Caminhos da escuridão: “Era uma vez Brasília”, a descrença na história e o esmorecimento da imagem

Não vivemos num mundo destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no equipamento de um veleiro destroçado.
(KAFKA apud PELBART, 2016, p.209).

Em Era uma vez Brasília (Adirley Queirós, 2017), acompanhamos o trajeto de agentes intergaláticos que têm como objetivo destruir a capital brasileira. Nesse filme, a certa imobilidade dos personagens, os longos planos nos quais os observamos dentro das naves espaciais em que a pretensa missão parece adiada, enquanto os agentes se alongam, comem churrasco, dentre outros fatores, apontam para uma situação de esgotamento. Esse estado acompanha uma abordagem outra da cidade de Brasília, que é distinta daquela vivenciada em filmes como A cidade é uma só? (Adirley Queirós, 2011) e Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014). Nessas obras, personagens que foram distanciados do espaço da cidade de Brasília por políticas excludentes, questionam o espaço dessa cidade e tensionam o lugar geopolítico a eles inicialmente destinados.
Em A cidade é uma só? e Branco sai, preto fica, transparece a necessidade de rever e de questionar a narrativa da história oficial como um instrumento e força de ação política. Nesses dois filmes, personagens que vivenciaram processos de opressão no curso da história da capital federal contam fatos apagados da história oficial. Destaca-se, por exemplo, o depoimento da personagem Nancy no primeiro filme, a qual, na infância, fora uma das participantes na elaboração de um jingle para estimular a evacuação dos operários que construíram a cidade da região do plano piloto e, no decorrer do longa-metragem, aponta para a manipulação dessas pessoas pelos governantes. Outros personagens relevantes são Marquim e Sartana, em Branco sai, preto fica, cujas histórias contam de um ataque policial violento a um baile de black music que resultou na lesão física desses personagens. Nessas duas obras, o gesto cinematográfico pode ser compreendido a partir do que discute Walter Benjamin em Sobre o conceito de história. Para esse filósofo, seria necessário reescrever a história a contrapelo. Essa atitude revisaria aquilo que foi escrito antes, distanciando-se da empatia com as figuras vencedoras da história, característica recorrente na organização do passado feita pelas classes dominantes, possibilitando que outra narrativa do passado transparecesse. Ao observarmos os dois longa-metragens de Queirós supracitados, podemos dizer que neles existe um gesto de, por meio do cinema, rever a história de Brasília e construir uma narrativa cuja tessitura revela a dor e a opressão dos excluídos pelas forças da governança e do poder federal.
Em Branco sai, preto fica, o emprego da ficção científica é o instrumento de linguagem necessário para que se possa intervir de forma urgente na história. Nesse caso, a viagem do tempo, a ação de Dimas Cravalanças e a bomba sonora criada com músicas da periferia pelos sobreviventes do ataque ao baile do Quarentão são modos de conseguir atingir o tempo para que os responsáveis pela violência pudessem ser punidos e outro futuro fosse possível. Nesse filme, a ficção científica é empregada de forma que não se explica ou se mostra muito, utilizando, por exemplo, desenhos para indicar uma explosão cuja imagem seria de difícil produção. Por outro lado, em Era uma vez Brasília não há urgência em se afetar o presente ou crença no futuro. Em naves espaciais mais robustas e sofisticadas, os agentes espaciais do planeta Karpenstahl (“Sol Nascente” em português), não têm pressa de ação, como observamos em longos planos dentro de suas naves, conforme abordado anteriormente.
Esse distanciamento dos agentes espaciais em Era uma vez Brasília parece apontar para um estado apático, no qual há poucas ações possíveis para que se transforme o presente. Não temos muito detalhamento da história e da trajetória desses personagens. O desejo de destruição de Brasília é alimentado pelos áudios de falas de políticos que são inseridos ao longo do longa-metragem, cujo conteúdo aponta para promessas de futuros que se revelaram, rapidamente, falaciosas, como, por exemplo, o fim da corrupção na política brasileira após a conclusão do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. A vontade de destruir e nada propor parece emergir como sintoma do estado de ânimo em que se encontram muitos brasileiros, que se sentem desacreditados na política contemporânea. Desse modo, Era uma vez Brasília aparenta não almejar o exercício do cinema como possibilidade de erguer um mundo outro e de uma história distinta, elementos que foram recorrentes em Branco sai, preto fica e A cidade é uma só?. Em Era uma vez Brasília, a descrença e a desesperança parecem ter atingido o próprio cinema e não o mais o temos como ferramenta de invenção para que uma história outra seja narrada e construída.
Ao nosso ver, a atmosfera das ações em Era uma vez Brasília aponta para um cenário niilista. Para nos auxiliar nessa discussão filosófica, recorremos ao trabalho do filósofo Peter Pál Pelbart e do professor Marcelo Antonelli acerca do conceito de niilismo nietzschiano. Para Pál Pelbart, o niilismo em Nietszche “por um lado, (…) é sintoma de decadência e aversão pela existência, por outro, e ao mesmo tempo, é expressão de um aumento de força, condição para um novo começo, até mesmo uma promessa” (PELBART, 2016, p.101). Sob uma perspectiva próxima, em sua análise acerca do trabalho deleuziano sobre Nietszche, Antonelli pondera:

o niilismo faz que a vida, o mundo e a existência percam todo o seu valor, porque a ideia de um mundo suprassensível em qualquer das suas variantes (Deus, a essência, o bem, o verdadeiro), assim como os valores superiores à vida, são inseparáveis dos seus efeitos de depreciação e negação. Dessa forma, o niilismo se revela indissociável da invenção de uma transcendência, isto é, uma instância exterior e superior à vida, dotada da capacidade de julgá-la (ANTONELLI, 2013, p. 257).

Se pensarmos esse longa-metragem de Queirós a partir dessa perspectiva, podemos dizer que os outros modos de agir politicamente presentes em seus outros filmes – a candidatura política, o depoimento com outras versões da história, dentre outras – não têm mais valor possível. Por outro lado, emerge a ação daqueles oriundos de um planeta desconhecido. Destruir Brasília a partir da ação de agentes intergaláticos dos quais sabemos pouco é encerrar quaisquer possibilidades de um mundo distinto ou de outras ações políticas. Simultaneamente, é apostar que os agentes intergaláticos possam fazer e mudar alguma coisa ao findar a existência de Brasilia.
Em Era uma vez Brasília, acreditamos que há um processo de rompimento das disputas pelo território da cidade. Se, em A cidade é uma só e Branco sai, preto fica se revela uma disputa por territórios, o que se evidencia, por exemplo, no gesto de Dildo no primeiro filme, no qual o personagem caminha panfletando a sua candidatura pelas ruas da cidade enquanto trafega toda a aparelhagem da carreata da campanha de Dilma Rousseff, em Era uma vez Brasília já não há espaço a ser conquistado. Nesse caso, há uma cena em que acompanhamos um agente intergalático vendo, distanciado, o planalto central no meio da grama, o que poderia ser comparado, em certa medida, à atitude de Dildo no outro longa-metragem. Entretanto, ao contrário de Dildo, a ação desse personagem não é de agir nesse território para conquistá-lo, mas apenas de observá-lo à distância para eliminá-lo. Não há pretensão de transformá-lo em outra realidade, o que poderia ser conquistado, por exemplo, em uma hipotética eleição de Dildo, que era pobre e trabalhador e poderia inaugurar outros modos de governar.
O desejo da destruição de Brasília e o emprego da violência como meio para tal relaciona-se diretamente com a compreensão do poder e da legitimidade do governo presidencial brasileiros. Em um país em que aqueles que governam parecem representar pouco os que nele habitam, a ação de seres de outro planeta como possível solução ao presente em que nos encontramos escancara a carência de legitimidade do governo presidencial. Para aprofundarmos a análise dessas relações, podemos relacioná-las àquilo discutido por Hannah Arendt no livro Crises da República. Nessa obra, a autora analisa alguns eventos políticos contemporâneos, como o vazamento de documentos do Pentágono. Em sua análise, a autora afirma que “poder e violência se opõem; onde um deles domina totalmente o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em perigo, mas se a permitem seguir seus próprios caminhos, resulta no desaparecimento do poder” (ARENDT, 2017, p. 132). A partir de Era uma vez Brasília, é interessante pensarmos na relação entre o poder e a violência, na medida em que o plano de destruir Brasília aparece quando as estruturas de poder no Brasil aparecem fragilizadas e estremecidas, haja vista, dentre outros elementos, que uma presidenta eleita foi deposta do cargo executivo. Entretanto, essa potência destrutiva não é capaz, de imediato, de criar mecanismos de soberania que consigam gerir os problemas políticos que alimentaram o desejo de destruição. Acerca disso, é válido pensarmos a partir de Arendt, que afirma que “a violência pode destruir o poder, mas é totalmente incapaz de criá-lo” (ARENDT, 2017, p. 132). Nesse contexto, é interessante pensarmos no desvio temporal realizado pelo filme, tendo em vista que nele acompanhamos a trajetória de Wellington Abreu, oriundo do Planeta Karpenstahl, cuja missão é matar o presidente Juscelino Kubitscheck, embora acompanhemos, ao longo do vídeo, imagens e áudios do Brasil contemporâneo. Desse modo, é estabelecida uma relação temporal de destruição do que simboliza o poder em Brasília – o planalto central, por exemplo – que atravessa, de maneira não cronológica, a história da capital. Há uma atmosfera de fracasso governamental generalizado, em que as causas e argumentos presentes são apenas as falas dos áudios dos políticos inseridos no decorrer do longa-metragem. Em contrapartida, não há, no filme, contra-argumentos a essas discursos ou fatos que esclareçam as falhas dessa governança, apenas o plano dos agentes intergaláticos para destruí-la.
De maneira distinta aos personagens da Ceilândia que apareceram em Branco sai, preto fica e A cidade é uma só, em que o desejo de modificar a história do Brasil – seja pela bomba sonora, seja a partir de um cargo institucional via o Partido da Correria Nacional – provinha de um processo excludente dessas pessoas na história brasileira, pouco sabemos sobre os agentes intergaláticos que vieram destruir o país. Dessa maneira a violência e o desejo que os movem aparecem de forma gratuita, de modo que esse gesto não é resoluto ou tampouco carrega em si a esperança de um futuro outro. Para aprofundarmos nessa discussão, podemos retomar a argumentação de Hannah Arendt, segundo a qual “o poder não necessita de justificação, sendo inerente à própria existência das comunidades políticas; o que realmente necessita é legitimidade (…)” (ARENDT, 2017, p.129) e “a legitimidade quando desafiada fundamenta-se a si própria num apelo ao passado, enquanto a justificação se relaciona com um fim que existe no futuro” (ARENDT, 2017, p.129). Nesse sentido, podemos pensar que, ao longo da filmografia de Queirós, existe um perene questionamento acerca da legitimidade do governo sediado na cidade de Brasília. Para tanto, o cineasta resgata em A cidade é uma só? e Branco sai, preto fica elementos da história da capital e da Ceilândia que não foram elucidados na narrativa oficial da história – o ataque policial ao um baile black à revelia, por exemplo -, de modo a questionar a validade de um governo excludente e opressor. Tais questionamentos semeavam possibilidades de enfrentamento e mudança, os quais se projetavam ao futuro. Entretanto, em Era uma vez Brasilia já não há mais desejo ou possibilidade de futuro, mas apenas um projeto para que se alcance o fim. Assim, já não se trata mais de questionar a legitimidade governamental, mas apenas um empenho para mostrar que essa fracassou e não há governabilidade possível.
Outro conceito de Arendt útil à nossa análise é o de poder. Segundo a filósofa,

“poder corresponde à capacidade humana não somente de agir de comum acordo. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e existe somente enquanto o grupo se conserva unido. Quando dizemos que alguém está no ‘poder’, queremos dizer que está autorizado por um certo número de pessoas a atuar em nome delas” (ARENDT, 2017, p.123).

Em Era uma vez Brasília aqueles que desejam destruir a cidade e o governo não são aqueles que o elegeram e lhe concederam o poder. Eles não são aqueles que estabeleceram quaisquer acordos com o governo ou dele esperavam representação. Dessa maneira, não há, tal como existe em A cidade é uma só?, o escancaramento que aqueles que foram colocados no poder não cumpriram o que deviam ter feito para aqueles que governavam. Nesse filme, Nancy Araújo, que participara da produção do jingle da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI) revela como os moradores das chamadas “invasões” na recém construída capital brasileira – que abrigavam diversos trabalhadores que haviam construído a cidade – tinham sido manipulados por um governo que prometeu oferecer qualidade de vida na região em que foi construída Ceilândia, mas não cumpriu com tal projeto. Assim, o depoimento de Nancy ameaça aqueles que governam Brasília, titubeia-os do poder, uma vez que escancara que não há união ou equidade na condição social brasileira. Em Era uma vez Brasília, o ímpeto destrutivo por si não se apresenta como agente transformador da história, mas como ferramenta para encerrá-la sem outra escritura. E, desse modo, apenas endossa a descrença e a desilusão que atravessa o universo extrafílmico, a política brasileira contemporânea.
A destruição anunciada em Era uma vez Brasília direciona para um futuro sombrio. No presente, a política brasileira não apresenta centelhas ou fagulhas luminosas. Entretanto, apostar que nada pode ser feito tampouco reluz. E, de algum modo, conduz a escuridão à vitória. Acerca disso, podemos retomar o que escreve Georges Didi-Huberman em Sobrevivência dos vaga-lumes. Segundo o filósofo, “uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 42). E, continua o autor:

“agir desse modo é ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos projetores. É agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É não ver mais nada. É, portanto, não ver o espaço – seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável – das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 42).

Atuar assim é abrir mão dos mundos possíveis. É não mais vibrar com a perseverança de Dildo, indignar-se com a memória da infância de Nancy ou emocionar-se com o modo de Marquinho reviver, ainda que debilitado, o sonho e as memórias do baile black do passado. É apenas caminhar, cabisbaixo, imerso no escuro.

Referências bibliográficas:

ANTONELLI, Marcelo. Deleuze: três perspectivas sobre o niilismo. In: Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), v. 20, n. 34, p. 253-270, 14 jul. 2015.
ARENDT, Hannah. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 2017.
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: Obras Escolhidas, Vol. 1, p. 222-232. São Paulo, Brasiliense, 1985.
DID-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 edições, 2013.

por Laís Ferreira Oliveira