Em sua essência, o fantástico tem como efeito primordial a problematização da realidade, propondo a irrupção de elementos insólitos em um mundo real/natural e abordando temas muitas vezes indigestos em uma determinada sociedade.1 Nesse texto, propomos a aproximação desse efeito de insegurança física e intelectual que o fantástico é capaz de proporcionar a um tema de grande repercussão no Brasil atual, que é a segurança pública.
Para isso, propomos a análise do curta-metragem Ninjas (2010, 23 min), dirigido por Dennison Ramalho.2 No filme, acompanhamos Jailton (Flávio Bauraqui), policial militar de São Paulo, negro e evangélico, que em uma ação policial na periferia da cidade mata acidentalmente um adolescente negro. Ao identificar o corpo de um inocente, o personagem dá uma “outra volta no parafuso”3 e, tomado pela culpa cristã, passa a ser atormentado por reverberações insólitas, ao mesmo tempo em que seus colegas de farda encobrem todos os rastros que poderiam lhe incriminar. Porém, essa absolvição tem alto custo. Jailton é obrigado a passar uma noite com um grupo de extermínio, e ao matar uma jovem se torna um novo membro do grupo: torna-se um “Ninja”.
O filme compartilha elementos que nutrem tanto o fantástico quanto o horror, alicerçando uma atmosfera de medo a partir de um sobrenatural de valor negativo,4 que visa causar danos físicos e psicológicos ao protagonista (ROAS, 2014). Também é hábil em lidar com a união daquilo que Stephen King define como Horror e Repulsa.5 Esta aproximação proporciona um encontro com várias das sensações que um filme de horror é capaz gerar: “contrações musculares, tensão, encolhimento, tremores, recuo, entorpecimento (…) calafrios (portanto, “frios na espinha”) paralisias, estremecimentos, náusea (…)” (CARROLL, 1999, p. 41).
Além disso, Dennison Ramalho foi assistente de direção de José Mojica Marins em Encarnação do Demônio (2008), e Ninjas não deixa de referenciar certos elementos narrativos e estilísticos que moldaram a trilogia do personagem ateu Zé do Caixão, como o jogo com o gore e com a tortura.6 Tais recursos no filme são utilizados para fusionar real e sobrenatural a partir de questões pertinentes no Brasil atual, sobretudo a violência policial.
O interesse por questões relacionadas à segurança pública está longe de ser uma novidade para o diretor, que além de ser assistente de direção de Paulo Sacramento no filme O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), roteirizou capítulos das séries Supermax (2016) e Carcereiros (2017). Ramalho também tratou do tema em seu primeiro longa-metragem, Morto não Fala (2018), no qual acompanhamos um legista com a capacidade de falar com os mortos.
Partindo desses temas, nosso objetivo é refletir como a moral cristã que legitima uma diferença binária essencial entre “bem” e “mal” é gradualmente soterrada pela estrutura corrupta da polícia. Esse contexto reverbera em um processo de adoecimento da realidade, calcado na irrupção de elementos insólitos e na monstrificação do protagonista. É a combinação dessas dimensões que nos ajudará a pensar os discursos que legitimam uma atuação policial orientada pela lógica do extermínio no cenário político brasileiro contemporâneo.
A culpa
O filme começa ao som de um culto evangélico neopentecostal. Vemos fiéis em movimentos convulsivos, clamando em um coro de vozes insistentes, angustiadas. No meio disso Jailton ora em silêncio, enquanto duas pernas nuas e trêmulas revelam uma representação moribunda e apodrecida de Jesus Cristo. Jailton é o único a notar a figura insólita – e estranhamente a recebe com um sorriso. Essa responde expelindo, de sua barriga negra e fissurada, um braço que estende o cabo de um revólver em direção à câmera, como se oferecesse a arma não apenas a Jailton, mas também ao espectador.
No jogo de valores que o gênero policial possibilita, Jailton é o “tira bom”: desconhece as regras subterrâneas da corporação e, ofegante e assustado, não está preparado para uma troca de tiros. Ao perceber que atingiu um corpo inocente que, por sinal, ainda respira, se culpa arduamente pelo ocorrido, sem ao menos perceber que está apontando sua arma carregada em direção ao seu parceiro. O parceiro é o “tira mau”, policial já rodado na corporação, que logo surge usando uma luva, colocando uma arma na mão do adolescente e disparando o revólver em direção ao espectador. Esta ação é um procedimento padrão que, apesar de ilegal, é comumente utilizado para inocentar policiais, que ao alegarem legítima defesa costumam não ser responsabilizados pelos assassinatos que cometem.7
Com esses dois planos nos quais armas são apontadas em direção ao espectador, o filme sugere logo no início a existência de apenas duas escolhas, as mesmas disponíveis à Jailton: ou estamos ao lado dos que matam ou ao lado dos que morrem. O protagonista demora a entender essa lógica, e aqui está seu grande dilema moral: não se trata “apenas” de matar um inocente, mas de se envolver em um esquema criminoso que o absolve sem que ele precise fazer nada. A corrupção moral de Jailton é alicerçada em um mal teológico. Afinal matar um criminoso não é um problema na narrativa, pois como supõe a esposa do protagonista: “ele era bandido, você cumpriu com a sua obrigação” e, por isso, “Deus vai te perdoar”.
É o ruído entre a imagem de um “bom cristão” e uma política de extermínio que possibilita a irrupção do insólito por meio de um corpo gradualmente expatriado da realidade, que somatiza um adoecimento nos “olhos, cérebro, estômago, tudo” (KIPLING, 2015), formando um território sonâmbulo que, como Jailton, trabalha de noite mas não consegue dormir durante o dia: reside entre o mundo dos vivos e dos mortos. Por isso, a porta do guarda-roupa é batida por dentro, a luz pisca, a caixa d’água é contaminada por um líquido viscoso e fumegante que entope o chuveiro e mãos desconhecidas tentam enforcar o personagem.
Os monstros
O adolescente morto é enterrado como indigente, mas agora é preciso compensar o “favor”. Jailton é levado para uma operação de extermínio. Aqui surgem os “Ninjas”, policiais que atuam fora do horário de trabalho, usando capuz e eliminando pessoas que estes julgam ser um mal para a sociedade, retratados por Ramalho como figuras monstruosas de grandes olhos negros e côncavos. Como aponta Jeffrey Jerome Cohen (2000), o monstro corporifica os medos e desejos de uma determinada cultura, impondo ameaça aos que se aventuram a ultrapassar as “fronteiras do possível” (p. 42). Ser um “Ninja” é poder burlar todos os códigos que um policial deveria respeitar.
Sua morada se coloca à margem da lei, na fronteira entre o possível e o impossível. Não à toa a monstrificação dos policiais faz com que eles também possam ver o fantasma do adolescente morto por Jailton. Estão todos ligados pelo signo da morte e, como habitantes de um espaço de regras fissuradas, julgam e punem aqueles que não respeitam suas leis.
Tais julgamento e punição se orientam pela amplificação de uma visão de segurança pública pautada pelo confronto, que depende necessariamente da criação de inimigos. Aqui a lógica binária entre “bem” e “mal” é fundamental, já que qualquer pessoa tida como inimiga é vista como um “outro”, como alguém essencialmente mau que pode ser exterminado. A categoria “bandido” resume perfeitamente esse argumento, pois como costumam dizer os autoproclamados cidadãos de bem, “bandido bom é bandido morto”.
Essa binaridade vista tanto no discurso bolsonarista quanto na dicotomia cristã entre o “bem” e o “mal”, sem dúvida foi um dos grandes impulsionadores do candidato de extrema direita ao governo. E nesse ponto o filme antecipa o nosso momento atual, no qual a imagem de Jesus oferecendo uma arma não se desassemelha a de um cristão fazendo gestos de “arminha” em tantas igrejas do Brasil.
Ao demandar a morte de todos aqueles categorizados como “bandidos”, antes mesmo de serem julgados perante à lei, legitima-se a ação de monstros que, como afirma Cohen, ameaçam “destruir não apenas os membros individuais de uma sociedade, mas o próprio aparato cultural por meio do qual a individualidade é constituída e permitida” (COHEN, 2000, p. 40). Isto é, quando a sociedade brasileira em geral e o Presidente da República em particular legitimam a violência policial – a ação desenfreada de “Ninjas” – oportuniza-se não apenas o assassinato de inocentes, mas criminaliza-se determinados contextos demarcados racial e socialmente por supostamente serem propícios para a emergência de criminosos. O cenário exposto no filme de Ramalho ilustra muito bem esse tipo de contexto.
Por isso, a ação ocorre em um bar na periferia e as vítimas são estigmatizadas por habitarem esse espaço de pobreza (MATIOLLI; OLIVEIRA; RODRIGUES, 2016). Jailton também habita esse espaço, mas ao aceitar ser um “Ninja”, estabelece uma nova posição na hierarquia local. Entre ser morto pelos “Ninjas” ou tornar-se um, o protagonista opta pela segunda opção. Ao cometer mais um crime, Jailton não é apenas um policial morador da periferia, mas também um monstro, um “Ninja”: “dar um passo fora dessa geografia oficial significa arriscar sermos atacados por alguma monstruosa patrulha de fronteira ou — o que é pior — tornarmo-nos, nós próprios, monstruosos” (COHEN, 2000, p. 41).
Ao aceitar que seu crime seja soterrado duas narrativas se revelam, uma diurna e outra noturna, que unidas apresentam o uso cultural ao qual o monstro se pretende. Jailton se metamorfoseia nesse convívio entre a inadequação à uma estrutura policial corrupta e a adaptação a um contexto de violência. Ele percebe as vantagens de se adequar às imposições de seu meio, o que faz com que este não precise mais voltar para casa com trajes civis por receio de represálias de criminosos. Ele é protegido pelos “Ninjas”, a farda lhe cai bem e é sua companheira quando é assombrado por seus fantasmas. Agora o personagem pode dormir tranquilamente.
Entre debates sobre real e sobrenatural, o filme de Dennison Ramalho nos faz pensar sobre o estado atual de nossa democracia. Afinal, que democracia é esta que produz instituições que oportunizam o nascimento de monstros? Se concordarmos com o pesquisador José Cláudio Alves (2003) de que grupos de extermínios vinculados ao aparato policial foram um legado do regime militar, Ninjas dá mais uma pista de que a democracia brasileira não conseguiu superar esse legado. Como Alves afirma, falar em grupos de extermínio, esquadrões da morte, milícias ou qualquer coisa do tipo não é falar sobre “maçãs podres” ou sobre “poder paralelo”. É falar de Estado brasileiro.
Por Fabrício Basilio e Juliana Vinuto