RESUMO
Este ensaio parte do filme Esse amor que nos consome¹ (2012), de Allan Ribeiro, a fim de relacionar cinema e dança adentrando suas diversas camadas, notadamente a relação com a cidade, com as políticas do corpo e com a ancestralidade.
PARTE I
Cinema e dança, de fato, dialogam num lugar para além da forma em que tradicionalmente se reconhecem dança e cinema, ainda que lancemos mão da forma-dança e forma-cinema. Isso pode ser compreendido, por exemplo, a partir do filme Esse amor que nos consome, de Allan Ribeiro. A primeira vez que eu vi foi em 2013, na ocasião da entrada do filme em circuito comercial (e após uma já significativa e premiada trajetória em festivais) e a mais recente foi no contexto do Ocupa MinC em 2016. Acompanho a trajetória artística dos personagens centrais do filme, Gatto Larsen e Rubens Barbot, há pelo menos 20 anos no contexto da dança contemporânea carioca. Percebo que, nessa obra de Ribeiro, algo do modo como se estruturam as políticas do corpo, da dança, da ancestralidade e da relação com a cidade na perspectiva de Gatto e Barbot ganham materialidade fílmica singular.
Busquei textos críticos sobre o filme² para entender como ele estava sendo abordado. Carlos Alberto Mattos aponta a correlação entre corpo e cidade, onde esta última é um organismo vivo e palco de disputas políticas na ressignificação de áreas decadentes ou ociosas, justamente onde o grupo vai se instalar. “O que fazem Barbot e sua turma é transformar casa e rua em equipamentos produtores de afetividade, canteiros de obras sensíveis em diálogo constante com a geografia da cidade” (MATTOS: 2013). Já Ilana Feldman ressalta no seu texto o caráter ensaístico do filme:
Nem ficção propriamente dita, nem documentário, no sentido consensual do termo, o filme de Allan Ribeiro é um híbrido de ficção documental, ou documentário cênico, mais próximo à noção de filme ensaio: “gênero” sempre inadequado e indeterminado, desprovido de substancialidade normativa, lugar de transição, espaço de crise e de criação. (FELDMAN, 2013).
Feldman ainda aponta como temas que aparecem no filme por meio da voz de Gatto Larsen em off sobre imagens documentais do centro do Rio de Janeiro associam a cidade às suas velocidades e remetem ao Poema Sujo de Ferreira Gullar. Na voz de Gatto, ouvimos: “A cidade que me escolheu para viver/ É impossível saber em quantas velocidades ela se move”. As imagens, ainda com Feldman e através dela com Didi-Huberman, são atravessadas e feitas de diversas temporalidades e velocidades, formando diferentes camadas de tempos e sentidos. Fábio Andrade³, em cobertura da 45ª Mostra de Cinema de Brasília (2012) aponta como o filme se inscreve num rol de filmes contemporâneos que fazem da especulação imobiliária seu tema – Um lugar ao sol (2009, dir: Gabriel Mascaro), Recife Frio (2009, dir: Kleber Mendonça Filho), Menino Aranha (2008, dir: Mariana Lacerda), Praça Walt Disney (2011, dir: Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira), entre outros. Mas que, no caso de Esse amor… propõe uma leitura diversa daquela de “um espaço (…) um dado frio, simbólico e externo à vida cotidiana a não ser como reflexo” (ANDRADE, 2012). Ao contrário, o espaço proposto por Esse amor… é um espaço adensado pelos afetos das personagens com a cidade ou, como diz Gatto em entrevista feita para a escrita deste ensaio “não conseguimos trabalhar sem antes sentir a cidade, nos situar”.
INTERMEZZO – A linguagem cinematográfica e o método de analisar (com base no trabalho de Beatriz Furtado sobre os filmes de Pasolini)
Para formular a noção de cinematocoreográfico que aparecerá a seguir, vale a pena, neste intermezzo, dialogar com uma definição de linguagem cinematográfica. Por meio da leitura da pesquisadora de cinema Beatriz Furtado do texto intitulado FORMA(S): Das Matérias do Filme ao Espírito nas Formas, de autoria de Maria Irene Aparício (2014), vê-se que “a linguagem cinematográfica é uma tentativa de estabelecer regularidades normativas que culminam na cristalização da forma como modelo”. A forma cinematográfica seria marcada, então, pela cristalização dos elementos em cena. O que se chama de linguagem cinematográfica é imbuído do modelo de representação da perspectiva renascentista e que tem como ponto central o olhar – ou seja, está dentro do modelo ótico.
A fim de analisar as escolhas fílmicas de Pasolini, Furtado⁴ dialoga com os textos de Pasolini e com interlocutores como Didi-Huberman, a fim encontrar um outro caminho que não o de buscar regularidades que produzam uma norma (as similitudes, um regime único de verossimilhança) e de inserir-se na cena buscando justamente as irregularidades, as anomalias no interior do filme. Essa é a ação do sismógrafo, segundo Didi-Huberman: aquele recolhe do terreno (que neste caso é o filme) o que se revela como acidente em seu sentido geográfico, como entidade diferenciada do relevo da Terra, como diferença estruturante. Essa metodologia de trabalho – buscar os acidentes a partir do modo de filmar – será orientadora para o modo de aproximação com o filme Esse amor…
PARTE II – Roteiro, decisões ou o trabalho da obra
Abordando as escolhas do modo de filmar de Pasolini, Furtado pensa nas implicações das decisões do diretor em posicionar personagens e câmera de determinado modo, em determinado filme. A pergunta básica de Furtado é como as questões de Pasolini – através de decisões de mise-en-scène da câmera e dos personagens – viram matéria fílmica. Não seria, segundo ela, uma crítica do cinema mas antes um diálogo com os textos de Pasolini e em como ele resolve uma forma em seus filmes e quais são as consequências dessa resolução.
Utilizando como método o interesse pelo diálogo, realizei uma entrevista não com o diretor de Esse amor… mas com um de seus estreitos colaboradores e personagem do filme (Gatto Larsen) a fim de saber, em primeiro lugar, como foi feito o roteiro do filme da perspectiva coreográfica de Larsen⁵. Tinha interesse, também, em pensar o que desse roteiro imprimia acidentes (no sentido de Didi-Huberman) e intensificações de produção coreográfica no filme.
Percebi que haveria, então, um trabalho de justaposição entre o vivenciado e o filmado, como relata Gatto Larsen:
Aquela história de que o Barbot está costurando na primeira cena, ele está costurando os colchões que a gente fez, que eram almofadas juntas e forradas porque não tínhamos nem colchão. Tudo é real naquele filme, menos o tempo. Tudo isso fui relatando pro Allan e Allan foi construindo o roteiro, o ritmo do roteiro.
Na afirmação “Tudo é real no filme, menos o tempo” percebo como foram produzidas camadas superpostas de tempo a partir de experiências vividas por Larsen e Barbot que vão na direção de tornar complexa a própria reconstrução do vivenciado. Um outro exemplo é a figura de Exú, feita por um homem afro-descendente vestido a caráter que aparece em momentos do início do filme mas que nunca é visto pelos atores-personagens. Ele aparece no prólogo do filme, numa primeira cena onde búzios são jogados e Iansã diz que eles não perderão a casa, podendo se instalar nela com tranquilidade de que a prometida venda pelo proprietário não se realizará. Sobre essa figura de Exú, Larsen também conta uma cena que não entrou no filme:
No primeiro dia de filmagem, quando terminou, eu jantei junto com o Allan e com o Barbot e Allan disse: Sabe de uma coisa? Estou pensando que tem que ter um Exú, mas não um bailarino fazendo Exú, mas alguém que não está no roteiro. (…) Barbot fez o figurino, convidamos o Edílson, um cara que faz dança afro por prazer mas ele é cozinheiro, ele adora ser cozinheiro, cozinha num hotel em Copacabana (…) Tem uma cena que adorei que o Allan cortou porque descobriu que, nas três vezes que se repetiu a cena, o Barbot olhava pra câmera, mas era na mesa que a gente usava naquela época pra comer, que a gente tava tomando um lanche e de repente pum aparecia o Exú fumando na cabeceira da mesa e eu perguntava pro Barbot: Escuta, Barbot, você comprou charuto hoje? Ele dizia: Não! E eu: Tô sentindo um cheiro de charuto … e daqui a pouco pam, a mesa sem ele, sem o Exú. Mas ninguém via o Exú.
Detenho-me, então, nos relatos do filme (pensando o que significa isso hoje) para ver o que acontece às imagens, em qual o trabalho da obra, em o que ela dá a pensar sobre o coreográfico e o cinematográfico.
PARTE III – Intensificação da produção: alguns abalos que precedem o filme e cenas do filme em diálogo com a entrevista
Selecionei algumas cenas do filme em diálogo com os relatos de Larsen sobre a forma de composição e os extratos de tempo presentes nas imagens do filme. De uma forma mais genérica, o roteiro foi escrito a partir do relato dos processos coreográficos da companhia de Larsen e Barbot, de suas experiências de vida (em especial, a mudança para o casarão antigo) e da própria experiência em conjunto do diretor com atores-dançarinos-personagens. A colaboração entre Larsen, Barbot e Ribeiro se inicia com uma encomenda de Larsen a Ribeiro de passar fitas de VHS com registros das coreografias da companhia para DVD. Ribeiro conheceu, portanto, todo o repertório e chegou a registrar outros trabalhos coreográficos da companhia. Gatto relata na entrevista como, a partir de uma performance criada ainda quando moravam em Porto Alegre, nos anos 90, e reencenada por Larsen e Barbot em 2009 no Rio de Janeiro, veio o convite à realização do primeiro curta juntos: Ensaio de cinema (2009), anterior a Esse amor… (2012). A referida performance foi reencenada na abertura de um restaurante no Rio:
Vou contar a história de um filme que um cara queria fazer e vou falando informações de cinema, que tenho muitas porque sou formado em cinema e tenho muita informação de filme dos anos 60 e 70 (…) por casualidade Allan estava lá, eu não sabia (…) Allan chegou e eu disse: Viu que a gente faz essas coisas de cinema também? E Allan disse: Pois é, Gatto, mas isso dá um curta. Vamos fazer um curta?
Nota-se, assim, que tanto o vínculo entre diretor e atores quanto as experiências por que passaram juntos (foi Allan quem ajudou na mudança para o casarão) imprimem no posterior roteiro e filme uma presença de vários tempos a partir de uma reconstrução do vivido. Gatto relata que o diretor pede a ele que rememore momentos específicos de conversas com Barbot (o caminhar pelas ruas, o conversar no café da manhã, a relação de vínculo com os bailarinos, com a política dos corpos negros, com a cidade e com a ancestralidade) e pede que eles refaçam tais conversas ou gestos em determinado cenário ou local. Segundo Gatto, essa é uma das maneiras que Allan se apropria do vivido para construir as cenas, o roteiro e o ritmo do filme.
Gatto conta que o filme de 2012 se relaciona com cinco espetáculos da companhia: um dá título ao filme (Esse amor que nos consome), dois viram tema de conversa no filme (Othelo e Tempo), um tem trecho reencenado (Um Rio) e, por fim, uma coreografia que nunca foi feita mas que vira uma belíssima cena de ensaio, imaginação e improviso de Rubens dançando ao som de Handel e Gatto descrevendo a cena do possível espetáculo, cujo still vemos abaixo.
Gatto conta, em ocasião anterior à realização do filme, que, quando Allan foi contratado pela companhia para registrar o espetáculo em uma das temporadas, Gatto se surpreendeu porque Allan posicionou a câmera no espaço e foi embora. Depois, ao ver as imagens, Gatto pensou que havia tido edição nas imagens e se surpreendeu com o olhar preciso de Allan em como registar aquela dança com câmera fixa.
É bastante comum, para coreógrafos, a problemática relação em registrar uma coreografia que acontece em cena sem edições, sem maiores interferências da câmera e de seus aparatos e temporalidades de forma a “somente registrar”. Interessa-me aqui ressaltar, por meio do relato de Larsen, um vínculo entre os três artistas que extrapola o formato cinematográfico mas que se imprime nele de forma intensa.
Uma outra cena do filme que carrega uma intensidade (que eu chamo aqui de cinematocoreográfica) é uma cena que foi especificamente coreografada para o filme: uma cena das ruas do Rio à noite, da aparição e dança de dois homens se beijando. Gatto conta sobre essa cena:
Essa é coreografia para o filme e é de Luís Monteiro em cima de tudo o que eu falei para o Allan de como o Rubens [Barbot] observa, como é a pesquisa do Rubens que mantém até hoje: gestos, movimentos e imagens que se desprendem de corpos afro-brasileiros, seja lá um pedreiro que está jogando tijolos de baixo pra cima e que joga tijolos de baixo pra cima de forma diferente que um branco.(…) Fui contando como o Rubens, como já aconteceu numa festa do Tá Na Rua, saiu pra fumar na sacada e vê um mendigo que está dançando com uma música e ele desce pra dançar com o mendigo porque ele tá achando que o mendigo tá dançando maravilhosamente bem então ele vai lá e aí que faz o registro iconográfico [e eu disse: e gestográfico] dos movimentos. Aí, o Allan disse que queria uma cena assim porque queria uma história de sexualidade, de opção e gostava muito da música do final do Reino do Outro Mundo [espetáculo antigo da companhia].
Muito rapidamente, essas cenas pareciam achatar a experiência da dança e do filme em uma leitura de cenário e dançarinos posicionados a favor dessa câmera, produzindo uma imagem que, a meu ver, obliterava as inúmeras camadas que o filme dá a ver em muitas outras cenas. A imagem da beira do cais, inclusive, vira a foto-poster de divulgação do filme:
Parte IV – O cinematocoreográfico
O esforço desse ensaio foi o de aproximar os relatos de Gatto Larsen com as cenas do fime Esse amor… e propor uma relação denominada cinematocoreográfica: a emergência de uma forma de produzir as imagens que extrapola a linguagem cinematográfica (definida como norma, como vimos na parte do intermezzo) na relação com o coreográfico.