Cineclubismo e mulheres cineastas no estado do Rio de Janeiro: a experiência do cineclube Quase Catálogo

No Brasil e na América Latina, de modo geral, tanto a irregularidade temporal que marca as carreiras das mulheres cineastas quanto a ausência de registro acerca de obras concluídas são percebidas por quem se dispõe a estudar o tema. Como aponta a pesquisadora Elissa Rashkin,

O trabalho destas mulheres [diretoras de cinemas], embora tenha ocorrido durante quase todo o primeiro século de existência do cinema, foi irregular, fragmentado, e, frequentemente, comprometido por obstáculos externos; muitos filmes das primeiras décadas foram perdidos devido à negligencia da crítica e da curadoria, enquanto muitas diretoras que surgiram posteriormente viram seus trabalhos engavetados e esquecidos (RASHKIN, 2001, p.1).

Contudo, a despeito das dificuldades supracitadas, principalmente a partir dos anos 1960, mais mulheres passaram a atuar como diretoras de produtos audiovisuais na região. Embora a subrrepresentação ainda seja brutal, a trajetória das latino-americanas da esfera privada à realização cinematográfica vem ganhando alguma visibilidade. São emblemáticos desse esforço de resgate histórico as publicações Realizadoras latinoamericanas/Latin American Women Filmmakers: cronología/chronology (1917-1987), organizada por Teresa Toledo e lançada em 1987, e Quase Catálogo 1 – Realizadoras de cinema no Brasil, de Heloísa Buarque de Holanda, 1989.

Este trabalho [Quase Catálogo 1: Realizadoras de cinema no Brasil (1930-1988)] reuniu o número surpreendente de 195 cineastas e 479 filmes produzidos de 1930 a 1988. Digo surpreendente porque apesar da intensa produtividade da mulher no mercado cinematográfico do país, conforme comprova este Quase Catálogo, os sinais dessa evidência são curiosamente recebidos com grande surpresa e em geral investidos de um inequívoco sentido de “descoberta” (HOLLANDA, 1989, p.5).

Contribuem para a sensação de descoberta, além da invisibilidade, os dados do passado e do presente e a enorme desigualdade de gênero explícita neles. De acordo com relatório da Agência Nacional do Cinema (ANCINE), publicado em janeiro de 2016, dos 128 filmes brasileiros lançados em 2015 apenas 19 – ou 14,8% – foram dirigidos exclusivamente por mulheres. No Brasil, grande parte das diretoras que conseguem realizar, finalizar e distribuir seus filmes ainda luta contra todo um sistema de adversidades. E, quando nos viramos para o percentual de diretores segundo a cor, essa diferença é ainda mais marcada: de acordo com pesquisa publicada em 2014 pelo GEEMA (IESP/UERJ), 97% dos diretores de longas-metragens lançados entre 2002 e 2012 são brancos, 1% são pretos, 1% são pardos e 1% são amarelos. Para os autores do estudo, quando as variáveis gênero e cor são consideradas em conjunto, constata-se a total exclusão das mulheres pretas e pardas da direção dos filmes de maior bilheteria.

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Frame de “Amor Maldito”, dirigido por Adélia Sampaio

Mesmo com dados tão preocupantes, iniciativas de incentivo e valorização da direção cinematográfica por mulheres são alarmantemente escassas, sobretudo em se tratando de políticas públicas. Em 2013, o Ministério da Cultura lançou em parceria com a extinta Secretaria de Políticas para as Mulheres o Edital Carmen Santos de Cinema de Mulheres 2013 – Apoio para Curta e Média-Metragem, iniciativa pioneira e de apenas uma edição, já desencaminhada. Em 2014, o FEMINA, maior festival brasileiro dedicado ao protagonismo da mulher no cinema, realizou sua última edição por falta de patrocínio.

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Frame de “Os Homens Que Eu Tive”, de Tereza Trautman

Em geral, filmes encabeçados por mulheres cineastas costumavam ser lembrados em mostras especiais e cineclubes apenas em março, “mês da mulher”. Contudo, nos últimos dois anos, o movimento feminista ganhou destaque significativo nas redes sociais, na mídia brasileira e internacional e nas ruas.

No audiovisual não foi diferente, levando à criação de sites como Mulher no Cinema (2015 – ), fundado pela jornalista Luisa Pécora, e o grupo no Facebook Mulheres do Audiovisual Brasil (2015 – ), com mais de 8 mil profissionais, cuja primeira reunião presencial ocorreu em novembro de 2015, na cidade de São Paulo. Desde então, o debate sobre machismo e misoginia na área vem ampliando-se consideravelmente, e ações independentes têm surgido com grande força por todo o Brasil, como a criação de coletivos¹, seminários², mostras³, festivais­e até mesmo cineclubes inteiramente dedicados às mulheres na direção cinematográfica.  

No Rio de Janeiro e região metropolitana há uma infinidade de cineclubes. Alguns possuem um perfil mais genérico, exibindo todo tipo de filme – é o caso, principalmente, daqueles que se encontram em bairros onde não há salas de cinema. Entretanto, a maioria dedica-se a determinados focos. Tomemos por exemplo alguns dos realizados no Cine Arte UFF e no Cine Odeon – dois grandes celeiros de cineclubes no estado. A curadoria do Cine Clube Direito em Movimento (Odeon) é voltada para produções com temas relacionados ao Direito e à História; o escopo do Cineclube LGBT (Odeon) já fica evidente em seu próprio nome; o Sala Escura (Cine Arte UFF) dá visibilidade a produções latino-americanas; o Rã Vermelha (Cine Arte UFF) à filmografia de terror além do mainstream; e o Cineclube Laerte (Cine Arte UFF) é outro que leva às telas obras que abordam as questões LGBT.

O que constatamos então é que, até o começo de 2016, não havia em atividade regular nenhum cineclube na cidade do Rio de Janeiro e região metropolitana que exibisse exclusivamente filmes dirigidos por mulheres, apesar da enorme demanda por espaços voltados para o visionamento deste tipo de produto audiovisual e para a discussão da mulher no audiovisual – não apenas como personagem, mas também como criadora.

Tendo isso em vista, fundamos o Quase Catálogo, cineclube sediado desde maio deste ano no Cine Arte UFF, na cidade de Niterói/RJ. Prestando homenagem à pesquisa organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, o Quase Catálogo busca fazer um resgate da história do cinema realizado por mulheres, contribuindo também para o aumento da visibilidade de produções dirigidas por jovens realizadoras do Brasil e do mundo e promovendo, sempre que possível, debates sobre linguagem, mercado e ensino do audiovisual, atravessados pela interseção entre gênero, raça, sexualidade, classe, localização geográfica e outras condições sociais e políticas que influenciam o fazer cinematográfico da mulher no mundo.

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Registro da sessão de “Mãe Só Há Uma”, dirigido por Anna Muylaert, no cineclube Quase Catálogo

A primeira sessão ocorreu em maio de 20165, com a exibição do importantíssimo e pouco visto Os Homens Que Eu Tive (1973, 85min, RJ), de Tereza Trautman, primeira mulher a dirigir um filme na ditadura militar e primeira diretora a dirigir um longa-metragem no Brasil desde os anos 1950. A cineasta esteve presente para uma conversa com o público após a sessão, acompanhada da pesquisadora Ana Maria Veiga. A estreia teve um recepção surpreendente, com um público de 104 pessoas. Nossa segunda sessão, em junho de 2016, foi organizada com o coletivo de mulheres do NECINE-UFF: uma homenagem à Adélia Sampaio, primeira cineasta negra do Brasil e primeira mulher a dirigir um filme de temática lésbica, Amor Maldito (1984, 76min, RJ). Com presença da diretora e debate após a sessão, o público mais uma vez superou nossas expectativas, com 75% dos assentos ocupados. No mês seguinte, foi a vez da pré-estreia de Mãe Só Há Uma (2016, 82min, SP), de Anna Muylaert. Em parceria com o cinema, conseguimos trazer de São Paulo a renomada diretora para a sessão. Os ingressos esgotaram na véspera da exibição, totalizando quase 300 espectadores, muitos dos quais ficaram para o debate com Muylaert e a pesquisadora e crítica de cinema Camila Vieira. Em agosto, mês em que escrevemos este artigo, fizemos nossa quarta exibição, em homenagem ao Mês da Visibilidade Lésbica. O filme escolhido foi Um belo verão (2015), da diretora francesa Catherine Corsini, e mesmo sendo uma sessão paga6, em um horário mais adiantado e sem debate, o público de 78 pessoas selou a consolidação do Quase Catálogo como um espaço de visionamento e discussão do cinema dirigido por mulheres.

Apesar de não se tratar de uma iniciativa pioneira no que tange à discussão de mulheres no cinema e no audiovisual, até onde conseguimos pesquisar é possível que, no Brasil, esse seja o primeiro cineclube regular dedicado exclusivamente à exibição de filmes dirigidos por mulheres, organizado por mulheres do meio audiovisual. Há alguns exemplos de cineclubes de coletivos feministas, sindicatos e iniciativas independentes de profissionais da área que, nos últimos dez anos, propuseram-se a debater a temática da mulher no cinema; porém esses, em geral, tinham como recorte o protagonismo feminino na tela e a discussão de temáticas pertinentes ao “feminino”, abrindo espaço para exibições de filmes dirigidos por homens com personagens femininas protagonistas.

A vontade de visibilizar e discutir filmes de diretoras, entretanto, parece vir de um desejo coletivo de mexer com a ordem do cinema carioca e fluminense. Alguns dias depois, no mesmo mês de estreia do Quase Catálogo, o Facção Feminista Cineclube deu início aos seus trabalhos na Baixada Fluminense. Em julho, seria a vez do Cineclube Delas, sediado no Templo Glauber, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro.

A multiplicação de cineclubes dedicados a filmes dirigidos por mulheres evidencia a demanda por mudanças no mercado audiovisual brasileiro, ainda dominado por homens, e aponta como o circuito cineclubista pode ser um dos braços na promoção dessa transformação, estimulando que jovens estudantes considerem a profissão, que mais pesquisadores e pesquisadoras elejam tais obras e cineastas como tema de estudo, e que governo, sociedade e profissionais do cinema conscientizem-se do quanto ainda temos que avançar na construção da igualdade de gênero.

Notas:
¹ Um exemplo é a VERMELHA, coletivo de diretoras e roteiristas criado em São Paulo, em 2014, que este ano organizou nas cidades de São Paulo e Campinas o ciclo de debates “Quem tem medo das mulheres no audiovisual?”; o Coletivo de Mulheres de Cinema e Audiovisual da Baixada Santista; Coletivo Gaiolas (BA); Coletivo Mulheres Audiovisual de Pernambuco, coletivo ‘Nós, Madalenas’ (SP), entre outros.
² Em novembro de 2014, sob organização da cineasta e profª Karla Holanda, ocorreu o I Colóquio de Cinema de Autoria Feminina, realizado na UFJF, em Juiz de Fora (MG).
³ Mostra Mulheres do Audiovisual Brasileiro, julho/16, em Pelotas (RS); Mostra das Minas, ciclo de debates continuado no Museu da Imagem e do Som de Santos (MISS), desde junho/16; Mostra Cinema e Mulheres, agosto/16.
4 Em julho de 2016, na cidade do Recife (PE), ocorreu a 1ª edição do FINCAR – Festival Internacional de Cinema de Realizadoras.
5 Coincidentemente, no mesmo dia em que foi aberto o ilegítimo processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, levando ao seu afastamento do governo.
6 Por se tratar de um cinema comercial, não podemos exibir os filmes sem autorização dos detentores dos direitos patrimoniais, mesmo que com fins educacionais ou culturais. Tal limitação dificulta muito a manutenção dos cineclubes, que dependem da boa vontade das distribuidoras em ceder suas obras sem custos, o que acarreta em cobranças ocasionais de ingressos (sendo o lucro dividido entre a UFF e a distribuidora).
7 Alguns exemplos são o Cinemulher, fundado em 2009 em São Paulo (SP), e o Feministas de Quinta, fundado em 2015 em Vitória (ES), além de diversas iniciativas de coletivos feministas que buscam debater temas como estupro, maternidade e violência doméstica. Ressaltamos que esta é uma pesquisa ainda por ser feita, e um debruçamento mais aprofundado sobre cineclubes dedicados às mulheres na direção cinematográfica, sobretudo nos anos 1980 e 1990, faz-se necessário para afirmações mais consistentes.
Referências bibliográficas:
CANDIDO, Marcia Rangel et al. A Cara do Cinema Nacional: gênero e cor dos atores, diretores e roteiristas dos filmes brasileiros (2002-2012). Acesso em 5/02/2016.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org.). Quase Catálogo 1 – Realizadoras de cinema no Brasil. Rio de Janeiro: CIEC, 1989.
RASHKIN, Elissa. Women filmmakers in Mexico: the country of which we dream. Austin: University of Texas Press, 2001.
TOLEDO, Teresa. Realizadoras latinoamericanas/Latin American Women Filmmakers: cronología/chronology (1917-1987). Nova Iorque: Círculo de Cultura Cubana, 1987.
Por Érica Sarmet e Marina Tedesco