A estrutura lacunar de “A Vida Invisível” – O imaginário das teias de Eurídice e Guida

“A vai e B fica.” Essa foi a estrutura proposta em uma aula de roteiro que tive. Mas e se “A vai, B fica, A volta mas lhe dizem que B foi, de modo que tanto A quanto B ficam, mas ambos acreditam que o outro se foi”? Essa é a estrutura proposta por A Vida Invisível (2019, Karim Aïnouz), apresentado como um “melodrama tropical” pelo próprio realizador.

No filme, A é Guida (Julia Stockler) e B é Eurídice (Carol Duarte), irmãs do sobrenome Gusmão que vivem no Rio de Janeiro de 1950. As mulheres, protagonistas, nos são apresentadas como forças desejantes. Eurídice quer estudar piano em Viena, Guida quer se casar na Grécia. Os homens, antagonistas, interrompem esses desejos. O marido de Eurídice não quer que ela estude e o namorado de Guida a abandona diante de uma gravidez. Mas cabe ao pai de ambas o símbolo máximo do patriarcado e de todo o seu poder moral e estrutural tanto na sociedade retratada, quanto na ficção filmada. Afinal, é ele quem estabelece a premissa do filme: quando Guida volta da Europa grávida e solteira, ele a denomina como bastarda e mente dizendo que Eurídice foi para Viena estudar piano, gerando o desencontro entre as irmãs.

Sobre o gênero narrativo melodrama, a pesquisadora Mariana Baltar destaca: “Precisamos ‘de pronto’ enxergar o bem e o mal, localizar na superfície da cena e das ações as polaridades moralizantes que se encenam no repertório estético e temático do melodrama; e, assim, garantir a eficácia da pedagogia moralizante” (BALTAR, 2007:113) É interessante notar como no filme a polarização entre as protagonistas femininas e os antagonistas masculinos é apresentada logo nas primeiras cenas, quando Guida pede a ajuda de Eurídice para escapar de um jantar imposto pelo pai e ir encontrar seu namorado. É através de diálogos e situações extremamente expositivos (e, por isso, eficazes) que o longa revela o contraste entre o comportamento das irmãs quando em família e quando sozinhas. A conversa furtiva sobre sexo extraconjugal e estudo em terras estrangeiras marca o embate moral entre filhas e pai. Aqui, elas (mulheres que desejam) seriam o “bem” e ele (homem que tolhe desejos) seria o “mal”.  

E é o “mal” quem cria o conflito narrativo central: duas irmãs que passam a vida inteira habitando a mesma cidade, sem saber. A ironia dramática do filme, construída através da hierarquia de conhecimento do espectador (e do pai) em relação às personagens é reiterada pela polarização entre a imagem e o som. Enquanto vemos a vida frustrada que cada uma segue, ouvimos os voice overs das cartas que trocam (interceptadas pelos pais, portanto, nunca entregues) descrevendo a vida de realizações que uma crê que a outra possui na idealizada Europa. Constroem-se, então, vidas paralelas não só entre as personagens mas também entre o material (a imagem e o som do presente fílmico) e o imaginado (as imagens criadas pelo voice over do som). 

A ironia dramática é um recurso comum ao melodrama, como discorre Baltar: “A antecipação funciona na narrativa quando o público detém um saber em relação aos caminhos do enredo que os personagens não detém. (…) Por saberem mais, os espectadores antecipam o que está por vir, projetando na narrativa algo que ainda não está expresso totalmente, mas que está indicado.” (BALTAR, 2007:126) É interessante notar como A Vida Invisível leva essa ferramenta narrativa ao limite, tanto para as personagens quanto para o público. O pai, que ditou as regras que deram início ao jogo, é também quem impede (ainda que não propositalmente) uma resolução mais positiva e breve quando as irmãs estão no mesmo restaurante ao mesmo tempo, mas não se veem. 

Ainda que o pai represente o “mal” como um antagonista digno de novela que recorre à agressão física para defender a sua pedagogia moralizante contra as filhas, é dele que o nosso conhecimento do enredo mais se aproxima. Se o filme se constrói todo em cima dessa rígida estrutura melodramática e nos coloca a par de olho com o personagem símbolo do patriarcado, seria esta uma forma de tensionar a nossa conivência moral com as situações retratadas?

É somente quando Guida rompe com a diegese estabelecida pelo pai ao se matar nos registros e assumir a identidade de uma amiga que a ironia dramática ao mesmo tempo se inverte e chega ao seu auge. Ainda que Guida tenha aumentado o controle de sua narrativa e o nosso olhar tenha se distanciado do pai e se aproximado do dela, as consequências do desencontro máximo causado pela descoberta da “morte” e da mentira têm graves desdobramentos em Eurídice. Diagnosticada com psicose maníaco depressiva e grávida pela segunda vez, ela é condenada pelo médico ao confinamento. Quando a câmera, que filmava a reação do marido (tenso, preocupado, culpado?) finalmente se volta para Eurídice, a imagem fica fora de foco. Ela se tornou uma mancha com contornos de mulher. Já não existe mais.

Poucas cenas antes, quando Eurídice passa em primeiro lugar para o conservatório de música e vislumbra a possibilidade de materializar a vida imaginada, ela vê a não existência como um alívio e não como uma tragédia: “é que quando eu toco piano, eu desapareço”. No livro “Os Homens Explicam Tudo Para Mim”, Rebecca Solnit discorre sobre o ato artístico desprovido de palavras como forma de levantar perguntas: “Pintar faz aquilo que se pode fazer sem palavras – evocar tudo e não dizer nada, fazer um convite ao significado, sem se comprometer com nenhum significado em particular, oferecer uma pergunta em aberto, em vez de dar respostas.” (p. 88) Quando Eurídice faz a prova para o conservatório, a montagem alterna entre seus dedos e imagens lúdicas dela e de Guida jovens, dançando juntas entre folhas verdes, como se numa dimensão paralela à história que se desenrola. Tocar piano evoca para Eurídice o único momento no qual a pergunta em aberto quanto ao desaparecimento da irmã possibilita respostas onde Guida e Eurídice estão juntas. Por isso, se encontram no enquadramento, mas não no tempo e no espaço.

Uma elipse de décadas também afasta o público espacial e temporalmente das personagens. O ponto ao qual chegamos é uma semana depois da morte do marido de Eurídice, agora interpretada por Fernanda Montenegro. No cofre do falecido, cuja senha apenas o único homem da família sabia, estão cartas destinadas a Eurídice, de uma desconhecida dos filhos, uma tal de Guida Gusmão. Eurídice vai até o endereço de origem, acompanhada da filha e não do filho, e abraça com força a neta de Guida. A escolha de colocar a mesma atriz interpretando neta e avó reforça uma linhagem genealógica feminina (deslegitimada pelo pai de Guida e no entanto ainda existente) e provoca quase que uma pane diegética. A personagem mais velha reconhece a imagem da irmã, e o público reconhece a imagem da atriz. A personagem mais nova, no entanto, não identifica quem é esta senhora que a abraça tão intensamente. Afinal, ela é a que menos sabe sobre os caminhos do enredo, não sobre os que estão por vir, mas sobre os que já se foram. 

Guida e Eurídice continuam não se encontrando, Julia Stockler e Carol Duarte continuam não contracenando, mas há um ponto de intersecção temporal e geracional criado pelo abraço de Eurídice/Fernanda Montenegro e neta de Guida/Julia Stockler. Não é o encontro pelo qual personagens e público ansiavam mas é, sim, um encontro. O encontro mais material possível.

Quando neta e tia-avó conversam, o quadro se fecha somente no rosto de Eurídice. Ela pergunta se Guida falava dela e a neta diz que a avó era muito reservada, mas mencionava que Eurídice era uma grande pianista. As feições de Fernanda Montenegro ganham contornos esperançosos, como se em sua cabeça passasse um filme muito diferente do qual passamos as últimas horas assistindo. Nesse filme paralelo, ela vive a memória inventada por Guida e, a partir dela, infinitas possibilidades narrativas surgem, bem menos lineares e causais, como as teias de aranha descritas por Solnit: “As teias de aranhas são imagens do não linear, das muitas direções em que algo pode ir, das muitas origens que algo pode ter; das avós, assim como das sequências de  ‘este gerou aquele’.” (ibidem, p.101)

Eurídice só tem acesso às suas “teias de aranha” já idosa porque foi necessária a morte literal de seu marido (um dos antagonistas do “mal”, símbolo do patriarcado) para que a ironia dramática fosse transformada em possibilidades de vida. Quando chegamos ao plano de Fernanda Montenegro ouvindo as imagens que Guida construiu dela, os limites entre o que as personagens viveram ou não e o que nós, o público, conhecemos ou desconhecemos finalmente são borrados. Quantas vidas nossas avós poderiam ter tido se não tivessem sido invisibilizadas, seja pela rotina, seja pela história oficial de nossas famílias? Quantas vidas elas tiveram, materiais e imateriais, sem que saibamos?

Os lugares rígidos do melodrama que prendem Eurídice e Guida em uma estrutura pré-determinada pelo patriarcado são os mesmos que criam uma lacuna narrativa entre elas, que clama por preenchimento. O controle da informação, ferramenta básica de construção narrativa e de poder, é a grande questão de A Vida Invisível. No começo, quando as irmãs compartilham confidências somente entre elas e com o espectador, sabemos nós três as mesmas informações. Depois, no entanto, passamos a saber o que os personagens masculinos sabem, ou seja, mais que elas. Assim, o filme propõe o tensionamento da pedagogia moralizante que manipula vidas através de gestos tão pequenos quanto a interceptação de cartas, mas capazes de alterar destinos inteiros.

Se o controle da informação, do confinamento e da moral por trás da linhagem familiar cabe a esses homens, a essas mulheres cabe o campo do imaginário. Impossibilitadas de existirem em um mesmo plano material, elas recorrem à construção da sua própria moral através da escrita, da música, das aventuras póstumas. Espaços que não são físicos, mas são onde Eurídice e Guida tiveram toda uma vida juntas. 

Para falar do imaterial, o filme mostra o material, fazendo-nos um convite a significados extra-fílmicos. É por isso que nada mais sabemos sobre Guida após o seu rompimento com a linhagem causal familiar e paternal. Ela passa a tecer sua nova identidade como uma aranha, oferecendo perguntas em aberto em vez de dar respostas. Identidade esta que, se fixada no som e na imagem do filme, a forçaria de volta a uma linearidade. É somente por nos levar à exaustão da expectativa do encontro físico entre as irmãs (que nunca acontece) que o filme nos permite projetar os infinitos encontros imateriais não expressos, mas sim, indicados. Assim, em suspenso, as teias misteriosas de Guida se entrelaçam com as teias dos olhos de Fernanda Montenegro e com as teias dos meus.

Algumas mulheres vão sendo apagadas aos poucos, outras de uma só vez. Algumas reaparecem. Toda mulher que aparece luta contra as forças que desejam fazê-las desaparecer. Luta contra as forças que querem contar a história dela no lugar dela, ou omiti-la da história, da genealogia, dos direitos do homem, do estado de direito. A capacidade de contar sua própria história, em palavras ou imagens, já é uma vitória, já é uma revolta. (SOLNIT, Os Homens Explicam Tudo Para Mim, p. 96-97)

Por Alice Name-Bomtempo

Referências: 
BALTAR, Mariana. Realidade Lacrimosa – Diálogos entre o universo do documentário e a imaginação melodramática. 2007. Tese (Doutorado em Comunicação) – Curso de Pós Graduação em Comunicação, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 
SOLNIT, Rebecca. Os Homens Explicam Tudo Para Mim. São Paulo: Pensamento-Cultrix Ltda. 2017.