Qual história é possível pela tessitura do desejo?
Em A vida invisível (Karim Aïnouz, 2019), a história de toda uma família é engendrada por meio daquilo que busca e produz o desejo. Mas o desejo masculino. No longa-metragem de Aïnouz, adaptado do livro A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, a vida de Eurídice e Guida é, a todo momento, guiada pela ação e pela vontade dos homens ao seu redor. Seja pela repressão do pai de ambas irmãs, Manuel, que cerceia a liberdade de escolha – de parceiros, dentre outras decisões – da filha, seja na figura do marido de Eurídice, Antenor, cujas ações tentam orientar a vida da esposa para ter a maternidade como objetivo único, há uma opressão constante a partir do que é ansiado por um homem. Entretanto, conquanto esse desejo masculino – aqui considerado como uma categoria – tenha o objetivo claro de manter aquelas mulheres sob o controle dos homens, ele não possui horizontes muito amplos. Especialmente em comparação com as vontades das mulheres, que anseiam de modo mais diversificado e libertador. Destaca-se, por exemplo, o desejo de Eurídice de ir estudar piano em um outro país ou mesmo o de Guida em ir morar fora da cidade onde nasceu, enquanto Antenor não consegue traçar horizontes futuros senão ser pai, e Manuel não sabe como agir diante da crise da padaria.
As cores vibrantes que atravessam a direção de arte e o figurino de A vida invisível contrastam com a violência que perpassa todo o longa-metragem. A constituição – e a sustentação – da máxima do desejo masculino na obra de Aïnouz é mediada por ações e atitudes truculentas. Destaca-se, por exemplo, a cena da noite de núpcias de Eurídice e Antenor, a qual remete, a todo o tempo, à uma cena de estupro. Nesse contexto, o uso do lenço colocado no rosto da esposa logo no momento em que ambos entram no quarto convoca, rapidamente, à imagem de um estuprador que tenta calar e abafar gritos de uma vítima. Porém, a reação eufórica e o riso descontrolado de ambos após o contato com o pano sugere que eles possam ter baforado “loló” ou outra droga de efeito estimulante. Entretanto, a momentânea alegria não mascara a agressividade presente nesse gesto, tendo em vista que o marido em momento algum perguntara à esposa se ela desejava usar a droga. Em seguida, o marido se lança ao corpo da mulher de modo abrupto, o que é evidenciado na imagem do corpo dele sob o de Eurídice apertado dentro de uma banheira, enquanto transparece dor e desconforto no rosto da mulher.
Esse desejo irrefreável do marido de saciar a própria libido parece ser sustentado pelo fato do casamento ter acontecido, o qual, considerando o comportamento desse cônjuge, parece ser o suficiente para que ele não respeite nenhuma opinião da mulher. Essa atitude sobressai, também, na cena em que o marido, após pedir que a mulher tocasse piano, tem grande resistência a não transar sobre o instrumento, mesmo após insistentes pedidos dela. Destaca-se, também, o momento em que ele goza no corpo de Eurídice, ainda que, antes, houvesse sido alertado acerca do período fértil da esposa. O comportamento de Antenor dentro do casamento considera o estabelecimento formal dessa união como o aval para que possa agir sem considerar o que sente e o que pensa Eurídice. Nesse sentido, é emblemático o momento em que, na noite de núpcias, ele segura a mão da esposa e posiciona-a em frente ao espelho, de modo que seja visível a aliança envolvendo os dedos nas mãos de ambos, conquanto vejamos, nos olhos de Eurídice, espanto e medo. Desse modo, Antenor parece anunciar e impor o casamento como algo que está acima de tudo e anula qualquer vontade ou sentimento individual da esposa.
Em A vida invisível – e, também, no mundo extra fílmico – o corpo é o agente principal do desejo. Não por acaso, quando Guida tem o filho não planejado e na ausência paterna, sua reação inicial não é apenas deixar o filho e ir embora da maternidade logo após o parto, mas é, também, a de amarrar o ventre ferido com uma faixa e ir para um bar onde possa seduzir um homem. Nesse processo, Guida, no banheiro com um desconhecido, excita com as mãos o pênis do homem, mas não permite que ele toque seus seios ou a penetre. Logo após excitá-lo, a mulher vai embora do banheiro e deixa-o sozinho ali, enquanto ele acompanha com os olhos a mulher que vai embora. Assim, a ação de Guida é um mecanismo de produzir falta nesse outro, por meio da negação de saciar um desejo masculino, invertendo a lógica que a vida até então lhe proporcionara. Outros episódios nos quais o corpo parece se impor e colocar-se de modo contrário à ordem do desejo opressor vigente são os adoecimentos de Eurídice e da mãe de ambas as irmãs. Nesse sentido, a vontade de uma vida outra acomete Eurídice que, em um estado diagnosticado pelo médico como um episódio psicótico, pode ser compreendido, também, como um modo do corpo não mais querer se condicionar às regras da vida até então vivida. Assim, o corpo parece ser o de alguém que ali não está – e as ações por ele realizadas passam a ser incompreendidas pelos outros que perpetuam a lógica de controle masculino. A pulsão por destruir aquilo que é visível parece orientar, também, o gesto de Eurídice colocar fogo no piano e nas lembranças que sobraram da irmã.
No primeiro caso, destruir o piano não é destruir o sonho de entrar no conservatório; pelo contrário, destruí-lo é um modo de evitar que a matéria primordial a esse desejo – e visível pelos demais – possa ser esfacelada pelas mãos e pelos gestos daqueles que a oprimem, especialmente o marido. Por sua vez, queimar a foto da irmã após anos sem contato com ela não é apenas uma forma de apontar para o esquecimento da parente após ver seu túmulo duvidoso: é evitar, também, que os outros terminem de destruir a lembrança e a memória daquela que se foi e possam reconstruí-la do modo mais conveniente a eles. A reação do corpo de não prevalecer em um estado funcional – e considerado saudável pela maioria das pessoas que habitavam aquele tempo – pode ser notada, também, no adoecimento da mãe de Guida e de Eurídice nos anos seguintes ao retorno de Guida ao Rio de Janeiro. A mãe, ameaçada pelo pai Manuel de contar do retorno da irmã à Eurídice, vai adoecendo aos poucos, em um processo no qual a degradação física parece acompanhar a mental, tendo em vista que o silêncio imposto pelo marido impele um estado de culpa e angústia que é doentio.
Em A vida invisível é evidente, também, a sustentação do desejo dominante por classe e por cor. No longa-metragem, não é apenas Eurídice Gusmão que é invisível, mas, também, todas as mulheres mais pobres e negras que vivem em condições insalubres. Tal realidade transparece especialmente na condição de Filomena, que, ao adoecer, não se sente, tal como verbaliza Guida, à vontade para ir ao hospital – que não seria um lugar para os pobres. Enquanto isso, Guida tem que recorrer ao abuso do próprio corpo para que consiga morfina para aliviar o tormento daquela que ela considerava o maior laço familiar que possuía. Essa não é a primeira instância em que ambas se sentem impedidas de vivenciarem a própria vida como desejam: no dia do natal, as duas são vetadas de entrar em um restaurante famoso, conquanto houvessem se vestido de modo sofisticado e formal. Nessas cenas, é evidente como a liberdade e a possibilidade de viver a vida do modo ansiado não são limitadas apenas por questões de gênero, mas estão, também, sustentadas por elementos classistas e racistas, que renegam àquelas com menor renda desde a oportunidade de frequentar um estabelecimento comercial até a chance do acesso ao sistema de saúde. Em contrapartida, a atitude de Guida de forjar documentos após a morte de Filomena para assegurar a herança da casa concedida pela amiga-mãe-irmã é, também, um modo de reconfigurar e preservar vidas renegadas pelo Estado e pela sociedade civil. Se ambos impossibilitam ao corpo feminino, pobre e negro o direito à vida, reinventar o momento em que se morre legalmente é, também, um modo de subverter as ações das autoridades para que essas vidas não prossigam. Ao mesmo tempo, para Guida, ter uma identidade antiga enterrada e assumir o nome e a vida em outro corpo é transgredir o modo de viver que fora esperado, especialmente pelo seus pais, para Ana Margarida Gusmão. No longa-metragem de Aïnouz, a morte – talvez por se sustentar por aquilo que não é visível – é o instrumento que possibilita a reinvenção e a escritura de uma história outra. É vendo a cadeira vazia ao lado de Eurídice já idosa, em uma das cenas finais do filme, que temos conhecimento de uma das frases deixada em uma das cartas enviadas pela irmã – e nunca entregue – sobre a certeza de que ambas se reencontrariam e viveriam uma vida inteira. Na cadeira vazia, Guida não é visível; é na ausência do seu corpo, porém, que a liberdade e um futuro outro se fazem presentes. É no corpo que já não mais pode ser controlado ou subjugado que uma vida outra tem condições de surgir e vigorar.