Entre a imagem e o imaginado – os bastidores de “Atrack em Paris” e a dupla aparição de Leona Vingativa

O interfone tocou quando a tarde vinha chegando ao fim, no apartamento alugado na rua do Futuro, bairro das Graças, zona de classe média alta de Recife (PE). Pela hora, só podiam ser elas. Desde os primeiros contatos, pelo Whatsapp, quando nos avisaram da aterrissagem, eu tinha sido tomado pela ansiedade. Há anos fã daquelas artistas, fazendo um mestrado sobre seu trabalho, o diretor que tinha inventado toda aquela situação, enfim, as conheceria pessoalmente. Já contaminada pela minha expectativa, Chris, a produtora, pegou o interfone e confirmou, elas haviam mesmo chegado. Descemos para recebê-las.

Ainda sem atravessar as grades do condomínio, as jovens paraenses Leona Vingativa e Paulo Colucci1 nos aguardavam perto do Uber. A dupla vinha para a filmagem da continuação da saga Leona Assassina Vingativa, uma trilogia em curta-metragem criada por elas como uma brincadeira, quando ainda eram crianças, que fez enorme sucesso no YouTube em 20092 e que agora teria sua prometida e aguardada sequência, motivada e apoiada financeiramente para ser também o mote de um dos episódios da Cine Barato, série documental sobre cinema de baixo orçamento da qual sou diretor. Propus a elas e ao coletivo pernambucano Surto & Deslumbramento, também fãs declarados das artistas, realizarem o filme em parceria, e nós faríamos o making of, acompanhando todo o processo e realizando entrevistas sobre suas trajetórias. Para minha alegria, todxs toparam. Questões relacionadas ao roteiro e aos custos de produção acabaram por levar as filmagens à capital pernambucana. Leona e Paulo chegaram numa quarta-feira, vindas de sua cidade, Belém. As gravações ocorreram em setembro de 2017.

Não me lembro com detalhes do estado de Colucci ao chegar em Recife, mas provavelmente aparentava tranquilidade e segurança, como sempre, enquanto consultava algo em seu inseparável celular. Mas de Leona recordo com alguma precisão. Parecia séria, cansada. Seu cabelo com mechas loiras, preso e ligeiramente bagunçado. O aspecto típico de alguém para quem as viagens de avião nunca são uma experiência tranquila, o que eu viria a confirmar apenas três dias depois, em entrevista. O estilo reservado e um pouco tímido me impactara. Era o extremo oposto de sua persona midiática. Tinha até mesmo algo de etéreo, um ar que prontamente associei à profissão de atriz, semelhante ao que esperamos de grandes damas dos palcos e das telas. Leona parecia de algum modo não pertencer exatamente ao mesmo plano que nós, o que se intensificava com a energia baqueada pelo voo, agregando à sua imagem uma inesperada fragilidade.

Lembro que tentávamos imaginar, antes de chegarem, se suas figuras periféricas, negras e homossexuais não causariam estranhamento em moradores do prédio de aspecto engomadinho, coberto pelo típico mau gosto da decoração recorrente nos bairros de classe média mais abastados brasileiros. Planejávamos como reagir no caso de alguma questão do tipo, e me incomoda agora que esse pensamento soe em si mesmo preconceituoso. Penso se não é justamente esse choque estético-social que aparece nos primeiros filmes da dupla, expondo agora as contradições de como os vejo. Talvez esteja aí uma de suas potências: quando atuam glamour tendo como cenário suas próprias e precárias moradias; quando performam feminilidade onde o pensamento hegemônico vê corpos de meninos; quando disputam, com sua paródia das telenovelas, um espaço simbólico e de poder ocupado e cercado por nós da classe média branca.

Se naquelas imagens gravadas com precariedade, esse contraste é criado entre a fabulação, a performance e a realidade tão pessoal dos corpos e das locações, aqui se dava pela pressuposição de um desconforto a ser causado pela simples presença de suas figuras não hegemônicas. Por elas parecerem, para meu olhar, que eu projetava nos moradores, não (poder) pertencer àquele lugar que historicamente as têm negado. Talvez ainda por crer, mesmo que de maneira insconsciente, que elas teriam outros modos. Barulhentos, espalhafatosos, ferozes. Diferentes dos nossos: educados, civilizados, docilizados. Mas Leona me desmontou com sua quietude. Na escrita de Glória Anzaldúa, ativista filha de camponeses do sul do Texas, me encontro como se mirasse um incômodo espelho, quando, em seu comovente e revelador artigo Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, ela pergunta:

Por que eles nos combatem? Por que pensam que somos monstros perigosos? Por que somos monstros perigosos? Porque desequilibramos e muitas vezes rompemos as confortáveis imagens estereotipadas que os brancos têm de nós. (ANZALDÚA, 2000: 230)

Penso, portanto, sobre qual Leona eu tenho visto em seus filmes, sobre qual buscava ao filmá-la, em quais estarão ainda por aqui, nesse texto. O que tento é criar, a partir da memória, uma espécie diário de bordo, ensaístico e confessional, dos quatro dias em que pude acompanhar o processo criativo de uma importante peça da obra dessas artistas que tanto admiro e sobre as quais sei tão pouco, ainda que me afetem significativamente. Relato a seguir questões implicadas na produção, que pude observar/interpretar no modo como Leona e Colucci, o coletivo Surto & Deslumbramento, eu e minha equipe, nos relacionamos, entre nós e com o processo. Além disso, tento pensar, ainda que de modo incipiente, como ter conhecido pessoalmente Leona lança questões sobre o modo como suas imagens podem produzir engajamento em pessoas que, como eu, ocupam os lugares da hegemonia branca, heterossexual e cisgênero.

***

Naquela tarde, enquanto Chris tentava conseguir por telefone uma internet que funcionasse – segunda promessa não cumprida pelo locador – permanecemos todxs por ali, jogando conversa fora. Em meio a cigarros na varanda do apê, eu e Colucci logo engatamos um empolgado papo sobre seus filmes. Já Leona permaneceu a maior parte do tempo distante, no quarto. Eventualmente, solicitava a presença de Colucci, deixando-me ainda mais intrigado com sua postura retraída, distante demais da vivacidade dos seus vídeos. Numa das idas e vindas de Colucci ao quarto, por fim, nos disseram que ela tinha fome. Percebemos que todxs já estávamos com fome, mas combinamos que aguentaríamos um pouco e sairíamos tão pronto fosse resolvido o problema da conexão, que assim comeríamos juntxs. Convidei também o amigo e diretor de fotografia Roberto Jaffier, com quem e na casa de quem, cedida como locação por cortesia, filmaríamos nos próximos dias.

A resolução dos problemas com a internet, porém, atrasara demasiado. Só me dei conta disso quando já estávamos sentados no clássico Bar Central, na Mamede Simões, rua boêmia localizada a poucos passos do Recife Antigo. Como se não bastasse o adiantado da hora, os pratos  demoraram a chegar. Leona seguia calada, visivelmente cansada, provavelmente faminta. Mesmo Colucci, sempre mais alegre e político, já estava dispersa. Ambas ali, mergulhadas em seus celulares. Coisa da idade, tentava tirar por menos em minha cabeça, mas a verdade é que senti ter falhado, como diretor e anfitrão. Deveria ter me atentado para a necessidade de que alguém que comunica fome a tivesse logo saciada. Ainda mais pelo fato de nossa protagonista já ter chegado ensimesmada. Que grande merda! Era tarde demais e, a essa altura, já estávamos todxs com muita fome, frustração e cansaço. Eu e Chris tínhamos também chegado de viagem no mesmo dia, ainda sem descanso.

Nada disfarçava o desconforto. Busco no bolso meu celular na esperança de que a noite não tivesse avançado na mesma proporção que o mal estar. Vejo que há uma mensagem no Whatsapp. É André Antônio, do Surto & Deslumbramento. Ansiosos para conhecer pessoalmente uma de suas maiores referências,3 me escrevem convidando a todxs para passar no apartamento de Chico Lacerda, outro integrante, onde encontraríamos também Rodrigo Almeida, para uma confraternização de boas vindas.4 Embora a chegada da comida não tivesse levantado os ânimos, insisti que pelo menos passássemos para dar um “oi” e agradecer à cordialidade do grupo. Além do mais, seria bacana que nos conhecêssemos antes do dia em que gravaríamos. Todxs concordaram, e seguimos pra lá.

Ao sairmos do restaurante, no entanto, outro obstáculo se impunha. Enquanto nos dirigíamos aos táxis, Leona foi logo notada, e começaram a aparecer fãs de todos os lados. O mau-humor sai de cena. Ela atende a todxs com simpatia, sorri para as fotos, faz poses, caras e bocas, é paciente, solícita e profissional. Se a cena de certo modo me surpreende, para Leona é algo corriqueiro. Quando pergunto, noutra oportunidade, como lida com fãs mais inconvenientes, contemporiza, bem humorada e com ares de veterana: “Tem bicha que é muito enjoada. Ainda mais quando elas tomam um porre. Égua, elas são o cão! (risos) Mas tem que ter paciência, né, pra trabalhar nessas coisas. Tem que entender.” Naquele momento, me dou conta de que, apesar da pouca idade, ela já tem quase uma década de carreira. Desde 2014, quando completou 18 anos, são muitas viagens e apresentações acumuladas. A interação com fãs, seja ao vivo ou na internet, faz parte do básico de seu trabalho.

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O prédio de Lacerda, pequeno, tem um aspecto mais simples se comparado com o que hospedava Leona e Paulo. Seu bem decorado terraço, no entanto, assim como os quitutes da festinha, apontavam para a boa condição financeira do casal que nos recebia, e acredito que outros sinais sugeriam a diferença de classe entre a dupla paraense e o restante de nós. Talvez, por isso, ainda nos cumprimentos iniciais, Colucci perguntou, não sem impor certo constrangimento, ou com essa intenção, quem mais ali era “favela”. Nos entreolhamos, desconcertadxs, até confirmarmos que não havia mesmo mais ninguém além delas. Junto à classe social, a raça também nos separava: Leona e Paulo eram as únicas pessoas negras da produção. Pelo viés da sexualidade, ainda, outra barreira se formava. Desta vez, separando (suponho) nossa equipe5 dxs entrevistadxs, todxs LGBT. Por fim, mais uma diferença ainda se impunha, a que havia entre Leona e mais três outras pessoas trans que atuaram na produção6 e o restante de nós, cisgêneros.

Foto: Christiana Bernardes

Nos próximos dias, essas diferenças criariam entre mim e o grupo uma distância difícil de transpor naquele período curto, embora tenhamos todxs nos dado bem e nos divertido no processo. Foi sobretudo com Leona a relação mais desconfortável. Talvez por ela ser a principal artista envolvida, à qual nossos olhos se voltavam, os meus entre a tensão e o fascínio, diante da obrigação de filmá-la e da dissertação a ser escrita sobre sua obra. Desconfio, no entanto, que essa dificuldade em acessar alguma proximidade com a musa não tenha sido só minha. Apesar de extrovertida, Leona não parece ser uma pessoa exatamente aberta. Frequentemente em seu celular, soava sempre encafifada em pensamentos e pouco interessada no ao redor imediato. Quando as gravações se encerravam, ainda no set, fazia uma horinha entre o grupo, tomava uma cerveja de leve, fumava algo, mas não demorava a chamar Paulo para ir embora. Tive a impressão muitas vezes de que para ela tudo não passava de uma entediante obrigação de trabalho. Não deixava de sê-lo, em todo caso. Leona conta que é caseira, gosta mesmo é de dormir e de se fartar da culinária de sua terra, da qual sente muita falta quando viaja, principalmente do açaí.

Outra impressão que ficou foi a de que ela e Paulo, entre todxs ali, eram as mais relaxadas em relação ao filme. Mas como é possível, já que se tratava da continuação de seu trabalho mais emblemático?, me perguntava. Principalmente para Leona, acredito, talvez esse desprendimento se deva ao fato de que o domínio sobre sua imagem parece nunca ter passado prioritariamente pelo controle dos meios de produção, e sim por uma imposição performática que influi na encenação a partir do ato em si de colocar-se em cena. Basta que se aperte o rec e se aponte a câmera em sua direção, que ela parece instantaneamente começar a seduzí-la, enfeitiçá-la, olhando sempre muito diretamente para a lente, como se olhasse nos olhos do público. Também o improviso surge na entrevista como método que ela e Colucci mais utilizam. É como observa Vitor Medeiros, em texto publicado nesta revista, em função do sessão do filme na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em 20187:

A obra se estrutura essencialmente no improviso e na fisicalidade das performances. Por mais artificiosas que sejam as interpretações, elas são carregadas de uma forte presença, uma vitalidade que se dá no momento em que a câmera é ligada e que pulsa em seus corpos, levando-as a agir de uma maneira que parecem estar criando falas e gestos a cada instante, geralmente tendendo ao excesso. O dispositivo cinematográfico age como propulsor e catalisador de performances, porém, uma vez que elas irrompem, nem sempre a câmera consegue enquadrá-las. (MEDEIROS, 2018)

Corrobora o fato de que a maioria de seus trabalhos foram e continuam sendo feitos a partir de parcerias que filmam e montam e, a tirar pelo modo como as coisas se deram na produção de Atrack em Paris, a interferência delas é mínima nesses quesitos, ainda mais se comparada com o poder quase absoluto geralmente conferido a quem ocupa o lugar de direção. Com elas, porém, tudo parece ser fluido e livre, postura que de certo modo esvazia o poder que há nessa posição, que Colucci ocupou (junto a André Antônio) efetivamente mas sem a menor afetação,8 e que surge no processo apenas por uma proposta nossa e do coletivo. O modelo de produção da dupla não tem a ver com essa estrutura tão naturalizada como modus operandi do campo cinematográfico, para o qual elas parecem não dar a mínima, atitude cool por excelência.9 É o que dão a entender nessa conversa10:

Álvaro: Como vai ser ter que decorar fala?
Colucci: A gente decora, né, velha?
Leona: A gente faz na hora, ainda mais decorado! Decorado é que vai ser babado.
Álvaro: E outra coisa é que é mais tempo de gravação do que geralmente cês gravam, né?
Leona: É que é bem rápido. Todos os nossos vídeos é bem rápido.
Colucci: A gente nunca levou dois dias pra gravar nada.
Leona: Sempre no mesmo dia.
Colucci: Sempre foi tudo num dia só.
Álvaro: E o audiovisual institucional sempre tem a figura da pessoa que dirige, que toma as decisões no final e que dá o ok. Com vocês têm isso?
Leona: Na verdade, é a gente mesmo. Essas pessoas são a gente mesmo.
Colucci: É, sempre foi bem independente.
Álvaro: Cês duas são diretoras. Que escolhem “não, a gente vai filmar desse jeito e não daquele”…
Colucci: Sim.
Leona: É a ideia, cada uma vai dando uma ideia, né, e a gente vai trabalhando em cima disso.

Foto: Christiana Bernardes

Como já supúnhamos esse método, nós do restante do grupo tateamos com muito cuidado a relação. Afinal de contas, éramos a maioria fãs da dupla, e lidar com uma obra para nós tão valiosa e única nos deixou cheixs de dedos. Era como se qualquer passo em falso pudesse romper algo, justo o que todxs queriam preservar – ainda que provavelmente nem saibamos definir em palavras do que exatamente se tratava para cada um. Ao menos foi a impressão que tive, e os meninos do Surto podem muito bem discordar. Em todo caso, o convite feito ao coletivo, de que fizessem essa parceria, sempre partiu da compreensão de que seria um filme de Leona e Colucci, e que o grupo ocuparia apenas as funções de equipe técnica. Ainda que tenham acabado escrevendo e co-dirigindo o filme, o cuidado permaneceu o mesmo. André Antônio, co-diretor, fazia sempre questão de dizer que todo mundo deveria opinar, de que o filme era delas, de que as falas e situações podiam ser modificadas, e assim ocorreu. Também o ritmo de trabalho e as repetições de takes se impuseram organicamente, respeitando principalmente a vontade da dupla.

No percurso, Colucci demonstrou rapidamente seu pendor para a direção, criando situações e falas cômicas – algo já observado em comandos de voz vazados que aparecem incorporados à diegese em outros vídeos da dupla – enquanto Leona se manteve mais no posto de atriz, o que não a impediu de também sugerir falas e gags, como sua queda na cena em que caminha em direção à Torre Eiffel. Acredito que foram elas as responsáveis por criar, no filme, os momentos em que surge uma das características que considero mais importantes em seu trabalho. Refiro-me a marcas de uma relação com a vida periférica que remetem a um lugar de classe para o qual a precariedade material é uma variável de importância nunca desprezável, ainda que surja quase sempre de forma leve. Para citar um exemplo do próprio Atrack em Paris, em uma das piadas mais engraçadas ditas pela Aleijada Hipócrita, ela ressalta que os oitos anos de fisioterapia que a permitiram voltar a andar foram feitos “pelo SUS” (Sistema Único de Saúde, o serviço de saúde pública do Brasil), detalhe adicionado por Colucci no momento da filmagem.

***

As quatro diárias de gravação foram intensas e cansativas. Começávamos de manhã, por volta das 8h30, e terminávamos só à noite. Nossa equipe buscando garantir o material para o episódio ao mesmo tempo em que tentava não atrapalhar o ritmo de gravação do curta em si, que era obviamente o mais importante. No terceiro dia, em que foram gravadas as externas, Leona ainda se apresentou no bar de umas amigas do pessoal do Surto & Deslumbramento, o que acabou sendo para nós uma festinha de encerramento. No dia seguinte, porém, nós da Cine Barato gravaríamos ainda o pessoal assistindo e comentando o material bruto do filme. Ansioso, o diretor de fotografia e montador do curta Chico Lacerda preferiu nem ir à comemoração, para passar a noite fazendo um primeiro corte, que aprensentaria a todxs no dia seguinte, o que nos deixou empolgadxs.11

Por conta da festa e do cansaço acumulado, combinamos que esse último encontro seria apenas no final da tarde. Com toda a correria, não consegui sequer ter um tempo para conversar com calma com Leona e Paulo a respeito do mestrado sobre seu trabalho, e, ao final, trocamos apenas algumas poucas frases sobre isso. O tempo era curto; as demandas, muitas. Embora essa divisão não exista internamente, o dia a dia do set fez que eu tivesse que dar preferência ao diretor, e o pesquisador ficou observando tudo em suspenso, guardando pra si as questões que não cabiam no momento apertado da filmagem.

Foto: Christiana Bernardes

O desconcerto sentido ao conhecer pessoalmente Leona, denunciando em meu olhar preconceitos que eu pensava não ter, e que Anzaldúa conseguiu localizar tão bem, no pequeno trecho que cito no começo deste texto, em um estar no mundo cercados de privilégios – inclusive esse, de reduzir paulatinamente toda uma comunidade a estereótipos – deu uma chacoalhada na pesquisa de mestrado. Isso porque fez com que eu descobrisse que, embora sempre tenham despertado em mim enorme admiração, as imagens de Leona – tanto as que ela faz de si mesma quanto as feitas por outras pessoas e nas quais ela se dá a ver com tanta autonomia – não são um lugar tão confortável para mim, como pareciam ser até então. Percebi nelas seu/meu lado perturbador, o que eu acredito ser uma potência política, das tantas que suas imagens parecem conter e espalhar.

Dentre outros fatores, suponho que isso ocorra porque essas imagens não estão assentadas sobre um regime estável. Como apontam Rodrigues, Ferreira e Zamboni no artigo A potência do precário: restos curriculares em Leona Assassina Vingativa (2013), provavelmente o primeiro escrito sobre o trabalho da artista, Leona se confunde com sua personagem, quebra a barreira entre realidade e ficção. Desse modo, performaticamente, seus registros são a imagem de uma dupla aparição, de uma figura que se forja num espaço entre ou multiplicado pelo impreciso: Leona é a personagem mas também a pessoa, é a que vemos nas imagens e a que somos obrigados a imaginar fora delas. Sua performance/vida audiovisual abre um amplo espaço, um lugar reservado para quem assiste, e que somos convocados a completar, mesmo sem nos darmos conta. Assim sendo, especulo que meu estranhamento ao conhecê-la pessoalmente tenha se dado porque trouxe à tona esse lado escondido da minha relação com suas imagens. O contato fora das telas, portanto, expandiu para mim o sentido de olhar os vídeos. Como e se será possível incorporar isso à pesquisa de modo satisfatório tem sido meu desafio desde então.

Notas:
1 – Naquele momento, Leona e Paulo tinham respectivamente 21 e 26 anos, ao passo que eu tinha 31, e Christiana é cerca de 10 anos mais velha que eu.
2 – Este sucesso terminaria por levar Leona a se dedicar profissionalmente à carreira artística, o que começou ainda em 2009, a partir de convites para se apresentar em eventos e boates. Após um hiato por conta de uma proibição judicial, que a impediu de viajar para se apresentar enquanto era menor de idade, ela volta a produzir com mais frequência a partir de 2014. É apenas desse ano em diante que a possibilidade de “trabalhar com internet”, como diz Colucci, começa a se concretizar para Leona, com o lançamento do clipe de “Eu Quero um Boy”. Depois desse, mais clipes são lançados, e ela volta a receber convites e a se apresentar ao vivo em diversas cidades brasileiras, confirmando-se como um dos principais nomes da cultura LGBT no país.
3 – Eles inclusive citam um trecho do Leona Assassina Vingativa 1 no curta Estudo em Vermelho (2013), de Chico Lacerda. O filme das paraenses aparece quando uma personagem zapeia canais numa televisão, interessante sacada que dá a ver de forma muito precisa e rápida a radicalidade do trabalho da dupla, ao nos fazer pensar como aquele lugar é construído para mantê-lo de fora, e não dentro, como fabula a ficção.
4 – O quarto integrante do coletivo, Fábio Ramalho, só chegaria a Recife no dia seguinte.
5 – Além de Christiana Bernardes (produtora) e de Roberto Jaffier (diretor de fotografia), citadxs no texto, também compunha a equipe a operadora de som direto Simone Dourado.
6 – Refiro-me à produtora e pesquisadora Caia Coelho e às performers Linda DeMorrir e Vic Chameleon, que atuaram no filme.
7 – Em 2017, o curta-metragem foi exibido no Janela Internacional de Cinema do Recife e na Mostra Tropicália, Ontem Como Hoje, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo (SP), mas estreou no YouTube, poucos dias depois de ter sido gravado.
8 – É importante pontuar, contudo, que Colucci desempenha papel de direção de fotografia e câmera em importantes trabalhos, como os videoclipes de Frescáh no Círio (2015) e Lixo na Sua Cara (2018), assim como no making of deste clipe, que pessoalmente considero um dos registros mais interessantes da dupla.
9 – Penso em cool nos termos propostos por Questlove, em artigo traduzido por Heitor Augusto e publicado em seu site Urso de Lata: https://ursodelata.com/2016/12/11/traducao-questlove-sobre-quando-o-negro-perde-seu-ar-cool-hip-hop/ Acesso em 04 Fev.
10 –  Trata-se de uma parte da entrevista que realizei com a dupla para a série que não entrou no corte final do episódio.
11 – Além desses dias, no primeiro gravamos entrevistas com Leona, Colucci e o Surto & Deslumbramento para a série. Também foram feitas uma reunião de pré-produção do curta e a leitura do roteiro. No segundo dia, foram gravadas as cenas internas. Durante todo o processo realizamos ainda pequenas entrevistas principalmente com Leona e Colucci.
Referências:
ANZALDÚA, Gloria. Falando em Línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Vol. 8, n.1, 2000, pp. 229-236.
MEDEIROS, Vitor Gurgel de. “O atrack de Mademoiselle Leona”. Revista Moventes. 2018. Niterói. Sessão O que vemos, o que nos olha. Cobertura da 21ª Mostra de Tiradentes.  www.revistamoventes.com/2018/02/03/o-atrack-de-mademoiselle-leona/ Acesso em: 20. jan 2019.
QUESTLOVE. “Questlove sobre Por Que o Hip-hop decepcionou a América Negra, Parte III: O que acontece quando ‘negro’ perde seu ar cool”. Tradução de Heitor Augusto. Urso de Lata, 2016. Disponível em: https://ursodelata.com/2016/12/11/traducao-questlove-sobre-quando-o-negro-perde-seu-ar-cool-hip-hop/ Acesso em: 03 de fev. 2019.
RODRIGUES, Alexsandro; FERREIRA, Sérgio Rodrigo da Silva; ZAMBONI, Jésio. “A potência do precário: restos curriculares em Leona Assassina Vingativa.” Revista PerCursos. Florianópolis, v. 14, n.27, jul./dez. 2013. p. 304 – 323.
Por Álvaro Andrade