Quando pensamos em cinema de catástrofe lembramos logo de filmes sobre terremotos, tsunamis e outra formas de fins súbitos de toda a vida na terra. Essa é, sem dúvida, uma maneira de se representar uma catástrofe. E se estivermos vivendo uma catástrofe que não se apresenta assim tão diretamente, tão explicitamente, como representá-la? Para Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, em Há mundo por vir?, a catástrofe já está dada. Todas as medições e dados apontam para a irreversibilidade dos danos causados pelos breves milênios de existência da espécie humana. A proeza do progresso, que se acentuou nos últimos séculos de forma assustadora, fez com que, como espécie, atingíssemos um nível de modificação do ambiente que se tornou irreversível e que deixará marcas suficientemente duradouras para figurar na escala do tempo geológico, dos milhões e dos bilhões de anos: muito pouco humana. Os autores chamam esta era de Atropoceno. Ela se inaugura com um anúncio: como um tempo dos fins. Não só anuncia a possibilidade do fim da raça humana, com o fim de toda a vida na terra. Assim, o Antropoceno:
(…) designa um novo ‘tempo’, ou antes, um novo tempo do tempo – um novo conceito e uma nova experiência de historicidade -, no qual a diferença de magnitude entre a escala da história humana e as escalas cronológicas da biologia e da geofísica diminui dramaticamente, senão mesmo tendeu a se inverter: o ambiente muda mais depressa que a sociedade, e o futuro próximo se torna, com isso, não só cada vez mais imprevisível, como, talvez, cada vez mais impossível” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 107).
Ora, como representar, então, essa catástrofe que não se dá como um evento único e imediato, mas se estende por um tempo que somos incapazes de perceber e que ao mesmo tempo se apresenta como irreversível? O que um cineasta como Béla Tarr, com seu pessimismo beirando o niilismo, seus filmes lentos e soturnos, com a sua estética de um sonho perdido, poderia nos dizer sobre esse nosso tempo? Ou ainda, existiria alguma potência oculta por debaixo desses planos; algo que vá além de um mero diagnóstico de uma era catastrófica? Nos parece que o cinema de Tarr tem, embora não por vias diretas, uma íntima relação com a catástrofe que hoje se descortina. O seu cinema é um jogo entre a brutalidade do real e os horizontes utópicos. Parece estar sempre jogando, não só com a realidade material de seus personagens, mas também com suas utopias, com suas possibilidades de sonhar e de criar alternativas. Por essas tensões e embates se apresenta, para quem está disposto a ouvir, ou sentir, algo que antes não nos era sensível, ou visível. E talvez seja aí que resida o caráter verdadeiramente político de sua obra.
O Cavalo de Turim (A torinói ló, Béla Tarr e Ágnes Hranitzky, 2011) começa com a tela completamente escura, quando uma voz seca e gutural rompe o silêncio. Ela narra uma anedota sobre a estadia de Nietzsche em Turim. Ao andar pelas vielas da cidade, o filósofo se depara com uma cena cotidiana e violenta: um cocheiro, insatisfeito com seu cavalo, açoita o seu animal. Nietzsche, tomado de uma fúria abrupta, afasta o homem e se lança, em prantos, ao consolo do cavalo. Um vizinho leva o filósofo até a sua casa onde permanece deitado por dois dias. Essa teria sido sua crise derradeira, que o deixaria demente até sua morte dez anos depois. Suas últimas palavras: “Mutter, ich bin dumm” – mãe, eu sou um tolo. A narração se encerra com a frase: “E do cavalo nada sabemos…”. De súbito um corte, e um cavalo aparece em primeiro plano. A música de Myhali Vig aparece abrupta como o corte, pesada como o andar do cavalo que se esforça em prosseguir contra o vento. Um cocheiro segue na carroça incentivando o animal a continuar. A câmera parece plainar ao redor das personagens, contrastando com os seus corpos que se esforçam, quase cedendo, para superar as intempéries da natureza. O plano segue por alguns minutos com a câmera bailando pelo percurso do cocheiro e do cavalo, enquanto a música é tomada pelo vento e pelos sons do esforço do cavalo.
Essa sequência inicial de O Cavalo de Turim funciona como síntese de um longo processo do estilo de Béla Tarr. Estilo que se inicia com a câmera na mão, ligeira e próxima das personagens, incisiva como a de um documentário (com o estilo próximo a de alguns filmes de John Cassavetes) até o formalismo robusto e soturno com movimentos de câmera rigorosos e o preto e branco contrastado. Nesse percurso, vê-se o afastamento da figura humana, do close e a prevalência da paisagem, do plano geral; a clausura e os espaços cerrados dão lugar aos grandes vazios. A montagem ágil, os diálogos improvisados e a verborragia das discussões familiares dão lugar a planos cada vez mais longos, com movimentos rígidos e coordenados, e aos diálogos curtos, ou à quase ausência de diálogo. De uma perspectiva estilística, portanto, poderíamos dividir, assim como Jacques Rancière, a obra de Tarr em duas: o peŕiodo de juventude, que vai de seu primeiro filme, Ninho de Família (Családi tüzfészek, Béla Tarr, 1979), até Almanaque da queda (Öszi almanach, Béla Tarr, 1984), e o período maduro, de Danação (Kárhozat, Béla Tarr, 1988) até, seu autoproclamado último filme, O Cavalo de Turim.
Mas não nos enganemos. Embora as diferenças sejam presentes, não há uma cisão entre os dois períodos. Rancière, acertadamente, percebe na fala de uma personagem um ponto comum em todos os seus filmes: “o nosso tempo passou” (RANCIÈRE, p. 8). Essa é a fala de melancólica dona de casa de Pessoas prefabricadas (Panelkapcsolat, Béla Tarr, 1982), seu terceiro filme, que narra o cotidiano de uma família operária na Hungria socialista. A protagonista lembra, durante uma sessão de cabeleireiro, como se entregava por horas e horas à dança, aos bares, ao twist. E como esse tempo passou. A melancolia faz parte do elemento fundamental de seus filmes, de sua tessitura. Desde seus primeiros trabalhos há um tensionamento entre temporalidades: entre um certo “tempo social”, oficial, das burocracias estatais; e o tempo como é vivido individualmente. Em Pessoas prefabricadas, por exemplo: “O comportamento da narração indica de imediato o afastamento entre a planificação oficial – da produção e dos comportamentos – e a realidade do tempo vivido – das expectativas, das aspirações e desilusões dos homens e mulheres da nova geração” (RANCIÈRE., p. 9). O extemporâneo, o que não se submete a uma determinada temporalidade, será uma das mais potentes características do cinema de Béla Tarr, fazendo a função de motor de seu estilo.
Assim, do primeiro ao último filme, vemos esse embate se descortinar. O que muda é a maneira como ele é apresentado, suas premissas e conclusões. No espaço claustrofóbico da casa pequena demais de Ninho de família, Laci e Irén se debatem contra o sistema de serviços sociais em busca de um apartamento. As esperanças são esmagadas pela ineficiência burocrática e econômica. Há um “motivo” para o desejo: escapar da pressão familiar e alcançar a liberdade, a autonomia; e um motivo para a sua falha: a deficiência do governo húngaro. Em O Cavalo de Turim, Tarr nos mostra pai e filha se preparando para deixar sua casa com as poucas posses e um cavalo. Vão pela vasta planície batalhando contra o vento sem dizer palavra e retornam da mesma maneira. É mostrado a mesma insuficiência para alcançar o que se almeja. A diferença é que no último filme não há nenhuma explicação ou sentido.
Poderíamos dizer que há duas perspectivas paralelas: uma lúdica onde habitam os sonhos e as esperanças, e outra mais bruta, onde elas já aparecem como irrealizáveis. E, entre essas duas perspectivas, há sempre uma resistência que passa pelos corpos das personagens e se dá pelo movimento. Mesmo que ele se apresente como sem sentido algum, mesmo que seja apenas uma caminhada de volta ao ponto de partida, os personagens de Tarr insistem em se mover. Os sujeitos, portanto, habitam esse círculo fechado, quase beckettiano, de movimentos inúteis, de deslocamentos a lugar algum: “Do primeiro ao último filme, é sempre a história de uma promessa falhada, de uma viagem com regresso ao ponto de partida” (RANCIÈRE, p. 11). Essa tensão parece ilustrar uma interessante inversão daquilo que Reinhart Koselleck diz definir a modernidade, e que, como veremos, nos diz muito sobre o uso da temporalidade no cinema de Béla Tarr.
Koselleck propõe o uso de dois conceitos para se pensar o tempo histórico: a experiência e a expectativa. Em termos de categorias históricas, eles equivaleriam, respectivamente, à categoria de espaço e de tempo, sendo, portanto, indissociáveis. Elas seriam categorias meta-históricas pois todas as outras categorias dependeriam desse binômio para serem pensadas: “Assim, nossas duas categorias indicam a condição humana universal; ou, se assim o quisermos, remetem a um dado antropológico prévio, sem o qual a história não seria possível, ou não poderia sequer ser imaginada” (KOSELLECK, p. 308). A experiência remete ao espaço, pois é o passado que se re-atualiza constantemente e perdura através da tradição fundando o terreno em que as expectativas podem se projetar:
Por sua vez, a expectativa diz respeito ao tempo, pois é ela quem projeta a experiência em um futuro, ela que determina as possibilidades, o horizonte dos possíveis:
Assim, experiência e expectativa entrelaçam passado e futuro e determinam as possibilidades do tempo histórico. Cada época estrutura seu paradigma a partir da relação entre essas duas categorias. A era da tradição é aquela em que esta interação é tal que o círculo se fecha e a expectativa possível é inteiramente sustentada pela experiência: as mudanças, quando ocorrem, se desenvolvem de forma gradual, pois o horizonte de expectativa que se abre com ela é logo reabsorvido pela experiência; a mudança é insuficiente para modificar, por um rompante, a vida cotidiana.
Koselleck defende que o que caracteriza e distingue a era moderna (que ainda seria a nossa) da era da tradição é o rompimento deste ciclo experiência-expectativa: “só se pode conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então” (KOSELLECK, p. 314). Esse descolamento, o progressivo aumento da expectativa em relação à experiência, é o que hoje chamamos de progresso. Como a experiência já não corresponde à expectativa, não é mais dela que se parte para determinar os comportamentos: é a aceleração que entra em jogo. E esta aceleração, o progresso, exige que a experiência se projete na expectativa, ou seja, é preciso fundar novas formas de agir que apontam para o futuro que, como tal, é aberto e incerto.
Ora, aqui precisamos lembrar que, na obra de Tarr, “nosso tempo passou”. É sempre uma história de promessas falhadas que é contada. Portanto, não só a experiência já não sustenta a expectativa, como o próprio horizonte da expectativa parece se desvanecer em uma nuvem de incertezas. O novo, o progresso, não abre nenhuma via de esperança, nenhuma via de possíveis: ele já aparece como uma promessa não realizável. A estagnação do desejo, a perda da utopia, o movimento que se estende sem projeção, como pura resistência à estagnação. Uma poética do sonho sem objeto. É deste ponto de vista que Tarr nos parece absolutamente antimoderno. É em seu projeto antimodernista que se expressa seu caráter resistente, que se opõe a um progresso bruto e a uma temporalidade cada vez mais acelerada que, em certo sentido, é a própria catástrofe.
Entretanto, como dizíamos, seu cinema é uma correlação de forças. A experiência nunca deixa de estar presente em seus planos. O contraponto a esta estética do sonho é a busca pelo realismo. Há um esforço em retratar uma certa secura, uma brutalidade tanto dos personagens quanto da paisagem que os ronda. A fotografia em preto e branco e bastante contrastada pode ser uma tentativa de expressar uma dureza que se enxerga nas situações que envolvem suas histórias. É por esta via que Tarr explora o que está além das histórias, ou por trás delas. O recurso a não atores, a recorrência a pessoas que tiveram de fato alguma vivência com aquilo que se quer representar, pode ser uma maneira de trazer à tona um passado já cristalizado nos corpos, nos olhares. Daí a importância que o diretor dá à fisionomia e à paisagem:
É preciso recorrer a atores que o não são, pessoas a quem esta história poderia ter acontecido, mesmo que o não tenha, homens e mulheres chamados não a representar essas situações mas a vivê-las, a encarnar, pois, expectativas, lassidões, desilusões, onde é a sua própria experiência, a experiência de uns indivíduos socialistas quaisquer, que se exprime; e é preciso que o façam não dentro dos parâmetros expressivos convencionais mas na relação entre palavras, entre tempos, espaços, refrãos, entre gestos e entre objetos” (RANCIÈRE, p. 17).
A lentidão dos planos, a estagnação e o vagar sem rumo estabelecem uma temporalidade que contesta aquela do novo, do progresso, das promessas. Faz vir à tona uma outra temporalidade, que diz respeito a uma outra experiência. E a maneira que o diretor encontra para realizar esta tarefa é deixar que cada situação tome sua própria duração. É não se deixar iludir pelas soluções fáceis da via narrativa mimética, onde cada acontecimento tem seu correspondente espelhado em uma sequência de planos. Parece que Tarr compõe um jogo de forças cujo objetivo é tornar sensível algo que não se daria de outra maneira, que só consegue se expressar por um entrelaçamento, um tensionamento:
É este entrelaçamento que faz com que a realidade de uma situação seja a realidade do tempo vivido dos indivíduos. Começa-se por fazer dele o painel de um díptico (realidade, de um lado, promessa, do outro), mas em breve será considerado só por si; e é, precisamente, este entrelaçar de relações que, cada vez mais, mobilizará o cinema; é a sua valorização que irá requerer a exploração cada vez mais intensa dos seus recursos, da sua capacidade para dar a cada palavra o espaço da sua ressonância, a cada tensão o tempo de seu desenvolvimento. A história exige que se retenham de todas as situações os elementos que podem inserir-se num esquema de causas e efeitos (RANCIÈRE, p. 17).
É por meio de tensões, portanto, que Tarr compõe seus filmes e faz um fundo vir à tona. Através de um jogo entre o real e o lúdico, a esperança e a desesperança, o estagnado e o móvel, o social e o cósmico. Assim, as coisas em seu cinema dificilmente são dadas diretamente. Não por um virtuosismo, mas por necessidade, como se estas questões não pudessem se apresentar de outra maneira. Não é pelos opostos que ele busca combater: a desesperança com a esperança, a falta de sentido com o sentido. Reafirmar valores seria apenas colocar novas promessas para que sejam novamente falhadas. O que ele parece propor é buscar o avesso, a potência que se esconde por trás destes afetos. Habitar a desesperança e a falta de sentido:
Porque, para Béla Tarr, o problema não está em transmitir uma mensagem do fim das ilusões e, eventualmente, do fim do mundo. Nem sequer em produzir “imagens belas”. A beleza das imagens nunca é um fim. É apenas a recompensa de uma fidelidade à verdade que se quer exprimir e aos meios de que dispomos para isso” (RANCIÈRE, p. 12).
Assim, se concluirmos, como Racière, que “o cinema é uma arte do sensível e não só do visível” (RANCIÈRE, p. 12), poderíamos dizer que sua tarefa é tornar um determinado campo de forças sensível. Talvez sua tarefa seja a mesma que Gilles Deleuze coloca para o pintor e o músico: “Em arte, tanto em pintura quanto em música, não se trata de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças (…) A tarefa da pintura é definida como a tentativa de tornar visíveis forças que não são visíveis” (DELEUZE, 2007, p. 62). Nos apoderando deste movimento deleuziano, arriscaríamos dizer que a tarefa do cinema de Béla Tarr é tornar sensível forças que não são sensíveis.
O que gostaríamos de propor é que, em Tarr, não se trata de representar, mas de trazer à tona algo de submerso. De se fazer ver, ou tornar sensível, algo que não se dá diretamente pela representação, pela mimese, pelo encadeamento de eventos que dizem respeito a uma situação qualquer. Ao mostrar os encontros, os desdobramentos das relações humanas em confrontos com as paisagens, imersos no tempo, ele nos revela algo além da representação e que não poderia ser dado de outra maneira: ele nos torna sensível a catástrofe.
Então, o que fazer depois da catástrofe? Como habitar esse tempo do depois? Como resistir ou (existir) a esse aniquilamento do tempo e à inversão das utopias em apocalipses? Certamente não é uma resposta fácil e este parece ser o caminho que Tarr procura traçar: não se deixar entregar pelas soluções grosseiramente simples, pelas fórmulas já prontas, mas, sim, conseguir manter em suspenso a dúvida, o indefinido, a expectativa. Se ater mais ao tempo do vivido, do sensível, do que àquele do encadeamento histórico, do progresso. Deixar que a catástrofe ecoe, em seus planos, com toda sua desesperança e força destruidora, sem explicações que a amenize. Em um tempo tão avesso à utopias, onde o futuro se apresenta como um abismo inescapável onde qualquer esforço apenas apressaria sua chegada, recair no tempo da própria espera talvez seja uma forma de abrir novos horizontes de possíveis.