Os últimos românticos de Tiradentes – Notas sobre os curtas “Looping”, “Os últimos românticos do mundo” e “Babi & Elvis”

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

 

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
(Eugénio de Andrade)¹
Como nos enganamos fugindo ao amor!
(Carlos Drummond de Andrade)²

Passada a Mostra de Tiradentes, alguns dos filmes vistos nessa maratona saltam à memória e se aglutinam por afinidades específicas – seja por temáticas ou recursos estéticos em comum. Neste ensaio, pretendo aproximar três curtas bem diversos, afastados pela curadoria em sessões e mostras diferentes, mas que se alinham pela forma como se permitem afetar pelo romantismo de suas personagens. Todas elas são pessoas LGBTQ que reivindicam, para si, o amor romântico enquanto possibilidade de vivência, mergulhando de corpo e alma em um imaginário comumente atrelado à heteronormatividade para ressignificá-lo, junto com os respectivos dispositivos fílmicos aos quais estão atreladas. Refiro-me aos filmes Looping (2019, Maick Hannder, exibido na Mostra Panorama 1), Os últimos românticos do mundo (2020, Henrique Arruda, exibido na Mostra Panorama 4), e Babi & Elvis (2019, Mariana Borges, exibido na Mostra Foco Minas 2).

Comecemos pelo início: o primeiro amor. Ao conhecer um rapaz com um sorriso que faz seu coração parar, o protagonista de Looping vive sua primeira paixão e passa a entender todas as músicas, livros e filmes. Na narração confessional em primeira pessoa, ele nos diz que chegou atrasado “nesse lance de gostar de alguém” e que não está sabendo lidar com a situação – ainda que, em sua auto-reflexividade, ele declare ter consciência de ser “jovem demais”. Há um tom ingênuo e deslumbrado perpassando seu discurso, e um desejo de viver intensamente essas emoções aqui, agora, e para sempre: “Eu quero fazer tudo com ele, eu quero viajar com ele, eu quero dançar com ele, quero ir em todos os shows e comer todas as comidas do mundo inteiro com ele.” Seu texto fala de desejos, utopias, sonhos e inseguranças a partir dos encontros com o menino mais lindo que já viu, tentando eternizar, de alguma maneira, aqueles instantes.

Para isso, o filme se utiliza de um dispositivo visual bastante particular: ele é (quase) inteiramente constituído de fotografias analógicas em janela vertical, feitas pelo sistema estereoscópico de uma câmera Nishika N9000. Na montagem, o que vemos é um efeito de looping que remete ao título do filme: é como se cada “plano” fosse composto por quatro fotografias de um mesmo instante que se alternam e repetem, indo e vindo no espaço-tempo com sutis alterações angulares, 1-2-3-4-3-2-1-2-3-4-3-2… até que surge um novo instante com mais quatro fotos, e outro, e outro. Na era do Instagram, esse efeito remete diretamente ao recurso do bumerangue, ou talvez a um gif, só que realizado com uma câmera analógica “de verdade”, com quatro lentes e um flash poderoso, o que confere uma textura diferente daqueles filtros digitais que proliferam nos aplicativos de hoje, emulando imagens “antigas”.

Junto desse aparato técnico importado da virada dos anos 80/90, a direção de arte nos transporta, também, a um universo dos filmes e séries adolescentes norte-americanos dessa mesma época, com parque de diversões, algodão doce, jaquetas jeans e postos de gasolina. Nesse sentido, é interessante como a narração, com seu jeitinho lânguido e palavras bem mastigadas, também traz imagens que não apenas complementam essa iconografia, mas nos transmitem sensações bastante físicas, como a língua com gosto de menta, as mãos suadas, o cheiro de mofo do motel barato. Nunca vemos o corpo do protagonista, mas vemos as fotos que ele supostamente fez ou desejaria ter feito, ou imaginou… Ao longo da projeção, ele vai se abrindo para nós, rasgando sua intimidade até o ápice da paixão, na hora do sexo, quando sua narração praticamente se transforma num conto erótico gay, repleto de detalhes sensoriais: “ele acaricia meu cabelo enquanto chupo seu pau mais e mais fundo.” 

Com esses elementos, o filme nos aproxima do desespero juvenil de querer abraçar o mundo na fugacidade do presente, tentando congelar o tempo ao condensar passado e futuro com imagens que vão e voltam, vão e voltam. Looping achata uma textura de ontem com um movimento do/pro futuro, avançando devagar, na contramão do tempo acelerado do contemporâneo. Com medo de passar pela juventude sem tê-la vivido com todo o furor, com medo de envelhecer e não mais encontrar a paixão, com medo de perder aquela imagem-momento que já passou. Como diz a narração: “Tento guardar cada pedaço, cada segundo com você.” 

Os personagens de Os últimos românticos do mundo não são muito diferentes. Aliás, eles parecem materializar, em suas trajetórias, os desejos do narrador de Looping. Imagino uma espécie de continuação, mostrando o que teria acontecido no futuro, caso o mundo estivesse acabando e aquele garoto seguisse tentando viver seu romantismo. Assim como no filme de Hannder, o de Arruda também flerta com o imaginário oitentista, só que de outras maneiras. A narrativa segue uma estrutura não-linear, espiralada, acompanhando o casal Pedro e Miguel à deriva no apocalipse. Eles embarcam em um road movie tintado em neon, uma aventura alucinante em vaporwave, abusando do rosa, roxo, azul, sintetizadores, perucas e até mesmo um carro conversível vermelho, tudo muito artificioso e com referências a Blade Runner (1982, Ridley Scott), Thelma & Louise (1991, Ridley Scott), Flashdance (1983, Adrian Lyne), Total Eclipse of The Heart (1983, Bonnie Tyler), A Lagoa Azul (1980, Randal Kleiser), entre outras tantas obras. Esse imaginário é trazido através de citações na encenação, da alusão a uma linguagem televisiva e videoclíptica, e também de legendas gráficas com diagramação e tipografia que remetem diretamente a programas antigos da MTV e Sessão da Tarde.

Ao revisitar esse repertório audiovisual inscrevendo novas possibilidades de romantismos queer, o filme inventa uma memória até então inexistente na cultura pop daquela época. Os protagonistas Pedro e Miguel falam de amor, praticam o amor, militam pelo amor, espalham lambes pelas ruínas da cidade onde se lê “AMEM-SE”. Para eles, é necessário amar urgentemente, agora! Afinal, o mundo está acabando. Os últimos românticos do mundo é um manifesto para os próximos habitantes do planeta, que resgata a iconografia de um passado (recente) das imagens com a gostosa e doída sensação de nostalgia, daquelas que apertam o peito enquanto sorrimos com lágrimas nos olhos.

Diferente de um senso comum que entende a nostalgia por um viés regressivo ou paralisante, Angela Prysthon (2014) propõe pensarmos a nostalgia enquanto postura subversiva no contemporâneo. Tal qual o gesto deslizante desses filmes, que passeiam frivolamente pelas referências oitentistas mesmo sem que os realizadores e seus personagens tenham vivido os anos 80, a autora comenta da absoluta irrelevância da ideia de autenticidade histórica quando determinada forma ou fato do passado são evocados dentro dessa lógica:

Os artefatos desta cultura e a sociabilidade sugerida pelo seu consumo revelam não necessariamente uma memória direta dos acontecimentos referidos ou a familiaridade com o repertório citado, o que importa é sobretudo o afeto – seja por algo que foi efetivamente vivido ou por algo que esses jovens gostariam de ter vivido. A nostalgia então funcionaria não tanto como comentário sobre o passado, mas como reação criativa ao presente, como articulação às vezes intensamente subversiva do sentimento de inadequação ou deslocamento em relação ao aqui e ao agora. (Prysthon, 2014, p. 15)

Prysthon propõe pensarmos a articulação insistente da nostalgia como “uma espécie de projeção do passado para frente, como um paradoxo espaço-temporal que condensa passado e futuro, memória e desejo, nostalgia e utopia.” (ibidem) Seguindo o raciocínio da autora, podemos observar que a história de Os últimos românticos do mundo se passa em um 2050 com aparência de 1980, apontando para uma existência posterior, mesmo que em outro planeta. Isso se reflete em falas como a da personagem Cindy Vina, ao profetizar que “A próxima geração que nascer vai ser toda de sapatão, trava, trans… e tem mais: quando se cortar, não vai sair sangue, não. Vai jorrar glitter!” Ou durante o pedido de casamento, quando Pedro pergunta se Miguel aceita montar uma civilização nova, toda cor de rosa, lá em Marte, depois que o mundo acabar. Nota-se um direcionamento esperançoso para o futuro e, mesmo com a certeza de estarem vivendo tempos difíceis no presente, os personagens sabem que, quando estiverem no futuro, lembrarão desse passado com carinho. 

Assim, a nostalgia se configura como uma temporalidade ambígua, como uma dimensão paralela da memória (Prysthon, idem, p.16), que se complexifica ainda mais nos minutos finais, quando vemos o casal protagonista em corpos idosos vivendo as mesmas situações que acabamos de presenciar em corpos jovens, com os mesmos figurinos, cenários e enquadramentos. Qual seria a temporalidade “correta”? Com que idade eles teriam vivido tudo aquilo? Essas perguntas não se respondem objetivamente; ao invés disso, potencializam a estranha temporalidade do filme, habitando esse espaço futuro da nostalgia por meio do desejo dos personagens de viverem felizes para sempre uma vida de amor e romantismo.

Babi & Elvis, por sua vez, registra esse imaginário romântico materializando-se em corpos não-normativos em uma situação do mundo “real”, da forma como lhes é possível. Trata-se de um documentário realizado por Mariana Borges com uma equipe reduzidíssima: ela própria assina roteiro, produção, direção, fotografia, som e montagem. Basicamente, sua câmera acompanha algumas horas na vida de Bárbara Vieira, a Babi, uma mulher trans negra e de origem pobre em um dia especial: seu casamento. E é “só” isso. A princípio, poderíamos pensar que esse evento ocorreria de qualquer jeito sem a presença do cinema. Babi se casaria, é verdade. Porém, pelo que vamos descobrindo ao longo do curta, provavelmente, ela não teria condições financeiras de contratar uma equipe de filmagem para acompanhá-la, e, se considerarmos que estamos vivendo um contexto em que a indústria do casamento se consolidou como um negócio bilionário, a feitura desse filme se coloca como uma fissura nesse sistema.

Mais que uma atitude meramente caridosa, a realizadora se torna partícipe do evento, e consegue aproveitar toda a mise en scène construída ao redor de Babi para seu projeto, transitando fluidamente entre a etnografia, a filmagem doméstica amadora e a linguagem publicitária-institucional dos vídeos de casamento. Vemos a expectativa da noiva ao se arrumar, ela grava um recado para o noivo, chegam os convidados, ocorre a cerimônia, o beijo, as alianças, a festa, o buquê, as pessoas bêbadas e fim. Nada mais prosaico, nada mais trivial e, por isso mesmo, extraordinário.

Assistimos, então, o tão sonhado dia de princesa acontecendo do jeito que lhe é possível e vamos, aos poucos, conhecendo aquela mulher junto com seu universo. O filme não “explica” ao espectador quem exatamente é Babi; o pouco que sabemos é sobre como ela conheceu Elvis, a partir de um relato da própria noiva: ela estava sendo agredida, e ele a defendeu. Ela perguntou o que ele queria com “uma bicha preta, velha, sem dente, feia, nojenta”, e ele respondeu: “eu quero você”. Foram morar juntos, casaram no papel e, naquele dia da filmagem, fizeram a cerimônia no Bar do Fernando. Esse espaço de festas improvisado é um bar-karaokê da região central de Belo Horizonte com o qual Babi se relaciona com intimidade: o boteco parece sua casa, e a rua o seu quintal, repleto de amigos queridos que ali se reuniram para celebrar o importante rito de passagem em sua vida. 

Nesse sentido, é curioso como a câmera e os convidados pouco se interessam por Elvis, o noivo. Há um plano sintomático, quando Babi vai jogar o buquê, e ela literalmente empurra o noivo para fora de quadro, como se dissesse com sua linguagem corporal: “este momento é meu!” A personagem quer desfrutar cada segundo desse estranho ritual construído pela heteronormatividade e tido pelo senso comum como único e mágico. Babi & Elvis é menos sobre duas pessoas que decidem viver juntas até que a morte os separe, e mais sobre a apropriação de um imaginário romântico por corpos que foram historicamente excluídos dele. Babi reivindica para si a possibilidade de ser uma noiva, de dançar coladinha com seu marido, ao som de uma música em que o eu-lírico diz à sua amada que vai “Te dar o carinho que você merece ter”, pois “Ninguém jamais te amou como eu.” Tal qual nos outros curtas analisados acima, este também resgata o romantismo de um passado da cultura popular, principalmente através das músicas, como nessa de Guilherme Arantes, cantada no karaokê, junto com outras mais recentes que embalam a cerimônia.

E, na exibição do dia 26 de janeiro, o conto de fadas extrapolou o cinema devido à presença de Babi em Tiradentes. Ela apresentou o filme como um momento muito especial de sua vida e, ao final da sessão, depois de calorosos aplausos e gritinhos, foi interessante observar o público indo até a noiva cumprimentá-la e pedir autógrafos. Esses abraços e palavras de carinho eram diferentes dos cumprimentos aos realizadores dos outros filmes; os gestos pareciam mais com os que haviam sido projetados minutos antes, na tela do cinema. Babi estava sendo cumprimentada – com algum atraso – pelo seu casamento ocorrido meses atrás, atualizado naquela tarde ensolarada de domingo. 

Foto por Jackson Romanelli/Universo Produção

Em entrevista à TV Mostra (mídia oficial da mostra), Babi declarou: “Eu estou em estado de choque, até agora, com tudo isso. Porque a gente é tão discriminada, a gente é tão atacada. E, de repente, você se vê num mundo onde todo mundo te olha com outros olhos, te dando parabéns, falando que você brilhou, sabe?” Mesmo com todas as contradições e assimetrias dessa bolha, encerro este texto com a ambígua e saudosa sensação nostálgica de tudo o que foi visto, vivido e discutido na 23ª Mostra de Tiradentes. Ao invés de lamentar o fato de o mundo aqui fora não ser exatamente como no parque de diversões cinematográficas montado na cidade histórica mineira, Babi afirma: “isso dá uma força pra gente continuar a caminhar, (…) a gente pode ser feliz sendo o que a gente é.” Seguindo o sentimento de Babi, parafraseio Prysthon (idem, p. 16), na esperança de que as centelhas de imaginação refletidas nesses filmes possam mobilizar afetos transgressores e penetrantes, capazes de desvelar promessas de beleza.

Por Vitor Medeiros
Notas:
1 – Trecho do poema É urgente o amor.
2 – Verso extraído do poema “Reconhecimento do amor”. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Amar se aprende amando: poesia de convívio e de humor. Rio de Janeiro: Record, 1985. 
Referência:
PRYSTHON, Angela. Utopias da frivolidade: ensaios sobre cultura pop e cinema. Org: BARBOSA, André Antônio. Recife: Cesárea, 2014.