Sara Gomez. Mulher. Diretora de cinema. Negra. Cubana. Em seus 31 anos de vida (1943 – 1974), Sarita, como era chamada, foi também musicista, jornalista, assistente de direção. Foi múltipla e pioneira. A diretora cubana entrou para a história como a primeira mulher a dirigir um filme em seu país – o documentário de curta-metragem Fabrica de Tabaco, de 1962. Além disso, foi também a primeira mulher a conseguir filmar um longa-metragem de ficção, em 1974. Mais de duas décadas se passariam até que outra cubana, a diretora Rebeca Chávez, conseguisse repetir tal feito.
De Cierta Manera é a única obra ficcional e de longa duração da diretora, que faleceu antes de concluir o filme. Com a ajuda de cineastas amigos de Sara, dentre os quais Tomás Gutierrez Alea, com quem Sara colaborou, e Julio García-Espinosa, o filme foi terminado. A obra narra a história de uma professora que enfrenta dificuldades ao dar aula para alunos marginalizados. Aborda temas caros à cinematografia de Sara: o racismo, o machismo, o olhar para os excluídos, o choque geracional, sempre tendo como cenário uma Cuba em constante transformação. Com um forte diálogo com o documental, a obra é considerada por muitos o grande legado da diretora. Porém, tratando-se de uma cineasta múltipla como Sara, parece impossível reduzi-la a apenas uma obra.
Merece destaque na filmografia da diretora a trilogia composta pelos curtas-metragens documentais En La Otra Isla, Una Isla para Miguel e Isla del Tesoro (1968, 1968 e 1969, respectivamente). As três obras têm como cenário a Ilha de Pinos. A ilha abrigou, entre 1926 e 1967, o “Presidio Modelo”, prisão no formato panóptico¹ que recebeu prisioneiros e revolucionários, dentre os quais Fidel Castro, em uma Cuba pré-socialista. Poucos anos após a revolução cubana (1959), o presídio foi desativado.
Em Isla del Tesoro, que encerra a trilogia de Pinos, Sara Gomez filma a desativação do presídio. A narrativa da obra é intercalada por dois momentos. O primeiro corresponde a uma narração que contextualiza a trajetória histórica da ilha, desde seu passado ligado aos piratas e bucaneros que buscavam tesouros, passando por seu “descobrimento” pelos espanhóis, a ocupação estadunidense, até chegar em sua nova ocupação pelo regime cubano. O segundo momento corresponde às imagens da famosa prisão panóptica, primeiramente em funcionamento e, então, sendo desativada. Na sequência, a câmera passeia pela ilha: mostra seus habitantes trabalhando nos campos; as belas paisagens naturais; até, ao final, voltar a mostrar o presídio já vazio. Torna-se claro que, em Isla del Tesoro, a personagem é a Ilha. Há um certo lirismo na obra, como se Sara tivesse a consciência de que o humano é passageiro. As construções, o trabalho, são apenas pequenos marcos na história da Ilha. Em contraposição, nas outras duas obras que compõem a trilogia, o enfoque da diretora está exatamente nos elementos humanos que habitam a ilha.
Após a revolução cubana, a Ilha de Pinos tornou-se o local onde os jovens eram enviados pelo governo para reabilitar-se socialmente. Por conta disso, a ilha seria rebatizada, nos anos 70, de “Isla de la Juventud”. Em Una Isla para Miguel e La Otra Isla, Sara Gomez toca em temas pouco explorados na cinematografia de seu país. O racismo, a herança do colonialismo espanhol e a desigualdade social histórica eram assuntos tabu em uma Cuba pós-revolucionária, que tratava de aniquilar animosidades históricas por meio de um discurso único, em prol de uma nova Cuba igualitária.
Em La Otra Isla, Sara entrevista diferentes habitantes da Ilha de Pinos. A imagem da diretora aparece na tela em diversos momentos, dando assim o tom da obra: trata-se de uma conversa entre dois cubanos que falam sobre o novo país. Dentre as entrevistas, merece destaque a de Rafael, com quem Sara toca em um tema claramente custoso para o rapaz: o racismo. É com dificuldade que Rafael afirma, em seu trabalho como cantor em Havana, ter sofrido discriminação racial. Sara também entrevista Lazaro. A ele, Sara pede para que reflita sobre os “processos de transformação de consciência” que adquiriu com a revolução. O que se segue é um forte testemunho sobre a necessidade da violência, a morte de pessoas próximas no processo revolucionário, sobre ser visto como um herói. A contraposição entre as perdas e reflexões individuais, somadas ao desejo de uma construção social coletiva de Cuba, aparecem constantemente nos depoimentos.
Já Una Isla para Miguel tem seu foco em adolescentes do sexo masculino, entre 13 e 17 anos, que foram enviados à ilha para “reabilitação”. O filme tem início com retratos destes jovens, acompanhados de uma trilha sonora instrumental. A câmera está sempre próxima de seus personagens, que hora flertam com ela, conscientes do aparato, hora parecem acostumados a ela, a ponto de ignorá-la. A voice over de Sara Gomez contextualiza o espectador, fornecendo-lhe uma explicação acerca da ilha, de sua função social reabilitadora, e de seus “novos moradores”, jovens suspeitos de atos violentos. É a única intervenção sonora direta da diretora, que conclui: “ser hombre, ser macho y ser amigo. En la isla, conocerán la ética del trabajo”.² Somam-se às imagens o longo depoimento de um oficial e, assim, o espectador compreende a rotina e a hierarquia na ilha. A fala do oficial dá lugar então à filmagem de uma corte e o julgamento de um jovem de 14 anos.
Na sequência, Sara Gomez dá voz, por meio de uma entrevista, ao menino julgado na cena anterior. Entendemos: trata-se de Miguel, o jovem que dá título ao filme. Ele explica o que sucedeu. Após isto, um oficial depõe sobre Miguel: um jovem “inteligente y sensible”. Então, os familiares de Miguel explicam sua situação e como foi parar na ilha. De forma geral, há um consenso acerca de Miguel ter personalidade forte, desobediente de sua mãe, e todos estão “contentes por ele estar na ilha”. As imagens da família de Miguel dão um novo contexto à figura do “jovem delinquente”. Uma família com 15 filhos, na qual Miguel é apenas mais um deles. Uma família bastante pobre. Há um corte seco para uma marcha militar na ilha. Ouvimos depoimento de outro adolescente que vive lá. O filme encerra-se com curtos depoimentos e imagens dos jovens que ali vivem e uma claquete sendo batida no início de cada plano.
O filme de Sara termina. Nenhuma crítica é feita de maneira escancarada. Mas termina-se a obra com o sentimento de que, no silêncio dos planos e nas escolhas dos cortes, existe uma cineasta com voz crítica. É na sutileza que Sara parece ter escolhido operar.
Sara Gomez foi a primeira mulher diretora a receber apoio do ICAIC – Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematográfica³, órgão governamental responsável pelo financiamento de filmes no país, criado após a Revolução Cubana. Nos anos 60, considerados os “anos de ouro” do ICAIC, diretores como Santiago Alvares, Tomás Gutierrez Alea, Julio Garcia Espinosa, Huberto Solás e Manuel Octavio Gomes receberam apoio do Instituto. Ao apresentar sua trilogia da Ilha de Pinos, Sara Gomez recebeu críticas do Instituto por seu recorte. Temáticas julgadas demasiado polêmicas foram, então, retiradas das obras pela diretora. O ICAIC, embora não exercesse uma censura direta, tinha restrições que davam conta de evitar críticas ao regime.
Apesar das restrições, nas obras de Sara, seu apoio ao governo revolucionário vem sempre acompanhado de uma constante reflexão sobre o mesmo. O diálogo entre o indivíduo e a massa; entre as perspectivas individuais e as necessidades comunitárias; a reflexão acerca da herança colonial versus o desejo de igualdade permeiam a obra de Sara. Assim, a relação entre a revolução e o campo do indivíduo é bastante cara à diretora. Em entrevista à dramaturga francesa Marguerite Duras4, Sara Gomez afirma que:
Yo diría que aquí, en el terreno del individuo no pasó nada, sino que todo “está pasando”, y está pasando por una larga y dolorosa disolvencia. (…) Confío más que nada en alguno de esos jóvenes conflictivos que hay en cada aula, en cada fabrica, ese que hace la pregunta que nadie había hecho, exige una respuesta y pone a pensar a los demás5.
A dissolvência do indivíduo em prol da revolução e dos valores comunitários é, portanto, custosa e conflituosa. Os jovens capazes de criar questionamentos são aqueles que levarão o regime para o futuro. Porém, são também os mesmos jovens que foram tidos como “problemáticos” e que foram enviados para reabilitação na Ilha de Pinos pelo governo. Há uma pluralidade de vozes e olhares que, mesmo questionadas pelos pró-revolucionários, ocupam o centro do discurso de Sara Gomez.
Há, nessa dualidade indivíduo x dissolvência, o que há de mais valioso na obra da diretora: o olhar para a periferia e para as pluralidades individuais que se fazem resistir na nova Cuba pós-revolucionária. Figuras duais, que carregam em si as desigualdades de um país colônia e o desejo de questionamento capaz de manter viva a revolução. Uma obra que não deixa de olhar para seus objetos como parte do regime revolucionário, ao mesmo passo de não aceita a total dissolvência individual. É, aliás, ao captar o objeto humano que a câmera se interessa e se faz viva. Capta olhares, está sempre próxima aos corpos, pronta para olhar a fundo cada indivíduo.
Por explorar uma Cuba periférica, Sara Gomez não atingiu o sucesso no exterior como seus conterrâneos. Sara foi mulher, negra, morreu precocemente em decorrência de uma crise de asma, aos 31 anos. Olhou para a periferia, objeto menos atrativo tanto para o ICAIC, quanto para o mercado cinematográfico estrangeiro. Seu cinema, por falar sobre aqueles que não ocupam o centro, por anos, foi deixado à margem.