Na primeira cena de Corpo Elétrico (2017), Elias está deitado na cama e, para um parceiro, conta sobre um sonho em que estava na praia à noite e, ao mergulhar sem roupa no mar, foi envolvido por uma onda inesperada. A narrativa do protagonista acena para o que está em jogo no longa-metragem de Marcelo Caetano: uma ponte entre o imaginário e o cotidiano, entre vidas sonhadas e vivências concretas no presente. Os relatos após o sexo dimensionam os desejos de Elias e, mesmo que as histórias nem sempre se materializem no real, fazem parte do modo como o personagem olha para o mundo, mediado pelos encontros que se sucedem fora do ambiente de trabalho. É o caso do encontro com o segurança da galeria, que começa no presente, mas é interrompido, para, mais à frente, ganhar um desfecho por meio da história narrada por Elias. O verbo potencializa o que acontece na vida cotidiana.
Elias é um jovem de 23 anos, que saiu da Paraíba para São Paulo e vive o presente sem grandes planos para o futuro. Sua rotina é resumida às horas de emprego em uma fábrica de confecções e aos momentos de folga com os amigos e colegas de trabalho. Nos intervalos do seu ofício, ele se permite a pequenas transgressões: fumar onde não é permitido, conversar com os funcionários. O chefe chama a atenção dele, por dedicar muito tempo às relações pessoais com os operários da fábrica. No entanto, são os vínculos que ele estabelece com essas pessoas que tornam a vida menos pesada, longe de uma família que não o aceita. Fernando, imigrante da Guiné-Bissau e novato na fábrica, é quem pergunta a Elias o que ele faz quando fica triste. Ir na rua, encontrar gente e tomar cerveja é a resposta que o protagonista dá.
Longe da produção cansativa do trabalho, os colegas se divertem junto em bares, nas rodas de samba, em festas dentro de casa. Após uma cena de negociação entre patrão e empregados pela flexibilização das horas extras, um plano-sequência apresenta uma caminhada dos funcionários pela rua à noite, em que a câmera flana em um travelling de um pequeno grupo a outro, captando conversas breves sobre a vida de cada um. A rua não é o lugar do perigo, nem da violência, mas onde é possível descontrair, arejar, “desaguar”, como mesmo diz Elias. Há momentos em que os amigos extravasam, como a cena do ônibus em que todos embriagados cantam Marrom Bombom, sem qualquer interdição do olhar de quem possa estar de fora, e a sequência que intercala a divertida viagem de moto com luz neon com as performances no palco de Márcia Pantera, embalada por uma música operística de tom celebratório à vida noturna de gays, trans e drags.
Corpo elétrico (Marcelo Caetano, 2017)
Corpo Elétrico constrói uma dramaturgia da vida afetiva homossexual, em que é possível estar junto sem as proibições normativas da sociedade. Marcelo Caetano escapa de boa parte das narrativas já desgastadas do cinema em que os gays têm destinos trágicos, que são agredidos ou morrem, por não se adequarem aos padrões de uma conjuntura social. O filme abriga como pressuposto um ethos em que os conflitos parecem já ter sido resolvidos ou, pelo menos, minimizados. Os estranhamentos existem – como o colega que se assusta ao ver Elias na cama com outro homem –, mas as tensões são rapidamente apaziguadas e esquecidas. Enquanto o filme inventa um lugar possível para a vida plena dos personagens, ele deixa fora de campo tudo o que poderia destruir os laços dessa comunidade e cria uma outra forma de família pela valorização das amizades.
Se a vivência da homoafetividade não é um problema em Corpo Elétrico, os conflitos são de outra ordem. Eles perpassam o mundo do trabalho, a consolidação da carreira e as dúvidas em relação ao futuro. Após o ano novo, os amigos se encontram na casa de praia e precisam ir embora cedo para aguentar mais um dia de trabalho na manhã seguinte. Elias resiste e permanece ali. Para um jovem de 20 e poucos anos, importa estar à deriva no presente, sem guardar mágoas do passado, nem se preocupar com o que fazer daqui para frente.