“Você realmente não vê o que está acontecendo ou simplesmente não se importa?” A pergunta tem destaque no programa impresso da peça Os Sonhadores, em cartaz no Teatro Oi Futuro Ipanema (RJ) nos meses de abril e maio de 2016¹. Essa indagação norteia o projeto que recupera a Paris de 1968 do livro de Gilbert Adair para atravessar o Rio de Janeiro de 2016, em uma encenação onde os jovens realizadores refletem seu estado de perplexidade na tela de uma espécie de sala de cinema teatral. Ainda que pudéssemos traçar relações com a adaptação para cinema dirigida por Bernardo Bertolucci (2003) – principalmente se levarmos em conta os figurinos que fazem referência quase direta – interessa-me mais a forma como a peça-filme acima citada articula os corpos dos atores com as projeções visuais. A quarta parede translúcida do cenário achata as luzes que nela chegam, tanto as que vêm do palco (refletidas pelos personagens e pela caixa preta literal) quanto as que vêm do projetor situado atrás da plateia. Proponho, aqui, diálogos entre as imagens construídas nessa tela com outras duas obras: Concreto Armado (2014), espetáculo da cia Teatro Inominável, dirigida por Diogo Liberano (que também assina a dramaturgia de Os Sonhadores), e Zabriskie Point (1970), longa metragem de produção norte-americana dirigido por Michelangelo Antonioni, que é visualmente citado no final da adaptação carioca do romance de Adair.
Pensemos em Concreto Armado². Estreada em abril de 2014, às vésperas da Copa do Mundo no Brasil, retratava jovens cariocas insatisfeitos com a situação política do momento, ansiando por mudanças profundas. Movidos pela angústia e solidão naquela cidade opressora, decidem realizar um grande atentado desesperado: explodir o Maracanã. Naquela peça, era instaurada uma realidade paralela, circular, em que o público era colocado frente a frente na arena do Espaço SESC Copacabana (RJ), a cena acontecendo no meio. Dois anos depois, às vésperas dos jogos olímpicos, o público adentra uma sala de cinema emulada no palco italiano do Oi Futuro. O cenário remete à cinemateca francesa evocada pelos três jovens burgueses aprisionados atrás da tela que os separa do público. “Há quanto tempo estamos aqui? Lá fora é só o que existe agora”, dizem os personagens de Os Sonhadores, que se isolam em um apartamento enquanto protestos acontecem nas ruas. Eles possuem um discurso engajado e combativo, mas preferem passar os dias bebendo vinho, fazendo sexo e brincando de jogos cinematográficos: “Presos numa liberdade sem sol, repetíamos nossos jogos caseiros até perder a distinção entre o que era vida e o que era sua mera representação.” Se, em 2014, os espectadores eram dispostos em uma sala circular que convocava a uma ação concreta, armada e efetiva na urgência do agora, em 2016, o público é disposto diante de uma tela e convidado a imergir em um mundo de sonhos. A peça termina com a plástica explosão da casa-modelo de Zabriske Point, projetada sobre a tela do palco enquanto os protagonistas a observam, catatônicos.
O paradoxo entre o desejo de ação e a perplexidade paralisante, entre um engajamento transformador e a condição espetacular perpassa várias instâncias da encenação em Os Sonhadores. Desde o primeiro “plano”, aqueles corpos se apresentam como imagens, brilhando por trás da tela, executando uma partitura de movimentos em “câmera lenta” enquanto falam um texto em “velocidade normal”, o que gera um estranhamento e evidencia a condição superficial das imagens e sons postos em cena. Os personagens se apropriam de um vocabulário que frequentemente reitera a dimensão cinemática e ilusória de suas vidas, como quando o protagonista Matthew diz: “editei o filme nas minhas retinas”, referindo-se à memória de uma situação marcante, ou quando descreve a sensação de uma corrida dizendo que “tudo virou pintura impressionista, tudo se misturou, tudo ganhou movimento.”
Durante essa corrida, surgem imagens abstratas na tela do palco-cinema. São riscos de luz, cores, fragmentos de formas irreconhecíveis. A princípio, elas parecem ser a visão subjetiva dos personagens correndo. Mais à frente, vamos descobrir que são premonições dos conflitos vindouros, lentamente se instaurando sem que os personagens (e público) notassem, preocupados com a brincadeira da simulação de cenas de filmes no museu. As imagens abstratas animam-se e formam contornos identificáveis: somos reapresentados aos registros documentais das manifestações de 2013, que aqui ganham estatuto de espetáculo ao serem projetados na grande tela da cinemateca francesa de Ipanema. Presentificam registros antes banalizados nas redes sociais, vistos em telinhas de celulares e nos monitores com a imediaticidade da informação instantânea – instrumento para a articulação então necessária. Theo, Isabelle e Matthew nada fazem diante dessas imagens. Ficam em silêncio. O público também. Aquelas luzes se movem como fantasmas de um mundo distante, impregnadas da fúria que emanava dos corpos filmados e dos que empunhavam as câmeras. O Maracanã não explodiu, Amarildo sumiu, a PM espancou (com a conivência da então presidenta ex-guerrilheira que nos chamou de baderneiros na TV, época remota pré-panelaço), falamos que não ia ter copa, teve copa, não ia ter golpe, teve golpe, Rafael Braga ainda está preso, onde estivemos este tempo todo? A pedra quebrou nossa janela em 2013 e fomos às ruas ou aquilo foi tudo um sonho e precisamos, agora sim, atear fogo nos prédios públicos ocupados por governantes ilegítimos?
Se, em Os Sonhadores, os jovens se enclausuram na inércia, em Zabriskie Point, eles fogem do centro urbano onde os conflitos ocorrem e refugiam-se no deserto, onde só ouvem notícias dos acontecimentos pela rádio. Brincam na areia e fazem uma grande orgia com trilha sonora de Pink Floyd. Os irmãos sonhadores fazem amor na bolha de realidade do incesto não-interdito. Diante de um mundo regido por forças maiores, os jovens dessas narrativas optam pelo isolamento ao mesmo tempo voluntário e compulsório. Eles querem participar da luta, mas também não querem. Os jovens do filme de Antonioni pintam um avião com frases de paz, amor e cores psicodélicas. Contudo, o vôo é impossível. Mark é metralhado pela polícia e morre dentro do avião no final da história, assim como Matthew, o americano sonhador, que é morto no protesto no final de sua história. Só é possível a vivência da realidade desejada no mundo imaginário do cinema e nas bolhas construídas. Aos que tentam acreditar em suas utopias e praticá-las na materialidade exterior, cabe o fim fatal, abrupto e exemplar. Quando Matthew morre na peça, a tela se ilumina em volta, como uma moldura de um quadro, fixando aquela imagem trágica. Os que sobrevivem alcançam o distópico mundo dos adultos.
Após ser afetada pelos adultos brancos, ricos e céticos que brincam de especulação imobiliária no deserto, Daria, a sobrevivente de Zabriskie, explode a casa com seu olhar. A maquete e os bens de consumo capitalistas voam pelos ares, o sol se põe, a canção de Roy Orbinson diz que há um lugar para os sonhos, em tom de lamento, resignada com o mundo girando, com os sonhos nascendo fadados a se pôr junto com o sol, que vai nascer no dia seguinte para se pôr novamente. Love was meant to be wild and free, so young / Love is space in life / A place in time, a state of mind, too late I find / When tomorrow’s gone and love is lost, so young³. Dali a 30 anos, Daria será uma daquelas mulheres que ela encontrou na piscina da casa-modelo no meio do deserto, com empregadas domésticas indígenas? No futuro, os jovens de Os Sonhadores serão os adultos com os quais eles têm fervorosas discussões? O pai francês é um importante poeta, talvez tenha sido de esquerda no passado e algo aconteceu para que se tornasse um adulto considerado conservador pelo filho. Mas é ele quem sustenta aquele apartamento em que os filhos (burgueses) vivem suas fantasias. No filme de Bertolucci (co-roteirizado pelo autor do livro, Gilbert Adair), há ainda uma cena em que os pais voltam de viagem e se deparam com o apartamento em frangalhos e os jovens nus dormindo na sala de estar, sob uma cabana improvisada. A reação dos pais é preencher um cheque, deixá-lo na sala e sair de casa sem fazer barulho.
A anedota que Matthew conta sobre o isqueiro na mesa, cujas medidas equivalem às do quadriculado da toalha, impressiona o pai poeta dos irmãos sonhadores. Matthew defende que as coisas do mundo podem ter uma harmonia se olhadas à distância, assim como a pintura impressionista que, se vista de perto, é caótica. Esse raciocínio embasa a retórica intransigente do pai: ele afirma que aqueles protestos são inúteis, incapazes de mudar o status quo e que, pelo contrário, apenas o reiteram. Bastaria analisar friamente e à distância para perceber que as “demonstrações” (como ele chama os protestos) são fúteis e que aqueles jovens estariam sendo, de alguma forma, manipulados para tal. Perto do final da peça, outro conflito de gerações: um dos personagens diz que encontrou um senhor na rua que lhe disse “vocês estão destruindo a história”, e o jovem lhe respondeu “nós estamos escrevendo outra história”. A peça escancara a analogia com maio de 68 também através da materialidade onírica dos textos escritos, projetados na tela: os discursos se sobrepõem, confundindo palavras de ordem dos anos 1960 com as dos anos 2010. Uma juventude que deixa de ser coadjuvante e vai “lutar” depara-se com a fragilidade dos discursos frente à truculência do real. “Onde vocês vão estar quando uma multidão mais uma vez se levantar contra o poder pra defender o que deveria ser comum a todos?” A sensação de impotência é desesperadora: “Parem o mundo, eu quero descer”.
Vitor, você teve uma leitura iluminada do nosso projeto!
Muito obrigada, de coração, pelo texto tão observador, cuidadoso e preciso! Faço minhas, as suas palavras!