No início de Anoitecer (Nightfall, 2016), de Anocha Suwichakornpong, vemos uma mulher que encosta a superfície de sua mãos sobre um espelho. Passamos a ver a imagem de um corpo e a imagem de um reflexo: estão ambas enquadradas dentro de uma tela de cinema. Esse lugar do cinema como instrumento de guardar reflexos – e ser, em si, um meio que reflete uma imagem – aparece também em outros filmes da diretora tailandesa, como em Espelho Negro (Black Mirror, 2008) e Dao khanong (2016). No caso de Anoitecer, parece-nos que esse encontro com o espelho – e, arriscamos a dizer, com o cinema – é o de uma mulher que se vê e se reconhece em diferentes momentos da história e do ambiente político. Logo em seguida, escutamos e lemos um discurso de excelência do primeiro ministro do país, proferido em 1973. O discurso aborda o desenvolvimento e o progresso de um povo; o filme parece nos mostrar que isso acontece enquanto há o cotidiano das pessoas comuns.
Em um plano seguinte, vemos duas mulheres que, da forma que são enquadradas a princípio, de perfil, parecem se assemelharem, terem um rosto quase igual. Em um plano posterior, agora as enxergarmos de outro ângulo: não têm o mesmo rosto, apenas se parecem. Aqui também parece ser sugerida uma outra forma de entendermos o lugar de uma imagem que se espelha: a princípio, talvez não haja diferenças com aquilo que representa; observando de perto, porém, notamos singularidades de cada um dos elementos vistos. Uma mulher sai para caminhar em um parque, logo em seguida uma cartela nos elucida que o reino da Tailândia foi o único da Ásia que não foi transformado em uma colônia pelo oeste. É estranho pensar, porém, qual é a imagem disso: de repente, assistimos um plano de teleféricos que passeiam pelo fio de aço. É frágil o lugar do progresso, da modernidade e do transporte: logo depois, vemos uma mulher que vai para um karaokê, ela se entristece e há muitas outras pessoas saindo do metrô. Na criação das grandes narrativas nacionais, a vida de pessoas quaisquer é qualquer evento, algo não narrado nos discursos, mas vistos nas ruas.
Olhar para a vida ordinária é algo também realizado em Almoço (Lunch, 2010). De uma saída da escola, vemos dois jovens, um garoto e uma garota, com uniformes. Se os vemos com um elemento que os uniformiza, tende a um certo padrão na forma que são vistos, o que conversam na hora do almoço passa a ser o que os personalizam e é referente à individualidade de cada um. Enquanto comem, a garota questiona o rapaz se ele realmente tem desejo de assistir a obra, uma vez que se trata de “um filme para adolescente”. O lugar da juventude, da adolescência, parece ser o dos sentidos mais complexos: não são encontradas referências em muitos lugares, tampouco são fáceis. O garoto faz outra proposta: a de “matar” aula, porque lá não aprenderia nada mesmo. De qualquer maneira, há coisas – e decisões – mais urgentes a serem feitas: comem, não pagam e saem correndo, pela rua. E o que era uma fuga de um pagamento não feito se torna uma corrida divertida e entusiasmada, entre os tantos anônimos que caminham pela cidade. Esses personagens acabam mudando o originalmente programado e vão para um parque. Nesse espaço, o contato com a natureza é, também, o momento em que há um pensamento sobre o futuro, reflexões sobre a própria existência. A forma como os elementos naturais são provocadores desse tipo de análise é presente em outros filmes de Anocha Suwichakornpong, como em Estrangeiro (2012) e Dao khanong. Enquanto estão deitados no chão, olhando para as folhas das árvores, esses garotos começam a pensar sobre o futuro. Há uma percepção distinta entre eles: a garota vê que será uma fotógrafa famosa e casará; o menino apenas vê o escuro dos olhos fechados. Enquanto não se resolve o futuro, o garoto canta uma canção de um tempo distante em que as esperanças são frágeis: o patrão diz que amanhã o salário talvez aumente, enquanto há um homem viciado em xarope. Os jogos da sorte, do acaso, parecem unir a fragilidade, a urgência e o imprevisto em somente um lance de mãos: os garotos jogam uma sequência de pedra, papel e tesoura. Dependendo do resultado, eles se casarão. No entanto, não vemos o resultado final, só um plano geral do parque, em que há apenas o movimento das folhas. O futuro talvez seja simples, talvez seja complicado, mas é, sempre, misterioso.
Almoço (Anocha Suwichakornpong, 2010)
Em Como. Amor. Verdadeiro (Like. Real. Love, 2008), há outras formas de invocar a imagem do cinema e as maneiras com as quais ela se relaciona com a realidade. Em seu início, vemos pessoas saindo do cinema, a imagem dos créditos, sem saber, ao certo, qual filme que veremos: o que foi visto por aqueles que estavam ali ou aquele possível quando se saí do cinema. Desse lugar da dúvida, também são construídos nossos questionamentos sobre a realidade: uma mulher encontra o espirito da mãe falecida no meio do parque. A progenitora tem a mesma aparência de antes de morrer: aparenta ter a mesma idade da filha. Enquanto as duas conversam, a filha pergunta do pai, de um dinheiro perdido. A mãe responde que “a vida é mais fácil quando se está morto” e que o dinheiro perdido vai para o mesmo lugar não conhecido das gotas de chuva que caem. Quando se despedem e a filha pergunta se a verá novamente, a resposta é um cochicho no ouvido, o qual não ouvimos. Nas relações entre a vida e a morte, sob uma lógica que acredita no retorno e na evolução após a morte, parece existir algo que não podemos ver, escutar ou representar.
Torna-se delicado pensar o que pode ser lógico ou real. Na saída de um cinema, um homem e uma mulher se encontram. Dali, começam a estabelecer uma conversa pouco comum – como, talvez, seja mesmo o evento raro de encontrar alguém desconhecido por acaso e falar de forma íntima. A mulher pergunta ao rapaz: “você é um idealista?”. Ele a responde: “eu sou um filmmaker”. O lugar do cinema como próximo aos que sonham, o trabalho que possibilita outra relação com a realidade, também pode ser encontrado de formas sutis em outros filmes da diretora tailandesa, com em História Mundana(2009), em que um dos protagonistas fala de um desejo de ter sido diretor de cinema, depois de ter desejado ser escritor e tem a vontade interrompida por um acidente. Ao ser questionada de volta, a mulher afirma: “eu quero ser otimista”. Talvez, possamos pensar que, se o cinema tentar ver e imaginar o mundo de outras formas, não o faz por otimismo: idealizar nem sempre consiste em uma visão positiva do que existe, mas o reconhecimento que são necessárias outras maneiras de ver. Nesse diálogo, ouvimos indagações pouco comuns a uma conversa de pessoas que se conhecem há pouco tempo, como qual fruta eles seriam. Difícil dizer o que dessa cena – ou da vida – não se configura como uma história imaginada. Ouvimos nessa conversa: “por todo o tempo que estivemos conversando, ninguém entrou ou saiu. Então, quando estivermos saindo, estará acabando. Onde vamos?”. De alguma maneira, não é essa também uma relação que podemos estabelecer com o cinema? Dentro de uma sala de exibição, enquanto ninguém entra ou ninguém sai, há aquele universo possível e disponível. Encerrado o filme, já não é possível discernir o que levamos ou o que fica ali. Encerrada a conversa desse homem e dessa mulher, ouvimos o som de sirenes, de despertadores, de uma ambulância e um sinal de trânsito. Longe dali, a vida prossegue, com urgências e ordens próprias.
Como. Amor. Verdadeiro (Anocha Suwichakornpong, 2008)
Nesse sentido, vemos trabalhadores saindo da fábrica. Enquanto isso, outras pessoas tomam a imagem daquilo que está acontecendo. Em um um determinado momento, uma mulher olha para câmera e comenta-se se isso, de alguma maneira, afetaria o filme que está sendo feito. Uma mulher que olha para a câmera parece ser responsável por alguma mudança, uma interrupção na vida que se segue. Se, aqui, prestarmos atenção ao título desse filme, “Like. Real. Love”, são curiosas as interpretações. No sentido de ser “como”, semelhante, temos a morte como semelhante à vida, no espírito que volta. Podemos suspeitar, também, no que vemos no cinema como o que vemos na vida comum – no encontro de um casal ou na saída de uma fábrica. Se pensarmos na realidade e no cotidiano da Tailândia, seria também possível, para um país em que as crenças hinduístas e budistas exercem forte influência, um retorno e evolução dos espíritos. Também são reais os acasos e as pessoas que podem olhar para uma câmera quando filmadas. Se pensamos em uma frase inteira, agora sem lermos os pontos, analisamos “Como amor verdadeiro” para dizer dessa complexidade e variância do amor: estar ali, interrompendo o que seria a ordem da vida comum, seja na mulher que vai até o parque, numa saída de sessão de cinema ou ao fim do expediente. O amor verdadeiro parece estar ali, entre o real e o imaginado.
Como. Amor. Verdadeiro (Anocha Suwichakornpong, 2008)
Podemos pensar que um filme – como as pessoas, como os dias – está sempre prestes a morrer. Se uma imagem é produzida no presente, ela é vista no futuro e, quando exibida, já se refere a um gesto passado. Nos filmes que comentamos nesse texto, uma imagem não resolve todos os mistérios: alguém que se olha no espelho vê uma imagem semelhante, mas não igual; não vemos o futuro de dois jovens que talvez se casem; não sabemos quando o espírito de uma mãe morta outra vez retornará a Terra. Contudo, algo permanece claro: é pela imagem, pelo aquilo que ela permite imaginar, que podemos entender – e ver – a vida para além do que nos é visível aos olhos.