inquietação angustiada das crianças, que só se acalmam e adormecem ao final.

A paralisia da rodinha de hamster causada pela maldição (corre-se e corre-se, mas não se sai do lugar), dessa imagem de mulher delimitada por uma construção social de maternidade, é frontalmente questionada pelo filme seguinte, Edna (2018, Edna Toledo). Nele, a própria Edna se faz agente de sua narrativa ao pegar a câmera de seu celular e filmar agilmente objetos de seu quarto. Narrando sua história de vida em off, ela imediatamente propõe uma identidade múltipla, fragmentada, móvel, e nunca fixa: “Edna por fora, Edna por dentro (…) todos os tipos de Edna, Edna dividida em várias partes”. Ao longo dessa discussão consigo mesma, em que ela se convoca em terceira pessoa, a personagem-realizadora parece estar ciente da maldição que lhe foi jogada ao invocar diversas vezes, de maneira indireta, discursos e soluções que lhe foram dadas por terceiros, como a de que se ela tivesse um homem e dinheiro, não sofreria tanto. Em uma repetição da câmera que se move constantemente mas sem nunca sair do quarto, passeando por laudos médicos, dezenas de caixas de remédio e fotos, ressalta e questiona onde que ela encontrou tanta dor assim. A solução para as suas aflições, ela mesma oferece: é correr! O filme, no entanto, continua preso ao espaço fechado do quarto, com esse movimento externo sendo indicado apenas por sua fala e pelo filmar das medalhas que ela ganhou em corridas. Não chegamos a ver o corpo de Edna em ação fora da maldição da identidade que tentaram lhe impor ao longo de sua vida mas, aqui, a possibilidade de escolha e de rompimento é conscientemente colocada.

Essa guinada em direção ao fim da maldição sofre um retorno quando chegamos a Vailamideus (Ticiana Augusto, 2014). De forma similar ao Até o céu, este filme também aposta em uma câmera fixa, que registra uma matriarca idosa, imóvel, que por sua vez é registrada em fotos com diversas famílias oriundas da sua própria em uma festa de dia das mães. Esta personagem, que conhecemos já próxima ao fim da vida, não tenta fugir da maldição, mantém-se imóvel em meio à mobilidade dos seus descendentes que vêm e vão para tirar foto com ela como se fosse uma atração turística. O ciclo de imobilidade das fotografias posadas se altera sutilmente ao final do filme, quando em um plano mais próximo da protagonista em um momento de karaokê coletivo, ela faz um pequeno gesto com as mãos, reagindo à música e à festa, de alguma maneira.

A imobilidade permanece no começo do filme seguinte e último, A Mulher que Sou (Nathália Tereza, 2019), que abre com imagens de um painel de esculturas fixas, para logo cortar para o ponto de vista de um ônibus em movimento em uma estrada. Acompanhamos uma mãe (Cássia Damasceno) que chega em Curitiba com sua filha adolescente, em busca de uma casa. Ainda que o filme tenha pouco movimento de câmera, como apontado pela diretora, sua narrativa transborda movimento. Se ao longo da sessão as personagens se viam amaldiçoadas por seus medos e mais profundas aflições, herdadas não somente pelo Vinil Verde mas também por suas respectivas mães e pelo limite identitário que é imposto à mulher, aqui a protagonista se move fazendo escolhas continuamente. O filme, que também adota uma estrutura de conto, encerra a sessão propondo não o fim da maldição mas, talvez, uma ressignificação dela. Nele, mãe e filha são cúmplices. Se no primeiro a filha usava maquiagem escondida, nesse a filha ajuda a mãe a se arrumar para um encontro, mesmo não gostando do homem com o qual ela decidiu sair. Há espaço para a discordância e a coexistência. Dar todos os seus medos e mais profundas aflições, pode ser, também, um ato de amor.

Essa dubiedade, no entanto, já estava indicada na própria origem da maldição. Em Vinil Verde, por mais que as ações da filha causem a mutilação da mãe, a menina não para de amá-la nem de cuidar dela. Mas ela também não deixa de ser movida pelo seu desejo de ouvir o disquinho, tornando-se uma personagem contraditória na qual, de certa maneira, habitam o “bem” e o “mal” mutuamente. Essas duas forças, tão demarcadas em oposição na maioria de nossas narrativas ocidentais, em especial na representação de mulheres (personagens ou não) acarretam em uma imagem fixa, em um limite e uma simplificação da identidade. Afinal, ninguém é uma coisa só. Mães têm sexualidade (como a masturbação em Estátua! e o sexo em A Mulher Que Sou), crianças são adoráveis e aterrorizantes (Vinil Verde, Estátua! e Até o Céu) e avós não são apenas a origem de pessoas, mas são pessoas elas mesmas também (Edna e Vailamideus). 

No debate realizado, a diretora Ticiana Augusto (de Vailamideus) falou sobre como a ação dos filhos fotografarem a avó com dezenas de famílias nas festas a incomodava, mas que ela também via aquilo como um gesto de tentar eternizá-la. Vejo nesses seis filmes um belo gesto de eternizar essas mulheres não somente em imagens em movimento, mas em identidades contraditórias, inundadas por seus desejos de escolha, abraçando os medos e as mais profundas aflições como parte da vida, que é o que eles são.

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Entre medos e fábulas
por Mariana Ramos

O fio que liga os curtas da sessão “O espanto delas” é feito de matéria fabular. Os seis filmes que lhe compõem falam sobre as dificuldades da vida feminina dentro de um esquema social moralizante que lhes exige conformação, dentro de uma lógica que por vezes flerta com o horror, com o absurdo, ou, simplesmente, com o assustadoramente cotidiano. 

Vinil Verde (Kleber Mendonça, PE, 2004), dá o tom da sessão com uma fábula russa atualizada. A história da menina cuja mãe lhe faz um pedido, “jamais toque o disquinho verde”, e que ela descumpre – apenas para ver sua mãe se desintegrando pouco a pouco, cada dia que a criança desobedece seu único aviso, até a morte – é, em primeira análise, um conto de desobediência, curiosidade e o preço pago por transgredir regras. Se a curiosidade de Pandora espalha todos os maus pelo mundo, a menina com sua vontade inabalável de ouvir e se divertir com a canção do disquinho termina por transformar sua mãe em um ser desmembrado e dependente. Se em uma camada o curta parece se desenrolar como uma fábula moralizante, nos avisando dos perigos da desobediência, em outra ele mais parece uma ilustração do difícil processo de crescer,  onde pouco a pouco perdemos nossos pais como cuidadores e tomamos tal papel para nós. Seu mundo infantil, de bonecas e inocência, vai se dissolvendo com o tempo, as bonecas perdem suas cabeças, a menina termina sozinha em casa, apenas para começar ela mesma sua jornada por um mundo adulto, onde “ela teve filhos e para eles deu todo seu amor e todos os seus medos e mais profundas aflições”, pois amor e trauma caminham juntos. 

Flertando mais abertamente com o gênero do horror, Estátua (Gabriela Almeida, SP, 2014) funciona quase como uma advertência. O monstro é a criança “estranha”, fruto de um lar de expectativas frustradas e falta de afeto. Dentro do apartamento onde fica por todo o curta, a babá grávida (Maeve Jinkings) passa do encanto à paranoia e ao terror. A menina parece lhe sufocar tanto quanto seus problemas fora dali, sua idealização da maternidade vindoura e de uma família nuclear, que são destruídas em um telefonema pelo pai do bebê que não quer nem que a criança nasça. Mas, para além da menina aos seus cuidados, o corpo da protagonista também parece ter se tornado um espaço de estranheza, o lugar monstruoso onde afetos e desejos “divergentes” (ao menos no que tangencia ideias de maternidade correntes) se encontram: a vontade de ser mãe versus o corpo do prazer sensual. Sua incapacidade de apaziguar tal disputa detona seus temores mais profundos, deixando-lhe aprisionada em meio a um vislumbre aterrador do futuro, do afeto impossível e de um sonho idealizado de maternidade fadado a se frustrar.

Uma certa agonia do aprisionamento parece também perpassar Até o céu leva mais ou menos 15 minutos, de Camila Battistetti (CE, 2013). Em uma mistura de documentário e ficção, vemos três crianças em um passeio quase interminável de carro. O plano fixo, emoldurado também pelos limites do carro, transcreve o sufoco do ambiente totalmente voltado para as crianças, seus desejos, suas vontades, suas birras e brigas. A mãe surge aqui apenas como uma mão, lhes servindo e tentando apaziguar a situação. Como uma montanha russa, no carro vivemos os afetos repentinos e vertiginosos dessas crianças, e como a mãe/câmera, podemos apenas observá-los, capturá-los em seus momentos, e tentar acalmá-los até o sono vindouro. O curta segue, portanto, o fio da maternidade como fonte de ansiedades, algo que, quando vivido fora dos sonhos e da idealização romântica que a sociedade nos vende, se mostra um desafio cotidiano.  

A segunda metade da sessão começa com Edna (Edna Toledo, RJ, 2018). Uma carta para si, interrogação para o mundo, testemunho contundente de uma mulher que viveu em meio a dores e discursos médicos. A câmera de celular na mão dá ao registro amador de si algo pulsante que reflete o imediatismo e urgência da obra. As caixas de remédio inúteis se misturam às queixas da eterna paciente que nunca foi curada, apenas mais adoecida por um processo cego e antiético de prescrição. Edna fala de Edna para Edna e por Edna, mas também é um convite para todos repensarmos o ser mulher e ser atravessada por exigências, relações, traições, em um corpo que parece falhar sem explicação. Existe uma raiva, uma revolta, patentes na imagem sempre em movimento, na recusa do olhar para si para além de fotos; o eu que aparece no máximo como uma mão que embola rastros do passado de doenças e traumas, ou como a voz que se narra e se flagela. Mas, ao mesmo tempo, ela encontra nesse mesmo corpo, por muito tempo falado e controlado por outros, um espaço de retomada, de reencontro e conflito. Com ele, ela corre em direção a um futuro que passa a lhe pertencer; com ele, ela toma para si o poder de criar imagens, pega a câmera, conta sua história e sai dos limites de uma narrativa viciada pelo desejo e olhar do outro. 

Vailamideus (Ticiana Augusto, CE, 2014), funciona como a encenação móvel de um tableau familiar. A câmera fixa captura o momento de tirar fotos no que parece ser o aniversário da matriarca de uma enorme família. Essa mulher, seu corpo e mente em desassociação, é capturada pela câmera que não lhe dá trégua, enquanto todos os outros ao seu redor, sua família, parecem lhe ignorar como algo mais do que uma lembrança, um totem familiar. A cena é ao mesmo tempo cotidiana e banal, perturbadora e sufocante. Seu olhar perdido se encontra apenas em breves momentos, onde um lampejo de lucidez parece lhe trazer de volta para a cena presente: a festa que lhe comemora, mas da qual ela mesma parece ser excluída. As dinâmicas familiares são expostas dentro e fora de quadro, na organização de um momento de captura fotográfico que é questionado e problematizado pela presença da outra câmera, a câmera de cinema, a câmera da neta, uma voz dissonante mas, ao mesmo tempo, tão nostálgica pelo momento que transcorre quanto todos os outros personagens desse teatro familiar. 

Finalizando a sessão, A Mulher que sou (Nathália Tereza,PR, 2019), surpreende com uma virada de tom frente aos curtas que lhe precedem. Aqui o espanto desaparece e dá lugar à cumplicidade entre mãe e filha, e à possibilidade de um futuro em trânsito. O corpo materno surge não mais como lugar de estranhamento, mas como espaço de desejos e prazeres que podem e devem ser vividos. A protagonista, uma mulher e mãe preta, faz suas próprias escolhas e trilha seu caminho. Ela larga um trabalho que não lhe satisfazia e se joga no mundo. Ela pensa na casa própria, mas consegue forjar um espaço seu em um quarto de hotel. A relação entre mãe e filha aparece re-imaginada. Fora das expectativas externas e não sufocada pelo peso de modelos inatingíveis, elas constroem uma relação de intimidade e companheirismo que parece fornecer uma saída para o trauma geracional que se instaura ao fim de Vinil Verde. Talvez a resposta esteja no movimento, na possibilidade do corpo como local de troca de afetos, toques, carinhos e mudança. Não mais congelado em uma pose de medo, ou capturado como ícone pelos olhos alheios, o corpo feminino se liberta para viver suas pulsões.

A jornada da sessão “O espanto delas” constrói uma nova ideia de fábula, cuja moral narrativa desmente a moralização como instrumento de conformação e punição. Aquilo que era monstro se transfigura. A ameaça nunca esteve nessas mulheres, mas sim nas prisões que construímos ao redor delas, espelhando nossos próprios medos e projetando nossas ansiedades.

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O debate da Sessão 5 (“O espanto delas”) da Mostra de Cinema Moventes contou com a participação das debatedoras Alice Name-Bomtempo e Mariana Ramos, das representantes dos filmes Maeve Jinkings (Estátua!), Cássia Damasceno, Nathália Tereza (A mulher que sou) e Ticiana Augusto Lima (Vailamideus), com mediação da curadora Gabriela Giffoni. O debate completo pode ser assistido abaixo, no canal do Centro Cultural Vale Maranhão no YouTube.