“E o cinema, vejo muito bem porque o adotei: para que ele me adotasse de volta. Para que ele me ensinasse a perceber, incansavelmente pelo olhar, a que distância de mim começa o outro”. Serge Daney
“Perto de muita água, tudo é feliz”. Guimarães Rosa
Em uma das sequências mais bonitas de Homem-peixe (2016), de Clarisse Alverenga, a família de Juscelino, após recebê-lo de sua viagem de descobrimento do mar, assiste atenta a televisão. Aqui, porém, não vemos o aparelho: a câmera se coloca na mesma posição do objeto e, enquanto os vemos frontalmente em plano geral, uma foto-pintura de família permanece ao fundo do ambiente, em uma prateleira. Em seguida, há um plano mais fechado que se aproxima do quadro em foto-pintura. Como um convite a outro tempo, o cinema agora constrói uma pintura nova dos homens, desenha-os de outra maneira: possibilita àquela família recriar e imaginar a própria vida. Fabular, como fazem os artistas da foto-pintura, a partir da imagem o que não seria de apreensão imediata do real.
Homem simples que habitou a zona rural, Juscelino não conhecia o mar. E é convidado a ir conhecê-lo na Bahia. Como mãos e pés habituados à terra, ao tempo das raízes, a esperar o período necessário à germinação, podem aprender a nadar? Ou entender que, na beira do mar, as oscilações são rápidas, que as marés derrubam os homens? A todas as dúvidas, há uma resposta: pela possibilidade do olhar, de apreender em si a beleza do mundo. A chegada de Juscelino à costa do mar é também o que o cinema pode oferecer à descoberta – e a persistência – da maravilha: os planos cuidadosos e lentos convidam a ver, a percorrer viagens por um mundo novo. Olhar é renascer: observar os barcos na maré baixa e a forma como a luz reflete quando se acumula a água é encontrar novos espelhos. Ver como é possível ao corpo nadar, fazer parte da água, permanecer quieto e silencioso quando a luz do sol se abaixa é torna-se parte dali. O homem encantando com o mundo pode mesmo esquecer dos limites, da matéria e dos nomes. Pode, como conta Juscelino, ir nadar, esquecer que a água é salgada e, com a boca aberta, ser surpreendido por uma “marezona”, como inventa o delicado adjetivo do protagonista.
O cinema olha com calma e respeito a vida dos outros. Há uma pequena luz acesa à noite na estrada, as mulheres rezam em uma casa pequena e simples, é preciso tomar tempo e atenção em cada objeto que está ali. Olhar com cuidado uma bíblia, colocar-se em um enquadramento em que a cozinha esteja ao fundo, distante, e outra pessoa de costas. O universo e a simplicidade daquelas pessoas no interior de Minas não são apropriáveis: não é possível ao cinema chegar com pressa, invadir moradias, pensar que não precisa ser convidado para entrar na cozinha. Juscelino traz do mar uma garrafa pet para mostrar à mãe e aos entes que o mar existe e uma muda de coco para que haja frutos e água para matar a sede. Com afeto, ele planta e batiza a planta com a água do mar, mesma água que a mãe bebe e se surpreende com o gosto. E, na sua matéria, o cinema traz da viagem ao mar a lembrança que, distante da costa, é possível aprender a nadar a braçadas, tornar-se peixe, mergulhar nas delicadezas do mundo.
Interessante.