Um filme de dança (2014), da cineasta e coreógrafa Carmen Luz, é um filme que discute dança negra documentando artistas de várias gerações e reinventa uma tradição que remonta a Mercedes Batista – primeira bailarina clássica negra no Teatro Municipal do Rio de Janeiro -, e a narrativas diaspóricas pelo Brasil. Nesta breve entrevista, Carmen traz para primeiro plano olhares que atravessam seu trabalho como coreógrafa e cineasta – “construtora de imagens”, como gosta de dizer – tanto no que diz respeito a uma possível condição feminina, quanto a uma relação muito específica entre dança e cinema.
Flavia Meireles: Seria possível pensar em alguma condição de um cinema feminino, ou uma condição feminina de cinema? Você acha que essas coisas têm lugar na sua produção? Como?
Carmen Luz: Eu tenho uma visão muito construída do que é ser ligado ao feminino. Quando eu falo nessas construções, elas são cheias de deformações mesmo, mas é, ao mesmo tempo, muito sincero de que o feminino vem de um lugar de muita atenção com as coisas do mundo. O feminino pra mim é isso. E é uma atenção que passa por um lugar de generosidade incondicional. Então, o feminino tem a ver com cuidado. Passa por um lugar que eu chamo de poético, profundo. E, enquanto seres construídos com essa ideia de mulher, como as mulheres negras, desde sempre, foram condenadas, vamos falar assim, a ter uma perspectiva de luta. Então, o feminino pra mim é esse lugar de prestar atenção: de ver como é que a gente pode trabalhar num processo de reunir, intervir e transformar. As mulheres negras foram condenadas a ter esta perspectiva desde sempre porque estão ali preocupadas umas com as outras.
Atribuo a uma outra construção, a constatação de que há uma energia que não se contrapõe, mas que ela tem um embate com esse feminino, socialmente pensando, que alguns atribuem a uma força masculina e que é uma força muito ligada ao poder de mando no centro, e não o poder como forma de distribuição, mas de um poder como forma de acumulação. Então, a gente está preocupada o tempo inteiro, enquanto essa construção de mulher negra, pensando em como é que a gente mina essa acumulação. Como é que a gente trabalha com uma outra espécie de existência, e não sobrevivência, mas uma outra existência que faça com que as coisas entrem de fato em um equilíbrio? Essa é a minha perspectiva. Então o feminino vem desse lugar. A gente tem que o tempo inteiro pensar: como é que está este mundo aqui? Como é que está a relação com os corpos no mundo, esses objetos, esses artefatos todos, e como é que a gente faz para intervir, já que a gente está sofrendo intervenção o tempo inteiro?
Eu não tenho uma visão romântica do feminino, talvez a minha visão seja uma visão mais de ficção científica. Talvez de começar a construir outras realidades a partir dessa atenção absoluta. Talvez uma coisa ligada a um cuidado, talvez o feminino passe por uma questão de saúde profunda, por isso que eu estou relacionando com essa ideia de intervir, de transformar, mas que não passa pela ideia romântica, mais uma vez, do sacrifício. Neste mundo aqui, parece que tudo está ligado ao sacrifício, mas [o que eu falo] passa por uma compreensão de que os múltiplos diálogos e as múltiplas tensões, elas não podem ser sacrifícios, elas fazem parte dessa relação. Entende? O que eu quero apostar é na relação. Como é que a gente pode, ainda nas tensões, encontrar ar pra criar mais tensões. Porque a gente pensando que vai criar mais tensões, neste espaço entre as tensões existirem e a gente criar mais tensão – nesse espaço – tem um mergulho, tem um arejamento, tem um ar que vem que é aí que acontece alguma coisa e a gente tem que estar muito atento para o que acontece neste espaço. Porque neste espaço estão as relações de amor, as relações onde realmente as coisas podem mudar. E a chave, mesmo sem ser romântica, e essa é a única palavra ainda possível nesse dicionário que a gente tem, mas tem essa chave mesmo do afeto, tem essa chave do amor. Então feminino está ligado a isso, porque você pode fazer um cinema absolutamente cheio de pieguice, cheio de romantismo do século XIX – perverso, portanto -, cheio de tudo que você acha que no senso comum é super romântico, mas baby aquilo é uma visão absolutamente centrada nisso que eu chamo de acumulação de poder, de Capital, que está ligado muito a essa estética ou pensamento que eu estou chamando, também, já construído de masculino e que o feminino tenta curar.
O que me interessou sempre nessa história foi que essas mulheres sempre estiveram ali pra manter o processo da vida em circulação: na maneira de enterrar seus mortos, na maneira de fazer outros cultos, na maneira de pedir licença ou para que os seus vencessem as guerras ou para acabar com a guerra. Sabe-se muito dos pedidos para se ganhar [as guerras], mas existem outras histórias que são pedidos para que simplesmente ninguém ganhe, ou que todos ganhem, que é o estabelecimento real da paz. Então essas mulheres pensavam nisso, nesse estabelecimento da paz. Eu, se eu penso num lugar onde eu me insira numa determinada tradição – mas pensando em usá-la daqui pra frente – é nesse lugar. Isso não tem nada a ver com Poliana isso não tem nada a ver, porque o pensar nesses processos de ritualização da paz, de buscar os caminhos de luta para que a paz se estabeleça – embora ocidentalmente tenha alguns pensamentos que apostam na guerra, na tensão da guerra como algo produtivo – eu acho sempre que a tensão para se estabelecer paz é mais produtiva, ela dá muito mais trabalho, por outro lado, mas tudo que a gente investe muito como pensamento, como ritualização, como relação, é sempre mais produtivo. Então eu acho que eu me insiro muito mais nessa possibilidade de pensamento, de ver como que essa tradição dessas mulheres podem me ajudar a me constituir de mundo, a fazer coisas que a gente possa todo mundo, conversar, se relacionar.
FM – E como é que ficam aí o cinema e a dança?
CL – O meu projeto é fazer um cinema de dança e é essa a grande ficção cientifica, (risos). É importante que aquele corpo que produz aquele pensamento no seu próprio corpo ou que produz o seu próprio pensamento no corpo dos outros, que ele venha e diga. É ele quem diz, não é concessão de dar a voz ao outro e foda-se, eu não dou a voz a ninguém, não me ponha neste lugar. É esta relação entre mim e ele que faz com que ele venha a público dentro deste filme fazer esse tipo de coreografia e coreografar as suas palavras, é esse jogo entre nós que se estabelece num filme de dança. É isso que é o projeto, e é isso que acontece ali.
Na questão racial… aí é mais barra pesada… eu vou mostrar um curtinha muito antigo, uma curadora me chamou pra mostrar um curta que tem 4 minutos, chamado: Um preto. Aí, não a curadora, mas um dos caras do Oi Futuro lá de Ipanema me perguntou: “Poxa, mas você vai fazer sempre filme sobre a questão racial?” Aí eu falei: olha não estou fazendo filme sobre a questão racial, mas dá pra não pensar em raça, no Brasil? Dá pra você não, se você trabalha com os objetos do mundo, a que interessa hoje, não falar em raça, no Brasil? Principalmente para superá-la. Como que a gente não fala dessas questões? Meu objetivo não é falar ou não destas questões, simplesmente essas questões estão aí, agora você está vendo o meu filme racialmente, então é você que está falando de raça. Você está entendendo?
O pensamento racializado, ele existe nessa sociedade. Então eu acho uma covardia ficar perguntando para o diretor, ou para diretora, enfim, para a pessoa que realiza: você vai fazer sempre filmes com pretos e mulheres? Como se fosse uma coisa menor ou problemática e não assumir claramente que, na nossa sociedade, há uma questão clara que é o pensamento racializado.
FM – Eu trago de volta a questão da mulher, justamente pra pensar nesse exercício de como responder a essa interpelação que te diz que não é problema seu, no final das contas, né? E aí, apoiada no que você respondeu pra esse cara , “você vai sempre fazer filme com questão racial?”, a gente poderia pensar: você vai sempre fazer filme sobre mulher? Valeria uma maneira de responder a isso dizendo: mas tem outra possibilidade de não ser atravessado por isso?
CL – Sim. E continua-se achando que as coisas são separadas, que eu vivo num mundo e que você vive em outro, né?
FM – E como não… Eu acho também que a questão é como não parar aí, né? Como você apontou bem no início da nossa conversa, inventar essa tradição.
CL – Sim, se inventar a partir dela.