Editorial Nº 2, 2017 (janeiro a junho)

Acordamos cedo, embora tenhamos dormido tarde na noite anterior. Rapidamente, um café e qualquer dispositivo que nos informe. Nos últimos meses, parece que se torna difícil não permanecer, a todo tempo, conectado à internet, às notícias, para tentar entender aonde caminha a história brasileira. De alguma forma, o entendimento nos escapa, caminha em direção contrária ao volume de informação disponível. Organizar a história, associar imagens parecem atividades maiores que o presente: o que – e como – nos representa?

Enquanto nos indagamos, podemos voltar ao que nos diz André Bazin sobre a natureza do cinema: “por imagem, entendo de modo bem geral tudo aquilo que a representação na tela pode acrescentar à coisa representada. Tal contribuição é complexa, mas podemos reduzi-la essencialmente a dois grupos de fatos: a plástica da imagem e os recursos da montagem”1. Segundo o autor, a estética e a montagem funcionam como mecanismos utilizados pelo cineasta para construir sua interpretação do fato representado. Jacques Rancière também passa por essas questões: “A imagem nunca é uma realidade simples. As imagens do cinema são antes de mais nada operações, relações entre o dizível e o visível, maneiras de jogar com o antes e o depois, a causa e o efeito.”2 O real e sua representação se entrelaçam, se mesclam para se afastar e, em seguida, se chocar, produzindo uma distância, uma dessemelhança. Partindo dessas perspectivas e prosseguindo nossas elucubrações, qual seria o sentido político contido nessas imagens? Se, como afirma Comolli, “política é o que fabrica o vestígio e a cena da relação dos corpos singulares e dos sujeitos quaisquer (o corpo intérprete, o corpo espectador)”3, de que maneiras a articulação entre som e imagem percorre as noções de realidade, representação e política? Como poderia desenhar ideias, montar o mundo e atribuir-lhe sentido?

A imagem da história, do passado, também não é um terreno imóvel. Há também ali algo que se atualiza junto com o presente, algo que se modifica quando esquecido. Em Imagens apesar de tudo, Georges Didi-Huberman pontua: “uma imagem surge amiúde no momento em que a palavra parece falhar, uma palavra surge frequentemente quando é a imaginação que começa a falhar”4. No momento em que vivemos, linguagem e memória se intercambiam, evidenciam as lacunas nos processos de representação – política e identitária. Por meio deste segundo dossiê, nossos dias irreais: representações políticas em crise, a moventes abre diálogos sobre o que temos vivido. Em O real sob suspeita: espaços do fantástico na literatura e no cinema, Fabrício Basílio reflete sobre outros mundos possíveis. Daniel Abib escreve Cinecatástrofe: notas sobre o cinema de Béla Tarr, pensando nos horizontes utópicos em tempos de niilismo. “A Que Distância”: o road movie feminista e latino-americano, de Fernanda Eda Paz, se debruça na construção de identidade nacional e a resistência ao patricardo. Em “No peace, no pussy”: discussões sobre gênero, violência e negritude de Aristófanes a Spike Lee, Juliana Magalhães aponta outros elementos na discussão de representação. Em diálogo temático, Luiza Drable assina “Moonlight” e os silêncios do corpo negro. Os intertíscios do Cambridge, de Pedro Drummond, conceitua uma forma de pensarmos os limites entre ficção e real. A fronteira entre o bem e o mal: representações da Coreia do Norte nos dramas de TV do Sul, de Daniela Mazur e Vitor Medeiros, intercruza política, mídia e história na compreensão do presente coreano. No ensaio O Presidente, o Juiz e a Câmera, Isaac Pipano reflete acerca da posição do ex-presidente Lula quando representado. A trajetória desse político também atravessa A história que se monta: representações (e reverberações) da greve do ABC, de Laís Ferreira.

Esse dossiê conclui a segunda edição da Revista Moventes. Iniciada em setembro de 2016, a Moventes ensaia sobre as imagens e sons. De forma colaborativa, publicamos textos sobre filmes de maneira expandida – no uso pelas artes cênicas e televisão, por exemplo. Nosso interesse é poder relacionar com as imagens que, de alguma forma, atravessam-nos, deslocam os lugares de antes. Em o que vemos, o que nos olha, é possível encontrar textos de temática livre sobre diversas obras. No sentido do encontro, da escuta, conversas é uma seção dedicada a diálogos com profissionais do audiovisual. Temos, também, realizado coberturas de festivais e mostras de cinema, como o Festival de Brasília e a Mostra de Tiradentes.

Desejamos que os textos não se encerrem aqui. De alguma forma, que consigamos, ainda que em intervalos, pensar, divergir e entender sobre um mundo impossível.

Boa leitura!

Equipe Editorial – Camila Suzuki, Laís Ferreira, Vitor Medeiros

Notas:
1 André Bazin. O cinema. Ensaios. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1991, p. 67.
2 RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Tradução de Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 14.
3 COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Tradução de Augustin de Tugny, Oswaldo Teixeira, Ruben Caixeta. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 13.
4 DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Portugal: Editora Imago, 2012, p.43
Editorial referente aos artigos publicados entre janeiro e junho de 2017.