O homem branco e o arquétipo do líder nato – Crítica à série “Dom”

Vamos começar pela constatação do óbvio: Dom é um babaca. Esse simples fato talvez devesse justificar que não se fizesse uma série de televisão sobre ele. Mas, embora nas ruas e nas redes a mulherada grite que está na hora de “parar de dar palco para macho”, a televisão e os gigantes do streaming parecem continuar apostando no que Brett Martin chama de “homens difíceis”¹, a linha de anti-heróis como Tony Soprano (The Sopranos), Omar Little (The Wire), Don Draper (Mad Men) e Walter White (Breaking Bad), protagonistas masculinos complexos, controversos e extremamente difíceis de algumas das séries mais aclamadas dos últimos 20 anos.

Esta superprodução da Amazon, dirigida por Breno Silveira (Dois Filhos de Francisco, Gonzaga: de pai para filho), vai pelo mesmo caminho. Pedro Dom, vivido por Gabriel Leone, é nosso “homem difícil” à brasileira: um jovem de classe média que se muda para a favela e entra num esquema de assalto à residência para sustentar seu vício em cocaína. Baseada em fatos reais, a série parte de uma premissa que pode até parecer nova para o público dos mais de 240 países onde a Amazon atua, mas que já é velha conhecida dos brasileiros: trajetórias de playboys brancos que viram bandidos. Nossa elite adora romantizar os rebeldes sem causa, personagens autodestrutivos que se recusam a viver uma vida burguesa regrada e passam para o outro lado do jogo.

Reconhecer um dos seus na tela, fazendo aquilo que você sempre quis fazer, mas que a moral e os bons costumes não deixou, dá certo regozijo. Não falo de cheirar cocaína ou roubar, isso o playboy branco sempre pôde fazer. Falo de viver no morro, frequentar baile funk, transar com a mulher do bandido, ser favelado. Todo jovem carioca “descolado” (mas com grana), que performa malandragem (sem abrir mão dos privilégios de cor), já quis, mesmo que por um dia, ser favelado. Dom quer ser do morro, quer ser mau, quer ser contraventor. Só não quer ser preto, isso claramente não lhe traria vantagens.

Mal se mudou para a favela, já vem botar banca: “tu quer mandar em tudo!”, alerta seu amigo Lico após uma briga durante a pelada. “Tem que mandar, são burros pra caralho!” (ep. 2). O playboy branco tem a convicção de que, caso pudesse “ser um deles”, seria o melhor de todos. Afinal, teve a oportunidade de estudar em bons colégios, crescer em um lar aparentemente estruturado, receber amor de ambos os pais, coisa que nenhum dos jogadores “burros” da pelada teve. Dom, além de tudo, é branco, loiro de olhos azuis, receita perfeita para o sucesso. Ele só precisava de algum objetivo que despertasse seu espírito de liderança e lhe desse o senso de responsabilidade que sempre se negou a ter. Esse objetivo é o crime.

Logo no primeiro assalto, se revela um grande estrategista. Enquanto os outros membros do “bonde” comemoram os dólares roubados, Dom mostra-se insatisfeito e irritado. Ele não liga para dinheiro, nem faz questão da sua parte do lucro dessa primeira invasão. Não bastasse ser bom de futebol, de cama e de papinho, Dom também quer brilhar no crime. É ele quem vai trazer estratégia aos assaltos: “se usar a cabeça não precisa usar arma”, ensina ao Negão/Armário (Digão Ribeiro), mais habituado a usar a força bruta do que o cérebro (e viva o estereótipo!).

Já que falamos do “bonde”, vamos aos personagens. Negão, também chamado de Armário, carrega nos dois apelidos a síntese do que representa para a trama: um mero guarda-costas negro e grande. Mais do que ausência de imaginação (ou de referências de apelidos para homens do seu biotipo), a falta de originalidade das alcunhas revela desinteresse em humanizar o personagem. Sem nome, sem sobrenome, sem nuances, Negão/Amário não tem nenhum traço de personalidade que escape ao clichê. Ademais, depois de Pedro Dom instituir que o uso da força bruta deveria ser evitado, seu papel na quadrilha perde grande parte do sentido.

Nos assaltos da série, só são de fato necessários Dom e a menina loira que desempenha sempre o papel de uma apetitosa isca. Apesar de ser uma das personagens principais, Viviane (Isabella Santoni) é tão estereotipada e plana que só aparece no final do (longo) segundo capítulo sem que isso cause nenhum estranhamento ou dificuldade de compreensão da trama. Não há trama para ela, que não passa de um manequim de vitrine, sem passado, presente, vida pessoal ou profundidade.

A personagem ao menos poderia ter aparecido antes em alguma cena com Jasmim (a namorada de Dom), sugerindo que as duas são amigas, têm vida pessoal além de orbitar ao redor de Dom e têm mais o que fazer além de cobiçar seu pênis. O que me lembra que as duas meninas chegam de fato a disputar por um pênis (de plástico) numa cena bizarra em que encontram na gaveta de uma das vítimas uma coleção de vibradores. Quem neste mundo usaria o vibrador alheio? Me parece pior do que comprar calcinha em brechó. Querida, venda o brinco de diamantes que você acabou de roubar e compre o melhor vibrador de todos, o mais caro, o mais potente. Não precisa usar o dos outros.

A outra personagem feminina, embora não escape à fetichização, tem mais profundidade na trama: conhecemos sua casa e sabemos um pouco sobre a sua família. Jasmin (Raquel Villar) é uma mulher negra filha de pai alcoólatra que batia na mãe, e por isso teve que se virar sozinha desde muito nova. É ela quem convida Dom a fazer parte do bonde, alegando que, com aquela “carinha de playboy”, ele entraria facilmente em qualquer edifício.

O racismo estrutural, que permite a Dom acessar os prédios mais ricos da cidade sem causar suspeitas, é o mesmo que a obriga a entrar pelos fundos, o que revela uma escolha no mínimo curiosa dos criadores da série, uma vez que Jasmin seria supostamente inspirada em Bibiana, namorada de Dom na vida real e que tinha fácil acesso à alta sociedade por ser filha de um oficial de alta patente da Aeronáutica e de uma diplomata. Apontada pela polícia como a verdadeira mentora da quadrilha de Dom, era Bibiana quem escolhia as vítimas, dirigia o carro de fuga da quadrilha e escolhia qual membro da gangue ficaria com cada item roubado, de acordo com sua participação no crime².

A escalação de uma atriz negra para um papel de destaque como esse é sem dúvidas um mérito da série. Mas o tiro sai pela culatra quando, implicitamente, acaba por reforçar a ideia de que nutrir amizades e relacionamentos com pessoas negras (sobretudo moradoras de favelas) é a porta de entrada de um jovem branco de classe média para as drogas e o crime organizado (como se a elite já não estivesse exposta a todo tipo de delitos e drogas lícitas e ilícitas no seio de seus próprios círculos sociais…).

O quinto e último integrante do bonde é Lico (Ramon Francisco), o melhor amigo negro de Dom, um menino que cresceu sem pai e sem oportunidades e que, tal qual Jasmin, descamba para o crime. Filho da empregada doméstica da família do protagonista, ele e Dom crescem juntos e tornam-se amigos inseparáveis. Mais responsável do que o próprio Dom, Lico passa a vida a livrar o amigo dos apertos. A recíproca nem sempre foi verdadeira, como quando, na adolescência, Lico é espancado pelo segurança de um shopping e o amigo se aproveita do alvoroço em torno da situação para roubar gameboys antes mesmo de tentar socorrê-lo (ep. 4). Não foi nesse momento que Dom aprendeu que o mundo não enxergava Lico, preto, e ele, branco, da mesma forma. Ele já sabia disso e a série sugere que ele usara propositalmente o amigo como boi de piranha.

Que Dom seja um personagem complexo e ambíguo (leia-se, escroto) não é por si só um problema. Escancarar suas incongruências, construí-lo enquanto ser passível de cometer atitudes machistas e racistas, é justamente o que o define como anti-herói (ninguém espera que ele seja um bom moço, e tá tudo bem). O problema é quando os preconceitos e as incongruências não saem da boca dos personagens, mas da própria proposta narrativa, refletindo-se na trama em si.

Um claro exemplo é quando a violência racista e estrutural sofrida por Lico na adolescência é equiparada à violência pontual que Dom sofre do pai no mesmo episódio. Este último lhe desfere um tapa no rosto quando descobre que, não bastasse ser usuário de cocaína, o filho adolescente também era ladrão. A cena é acompanhada por um violino dramático, em contraste com a frieza com que o espancamento criminoso de Lico é tratado. Mas as assimetrias parecem inexistentes quando os dois amigos estão novamente unidos, com suas tipóias, olhos roxos e histórias para contar.

Eles se amam, e isso é lindo. Anos depois, Lico morre se declarando para Dom após ser rejeitado por ele. Eu te amo, eu te amo, eu te amo, ele grita logo antes de morrer de overdose nos braços do amigo (ep. 4). Dom segura seu rosto entre as mãos e repete: te amo, meu irmão, tamo junto pra sempre. Claro, ninguém duvida que Lico é quase da família, só não era profissional o suficiente para integrar seu seleto bonde do crime (e Dom preferiu deixá-lo se emburacar nas dívidas e no pó). Amigos, amigos, negócios à parte.

Falando em negócios, na casa das vítimas, cada um rouba aquilo que melhor combina com seu estereótipo. Mulheres gostam de roupas de marca, jóias, pênis e outras veleidades (Viviane também tem a estranha tara de mijar nas coisas), homens negros roubam produtos de consumo imediato, como álcool e comida, afinal, pobre quando assalta não resiste à tentação de abrir a geladeira da vítima para roubar uma latinha de cerveja, pelo menos não na cabeça de um roteirista branco.

A elite branca parece viver sob o medo constante de que suas empregadas usem seu banheiro ou comam seu sorvete, cenas que podem cair bem em filmes que falam sob a perspectiva dos empregados, onde o ato de usar algo do patrão tem ar de escracho (vide Parasita) ou de crítica social (como em Que horas ela volta). Mas Lico abre a latinha por pura fanfarronice e falta de profissionalismo, motivos que o levam também a ligar o som no último volume no segundo assalto, levando a um desfecho trágico.  E Dom? Dom é o único que mantém a calma e o profissionalismo, e também o único que se incomoda em ser reduzido ao estereótipo:  “Loirinho é o caralho, meu nome é Pedro Dom” (ep. 2), ele mesmo anuncia, em alusão à frase icônica de Zé Pequeno em Cidade de Deus.

Uma segunda trama se desenrola paralelamente na série: a história de como Victor Dantas (Flávio Tolezani), pai de Dom, assume um papel de destaque na guerra às drogas nos anos 1970. Esse jovem tímido, recém saído do ensino médio, sem amigos, sem namorada, sem perspectiva de emprego e com o único sonho de se tornar mergulhador profissional, torna-se, em tempo recorde, uma espécie de James Bond à brasileira, sendo mandado ao litoral do Nordeste para mapear os pontos de contrabando por onde a cocaína entraria no Brasil.

Esta primeira missão já envolve perseguições armadas, trocas de tiro e, é claro, uma sensual agente da Interpol (Paloma, interpretada por Júlia Konrad), que se envolve romanticamente com o nosso Bond. Afinal, que mulher bem sucedida e inteligente, que trabalha como agente infiltrada da Interpol numa importante operação internacional de combate ao tráfico de drogas, resistiria à tentação de seduzir e ir para a cama com um virgenzão de 18 anos de idade?

Nos parece que a série, desde a sala de roteiro até a direção, poderia ter sido mais preocupada com a construção de personagens que não reforçassem clichês e estereótipos raciais e de gênero, especialmente no que tange a mulheres e pessoas negras. Isso se verifica inclusive na representação de Arcanjo (Wilson Rabelo), o agente da ditadura que apadrinha Victor e que o insere na operação de combate às drogas em 1969. Esse personagem (que de fato existiu, mas cuja verdadeira identidade desconhecemos devido à origem secreta de suas missões) poderia ser um homem autoritário e de pulso firme, mas se deixa questionar constantemente por Victor, agindo muito mais como um mentor para o jovem do que com a postura que se esperaria de um militar de alta patente nos anos mais severos da ditadura. Arcanjo, escalado como um homem negro, é uma espécie de pai para Victor, uma vez que seu pai biológico (branco) é austero demais para cuidar do menino. Em contraste com a representação cordial de Arcanjo, os militares brancos são retratados como durões, corruptos e autoritários.

Os habitantes do Morro Dona Marta, para onde Victor é mandado em sua segunda missão, parecem igualmente construídos sobre a lógica estereotipada de que todo pobre é, no fundo, um ser cordial e gregário³. Ao que parece, o personagem Ribeiro (Fábio Lago) é baseado em um importante traficante dos anos 1970 que de fato ficou amigo de Victor (sem saber, é claro, que o jovem era um agente infiltrado da ditadura)4, mas o que espanta é a propensão que todo personagem não-branco ou pobre da trama tem para confiar em Victor e, anos mais tarde, em seu filho Dom, como se ambos tivessem um dom natural para a liderança ou, o que é pior, como se a subserviência ao homem branco fosse inata a toda e qualquer minoria.

A verdade é que nada disso é novo. A série trabalha em cima dos mesmos estereótipos usados para representar pessoas negras desde que o mundo é mundo e que o cinema é cinema. São os “toms”, os “magical negros”, os “thugs”, as “mammies”, arquétipos conhecidos na sétima arte, sobretudo estadunidense5, e que permeiam até hoje o universo criativo das salas de roteiro. Apesar da crescente cobrança por maior diversidade no audiovisual, os homens negros continuam frequentemente retratados como assustadores ou agressivos e mulheres negras como espalhafatosas e atrevidas6.

No Brasil, esses personagens ganham um tempero próprio às nossas assimetrias e desigualdades, e se transformam nos “negões”, nos “negros de alma branca”, nos “pretos velhos”, nas “mulatas boas”, para mencionar apenas alguns dos arquétipos e caricaturas presentes no nosso imaginário (listados em obras como “O negro brasileiro e o cinema”, escrita por João Carlos Rodrigues há mais de 30 anos). Para piorar, Dom abusa não apenas do repertório racista como também do machista, representando mulheres como sedutoras e lascivas, como Viviane, Jasmin e Paloma; ou como submissas e do lar, à exemplo da mãe de Dom e de Lico.  Os personagens da trama parecem meros degraus sobre os quais os protagonistas Dom e Victor se apoiam para chegar “sozinhos” às posições de comando e poder.

Por Isadora Liborio

Notas:
1 – MARTIN, Brett. Homens Difíceis – Os bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias. São Paulo: Aleph, 2014.
2 – Fontes: https://extra.globo.com/noticias/rio/ex-namorada-de-pedro-dom-presa-677278.html e http://g1.globo.com/Noticias/Rio/0,,MUL32677-5606,00-ACUSADA+DE+CUMPLICIDADE+DE+PEDRO+DOM+E+PRESA+NO+RIO.html (visitadas em 21/08/2021)
3 – Representação presente no repertório imagético sobre o Brasil e os “favelados” desde Orfeu Negro (Marcel Camus, 1959), um dos primeiros filmes de repercussão internacional a se passar quase exclusivamente na favela, onde os moradores eram representados como “pobres mas felizes” (LIBORIO, Isadora. “La représentation du Brésil et des Brésiliens dans le film Orfeu Negro, de Marcel Camus, 1959”, École Normale Supérieure de Lyon, 2017)
4 – Fonte: https://veja.abril.com.br/blog/e-tudo-historia/a-absurda-realidade-de-dom-o-que-e-fato-e-ficcao-na-serie-brasileira/ (visitada em 06/09/2021)
5 – BOGLE, Donald. “Toms, Coons, Mulattoes, Mammies & Bucks: An Interpretive History of Blacks in American Films”.New York: Continuum, 1973
6 – Fonte: https://www.dw.com/en/hollywood-movies-stereotypes-prejudice-data-analysis/a-47561660 (visitada em 06/09/2021)