Filmar o outro: entre o consenso e o conflito

O que pode ser uma conversa entre realizador e a pessoa filmada em um documentário?

Em Filme para poeta Cego (Gustavo Vinagre, 2012), após um aviso de uma voz que o filme terá áudio descrição, o diretor aparece conversando com o poeta Glauco Mattoso. Vinagre o pergunta: “O nosso filme é um consenso?”. O escritor responde: “Eu acho que ele é um consenso, mas ele admite certas contrariedades, que é onde entra o conflito. O conflito faz parte da natureza humana, e é do conflito que nasce a trama, o argumento teatral e, por extensão, cinematográfico”. O poeta reitera as condições que estabeleceu para ser filmado, dentre as quais destaca que não faria o papel de si mesmo nas situações em que ele sofresse.

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Filme para poeta Cego (Gustavo Vinagre, 2012)

Esse diálogo nos parece importante para nos aproximarmos do longa-metragem Lembro mais dos Corvos (Gustavo Vinagre, 2018), exibido na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes e, também, do curta La llamada (Gustavo Vinagre, 2014), que também comentaremos brevemente neste texto. Em Lembro mais dos Corvos, os primeiros planos revelam o rosto da protagonista pouco a pouco, observando a princípio seus olhos fechados, sua testa e seus cabelos soltos, depois o momento em que ela abre os olhos e, em seguida, vemos um primeiro plano de todo o seu rosto adormecido. Dessa forma de registro, que se aproximaria da ficção, seguimos para a próxima cena, em que Júlia aparece sentada no sofá, dizendo que continua “com essas insônias”. A câmera começa mais fechada, mostrando o rosto da protagonista, depois, abre-se para mostrar em plano geral o ambiente em que a personagem está. Em seguida, ela pergunta se a equipe já está gravando; tendo resposta positiva, acende a luz, alegando que estava escuro.

Em diversos momentos, Júlia questiona a Vinagre aquilo que ele deseja saber, bem como o que poderia ser interessante ou não para ser registrado em um filme. Ela também parece preocupada em como reagirá o espectador ao assistir aquelas imagens. De forma semelhante, a personagem diz, em alguns momentos, que a maneira pela qual está falando diante de uma câmera é distinta daquela que disse ao diretor antes da realização do filme. Quando Júlia demonstra angústia dizendo que “não está conseguindo entrar no assunto”, ficando silenciosa e acendendo um cigarro, a câmera dá um zoom e se aproxima do seu rosto. Quando a fala parece difícil de acontecer para Júlia, a câmera parte para outros tipos de abordagem e aproximação, que parecem se chocar com o desejo de não dizer da personagem. No filme, a câmera também aponta para certa imprevisibilidade na relação com a protagonista filmada, o que acontece, por exemplo, quando é feito um zoom out para mostrar os braços e os cotovelos dela quando está arrumando os seus cabelos com as mãos. Essas mudanças óticas apontando, o tempo todo, para a distância entre o diretor e a personagem. Como em Filme para poeta Cego, o acordo estabelecido entre diretor e filmado é colocado em questionamento, quando a personagem pergunta para Vinagre se ele tem interesse em humilhá-la, de alguma maneira, com aquelas imagens. Junto ao zoom, essas questões apontam para as diferenças entre diretor e personagem, na medida em que, pela câmera, ele estabelece com a personagem uma relação que não se restringe a ouvir o seu relato, mas dar a ver um possível desconforto daquela mulher com o filme que está sendo produzido. Júlia argumenta, dentre outros tópicos, o interesse recorrente na vida sexual das mulheres trans, que é comumente exotizada, e que talvez pudesse transparecer na obra de Vinagre.

O desconforto do personagem filmado também aparece em La llamada. Nesse curta, Vinagre mostra a história de Lázaro Escarze, vendedor de frutas cubano, com 87 anos, que tem um telefone instalado pela primeira vez e que poderá entrar em contato com o filho. Em um determinado momento, o vendedor simula, com as mãos, estar atendendo um telefone, enquanto Vinagre simula uma conversa em torno do filho do vendedor. Depois desse gesto, o vendedor lhe pergunta irritado e decepcionado: “Por que me fez isso? Por que me fez fazer essa cena?”. O vendedor lhe diz que, embora pense que essa conversa possa ser boa para o filme, o diretor lhe magoou, tendo em vista que ele lhe considerava como filho. Da mesma maneira que os outros filmes que comentamos, parece existir, a todo momento, limites entre a relação com ou sem cinema, que aparece nas dúvidas dos personagens acerca do filme que participam.

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La llamada (Gustavo Vinagre, 2014)

Júlia diz que, na opinião da sua mãe, a vida dela se constitui “em reproduzir filmes”, reviver as cenas das obras que ela gostou. No caso de Lembro mais dos Corvos, a maneira de apontar, a todo momento, que se trata de um filme pela personagem aparece nos questionamentos da forma do longa-metragem. Por outro lado, ao observarmos a movimentação instável da câmera pelo diretor, é interrompido o que poderia ser compreendido como um esforço de naturalizar aquele encontro, não evidenciar que se trata de algo mediado pela câmera. Outro elemento que tenta apontar para o cinema são os instantes em que o longa-metragem deseja evidenciar os elementos performativos daquela cena, o que acontece quando Júlia diz que, caso o chá esteja ruim, é culpa da produção ou questiona a Vinagre o valor do aluguel do quimono. Essas cenas nos conduzem a relacionar com a própria fala de Júlia sem saber ao certo o que ali pode ter sido criado como fala de um roteiro de cinema, na medida em que as únicas imagens que ela nos mostra do seu passado são fotos de infância, na companhia dos seus irmãos. Enquanto Júlia nos conta a sua história, parece importar menos o que seria a verdade, mas sim o que poderia ser verossímil em uma trajetória de vida marcada por opressão, abuso, resistência, invenção e paixão. Quando ela nos conta do Japão, esse período de sua vida nos alcança de maneira extraordinária, tendo em vista que, para uma mulher trans que, devido aos preconceitos, não pôde frequentar o ensino regular e enfrentou dificuldades para conseguir trabalho, o desafio de mudar para um país do outro lado do mundo parecia, a princípio, imenso, tendo em vista o investimento financeiro nessa viagem. Júlia nos conta isso com naturalidade e, embora não saibamos o que de fato aconteceu, é possível que acreditemos que as coisas foram mesmo assim. Nesse caso, destaca-se um plano em que vemos Júlia encarando um espelho, enquanto acompanhamos a sua imagem refletida no momento em que ela nos diz das circunstâncias e do período quando voltou do Japão e conheceu Roberto, um dos seus parceiros que lhe dava hormônios. O filme se coloca como uma maneira de projetar alguma imagem em um lugar outro – um espelho, um cinema -, em que os traços de si ali inscritos constroem uma terceira imagem que é mediada. Quando nos diz do seu desejo de dirigir filmes, Júlia afirma que pensa que poderia colocar nessas obras as histórias de amor incríveis, como aquelas das comédias românticas, que ela não vivenciou. O cinema se torna o meio de projeção dos possíveis.

Em um dos momentos do jogo sado masoquista de Filme para poeta Cego, Glauco Matoso diz a Vinagre “eu acho que você está me enganando o tempo todo. Se duvidar, você nem está sendo chibatado”. Até então, apenas estávamos acompanhando o rosto do poeta, não tendo imagens da tortura. Como espectador, temos como referência a imagem de uma cena anterior, em que Glauco pedia a um dos homens da equipe que chicoteasse as próprias costas e, enquanto esse homem alegava dor, batia com o instrumento de tortura em uma janela, enganando Glauco. No entanto, nessa cena, o poeta pede que aquele que está sendo sodomizado vá lamber os seus dedos do pé, o que lhe garantiria poder sentir o tato da língua do homem e ter, com isso, mais informações sobre o que está acontecendo que não lhe chegariam por meio da visão. Nesse momento, é revelada a imagem do corpo de um homem com os braços atados nas costas com uma corda rosa.

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Filme para poeta Cego (Gustavo Vinagre, 2012)

Nesses filmes, o que existe de conflituoso e de diferentes lugares de poder – entre o comando e a obediência – é trabalhado por meio da ordem do que é cinematográfico. Se em Filme para poeta Cego, a princípio, são expostas as regras do jogo combinado com Glauco Mattoso, a imagem tensiona o cumprimento ou não dessas regras. Nas conversas que mantém com aqueles que filma, Vinagre não deseja diminuir as diferenças entre eles, mas tensionar as distâncias entre si, na figura de realizador, e aquele que é filmado. Colocando como premissa e abordagem inicial o diálogo falado, Vinagre cria distâncias entre si e o outro, por meio, por exemplo, do zoom em Lembro mais dos Corvos e da imagem que Glauco não verá em Filme para poeta Cego. Nos dois casos, há algo, no momento da filmagem, que só o diretor vê e domina, não sendo acessado por aquele com quem ele conversa.

Em Filme para poeta Cego, Glauco Mattoso é creditado “como cego”, “como poeta”, “como podólotra”, “como sadomasoquista”, “como ele mesmo”. De forma semelhante, Gustavo Vinagre é referenciado “como diretor”, “como escravo”, “como fã”, “como roteirista”, “como ele mesmo”.  É como se naquele filme houvesse abertura a mostrar as multiplicidades de si, de forma mediada e variada. A importância dos créditos para o entendimento da circunstância filmada aparece também em Lembro mais dos Corvos. Júlia Katharine é creditada como atriz e dividindo o roteiro com Vinagre. Dessa maneira, parece-nos que não se trata apenas de revelar ou evidenciar a própria vida, mas utilizar o cinema para criar e recriar a própria vida. Em Filme para poeta Cego, Glauco diz: “eu acho que eu sou o que eu tinha que ser mesmo, né? Estou cumprindo, né? O existencialismo sartriano admite isso. Que você se realiza não na essência humana, mas na sua existência (…). O cego, fetichista, sadomasoquista, poeta, se realiza sendo Glauco Mattoso. Existencialmente, do ponto de vista existencial, eu sou perfeito. Completo”. De alguma maneira, Vinagre parece tentar, com suas imagens, alcançar esses personagens de forma existencial; realiza isso, porém, sem diluir os lugares de poder e controle entre si e aqueles a quem escolhe filmar.

por Laís Ferreira Oliveira