Nossa sorte, a escolha pela ingestão das borboletas

Em uma advertência na abertura de uma das suas obras mais célebres, Cineastas e imagens do povo, na edição antiga da Editora Brasiliense, Jean-Claude Bernardet afirma: “Para que o povo esteja presente nas telas, não basta que ele exista: é necessário que alguém faça filmes” (Bernardet, 1985, p.6). O texto, que introduz uma obra publicada há mais de trinta anos, aparece com uma referência temporal precisa, dizendo ter sido escrito antes de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Distanciada no tempo, essa frase parece ganhar outros sentidos quando a pensamos considerando o filme A Destruição de Bernardet (2016), de Claudia Priscilla e Pedro Marques. Diante do filme que integrou uma sessão especial do 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, pensamos que, na verdade, a vida para Bernardet, em sentido amplificado, necessita dos filmes e do cinema para que prossiga.

O longa-metragem de Marques e Priscilla foi lançado no ano em que Bernardet completa 80 anos e foi reportado pela imprensa como um dos atores ativos e cotados para o audiovisual brasileiro, atuando em filmes e se preparando para participar de uma minissérie. A obra se desdobra em duas frentes principais: a rememoração do vivido, a reinvenção do tempo presente. Vemos Bernardet assistindo a filmes do cinema brasileiro, alguns em que ele atua. Trata-se de uma época de revisão, mas distanciada de algum lugar nostálgico ou melancólico. O que se pode lembrar é apenas uma potencialização e um convite à descoberta – e vivência – do mundo que permanece refeita diariamente. Vida e morte se encontram rotineiramente e isso não parece ter peso ou importância maior que a rotina de um professor universitário. Em um curto retrospecto da vida de Bernardet como docente da USP, temos contatos de relatos sobre estudantes que, em uma brincadeira ardilosa, diziam que convidar Bernardet para ser ator dos filmes realizados no curso era uma espécie de vingança brincante, na medida em que o professor exigente não era dos melhores atores. Em um determinado momento, uma das docentes colegas de Bernardet diz que não se cansa em se surpreender com o professor, o mesmo que disse com serenidade e tranquilidade ser portador do vírus da AIDS em um dia comum de expediente na universidade. Bernardet depõe sobre o episódio com uma aposta antes na redescoberta de uma liberdade da vida que a assombração da morte. Segundo o pesquisador, saber ser soropositivo fez com que não fosse mais preciso fazer aquilo que não quisesse ou gostasse, porque o tempo curto, em verdade, é maximizado pela ausência da necessidade de satisfações. O depoimento questiona a cruel máquina da vitalidade que o capitalismo sustenta, onerando o indivíduo emocional e socialmente para que permaneça vivo e saudável, em grande parte sustentando a indústria da longevidade. Opinião trabalhada pelo ensaísta no livro A doença, uma experiência, essa postura sublinha a coragem, a vitalidade e a astúcia de Bernardet a não exigir – e esperar – da vida mais que alguma oportunidade em escolher a própria percepção do mundo.

Em Caminhos de Kiarostami, Bernardet argumenta: “a organização e exposição do pensamento não é um fato individual, mas social” (Bernardet, 2004, p.9). Quando pensamos as cenas em que vemos Bernardet ouvindo as próprias gravações de depoimentos registrados em fitas de um aparelho, é curioso o paradoxo que o cinema favorece na divisa do público e do privado. Após décadas vividas, a experiência, a recordação e a reflexão sobre o tempo que já foi e a incerteza sobre o que virá dilui o lugar da individualidade, agora compartilhada na compreensão que há tensões e incertezas universais. Em um determinado momento, Bernardet diz que há, agora, 127 fitas gravadas, que não conseguiria ouvi-las – e imaginamos que também não o desejasse. As memórias e os relatos gravados ali, se não podem mais ser revistos, analisados na vida de Bernardet, podem ser apropriadas, escutadas e revividas pelos outros. Se o cinema se encarrega de concedê-lo vivacidade, em um mecanismo que, segundo Bernardet, beneficia-o mais que os realizadores, oferece um outro mundo, esse não circunscrito ao tempo e ao cotidiano. Após oito décadas vividas, Bernardet permanece inquieto, revolucionário, corroborando o depoimento de sua filha sobre ele: “a história do meu pai é perturbar as pessoas”.

A sorte, os símbolos, as metamorfoses e as crenças parecem acompanhar o cotidiano de Bernardet segundo Priscilla e Marques. Em seu relato, o professor diz que é importante “nunca pertencer totalmente a nada”, que “a narrativa acaba nos prejudicando” e que “a solução é a confusão mental”. Em uma reflexão sobre suicídio junto com um amigo, diz que só conseguiria pensá-lo com uma injeção ou assistido, opções que são acusadas de performáticas pelo colega. Nesse mundo em que é necessário romper com a linearidade, valer-se da arte como o instrumento possível de rompimento da representação, é compreensível vermos, em plongée, Bernardet tirando cartas de tarot, que revelam, por exemplo, um 4 de espadas e um momento de velório. Ou, também, que se lave apenas roupas vermelhas – ou, antes, que a  única água disponível para limpar das próprias roupas seja vermelha. Em um mundo em que a morte pode ser um fantasma, sangra-se um pouco todo dia, sangra-se o ouvido picando tomates, sangra-se no esforço cotidiano para que a vida prossiga, mantenha-se a casa e a roupa limpas, seja possível cozinhar. No entanto, é possível, também, apostar nos símbolos da metamorfose e da liberdade, ingerir borboletas criadas em estufas cientes de que algumas metamorfoses, se não retrocedidas, podem ser ingeridas e digeridas por outras formas possíveis de viver.

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Referências:
Bernardet, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
———- Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
por Laís Ferreira Oliveira