A roteirista italiana Suso Cechi D’Amico1 sentenciou em uma de suas raras entrevistas: “um escritor precisa encontrar palavras para descrever o mundo, enquanto um roteirista precisa inventar imagens” (AMICO, 1999). Nada mais exato para definir o nosso ofício. Nossa linguagem é cinematográfica e não literária. É através das imagens que vamos construir nossas narrativas e movimentar a percepção do espectador. A afirmação de D’Amico é precisa, mas ao mesmo tempo serve de gatilho para tratarmos de uma questão relacionada à própria ontologia do roteiro, um problema inerente ao texto do qual nós, roteiristas, nunca escapamos: precisamos de palavras para descrever imagens. Afinal, um roteiro não é uma sucessão de fotografias ou de desenhos. Eliseo Altunaga2 reflete sobre esta situação ressaltando que o roteirista tem como primeiro problema a enfrentar o próprio instrumento de trabalho, a própria palavra: “Há uma disjunção do instrumento que ele [o roteirista] usa e o propósito desse instrumento. O conceito da palavra é muito problemático. […] a palavra não é um objeto, mas alude a um objeto que tem uma constituição muito diferente” (ROJAS, 2018, p. 76).
Tal particularidade da escrita cinematográfica é pouco explorada na maioria dos chamados “manuais de roteiro”, sobretudo, nos manuais ou livros de roteiro publicados, aqui, no Brasil. Alguns autores tratam o tema da escrita de forma resumida, destacando regras básicas como: escrever no presente, escrever em terceira pessoa, não colocar indicações de câmera, não escrever o que não pode ser traduzido audiovisualmente. Outros autores acrescentam a essas regras uma restrição à linguagem literária. Em Prática do roteiro cinematográfico (1996), Carrière é taxativo: “(…) essa linguagem literária deve ser rejeitada logo de início, pois usa uma máscara estreita e enganadora” (CARRIÉRE, 1996, 12), mas não simplifica a escrita do texto cinematográfico:
A “escrita” do roteiro (“escrita” é uma palavra perigosa que é preferível utilizar nesse caso com a prudência das aspas) é pois uma escrita específica. (…). Escrita de passagem, de transição, destinada a leitores rarefeitos e parcialmente atentos, dos quais é o guia indispensável, talvez seja, por todas essas razões, e pelo próprio fato de sua discrição, sua humildade e desaparecimento próximo, a mais difícil de todas as escritas conhecidas.
Porque ela deve continuamente desconfiar de si própria, de suas tendências, de seus excessos, da miragem-literatura. (CARRIÈRE, 1996, p.13)
Em Story: substância, estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiros (2002), Robert Mckee faz questão de detalhar suas restrições, como, por exemplo, quanto à utilização das figuras de linguagem: “[o roteirista] não pode usar metáfora e símile, assonância e aliteração, ritmo e rima, sinédoque e metonímia, hipérbole e mesóclise, os grandes tropos. Ao invés disso, seu trabalho deve conter toda a substância da literatura, mas sem ser literário” (MCKEE, 2006, p. 368). Mckee também aconselha a não utilização de verbos e de substantivos genéricos, e também a não utilização de advérbios, adjetivos ou termos abstratos.
Essas séries de indicações, regras ou mesmo restrições são eficientes porque moldam uma determinada escrita audiovisual, balizam o ofício do roteirista, mas deixam de lado possíveis nuances da escrita. Não abordam como uma escrita diferenciada influencia a apreensão do texto, como pode impactar a leitura e, consequentemente, a própria composição de dramaturgia. Assim, nosso conhecimento sobre escritas diversas, singulares, mais distantes do padrão Master Scene3, é construído muito mais a partir da leitura de outros roteiros ao longo da nossa trajetória profissional e através da nossa própria escrita cinematográfica.
Ao longo das últimas décadas, a hegemonia dos manuais norte-americanos, editados em várias partes do mundo, arrefeceu uma maior reflexão/discussão/olhar sobre a escrita, sobre a linguagem do roteiro no próprio meio cinematográfico. No Brasil, podemos ver esse tema surgir de forma intermitente em eventos voltados ao roteiro ou ainda em entrevistas e palestras com roteiristas. No livro Palavra do roteirista (2015), de Lucas Paraizo, por exemplo, alguns entrevistados abordam o assunto, revelando pontos de vista muito particulares sobre a própria escrita cinematográfica.
Mais recentemente, na última década, essa discussão ganhou força no ambiente acadêmico, com o chamado screenwriting studies: campo de estudos sobre roteiro o qual se destaca com um número considerável de pesquisas, publicações de artigos e livros, eventos e uma rede de pesquisa4 composta por roteiristas e teóricos de importantes universidades. Dentre os nomes mais conhecidos, destaco, aqui, os ingleses Steven Price e Ian McDonald, e o australiano Steven Maras. Importante notar que muitas dessas pesquisas acabam por resgatar e trazer para o debate atual referências fundamentais de outros teóricos como, por exemplo, Claudia Sternberg5 (1997) e Margareth Mehring6 (1990).
Em A History of the screenplay (2013), Steven Price traz, ainda que com ressalvas, o estudo de Sternberg para problematizar a questão da escrita cinematográfica. Em Written for the scene: the american movie-picture screenplay as a text (1997), a autora alemã propõe dividir a rubrica de ação do roteiro em três modos distintos. A saber: modo descrição, modo relato e modo comentário. O modo descrição se refere ao ato de descrever o aspecto exterior das coisas e dos seres: ambientes, lugares, objetos, animais, pessoas. É tendencialmente estático e proporciona momentos de suspensão temporal, pausas na progressão dos eventos. Tem função de prorrogação e também pode contribuir para o chamado “efeito do real”, quanto mais detalhada uma descrição, maior a impressão de realidade. O modo relato (ou narração) pode ser definido como oposto à descrição na medida em que faz progredir o tempo. É o modo que se refere às ações dos seres humanos, ações e eventos com consequências dramáticas. A díade descrição/narração está sempre entrelaçada. O modo comentário é modo que traz uma interpretação ou adição àquilo que se vê ou ouve e é o modo mais polêmico já que pode comprometer a equivalência temporal do roteiro.
Sternberg traz como exemplo central para esta investigação o roteiro de Cidadão Kane (1941), obviamente fora do padrão atual Master Scene, apresentando ainda uma série de indicações de direção, de movimentos de câmera, etc. Ao longo de 214 páginas, os roteiristas Herman Mankiewcz e Orson Welles alternam o modo comentário com os modos descrição e narração sem abrir mão da clareza e da precisão necessária para escrita cinematográfica. Os inúmeros comentários são de toda ordem: tanto informativos, indicando formas de produção e de mise-en-scène das cenas, como “mais literários” explicitando, vez ou outra, um narrador onisciente que não se atém apenas ao presente, mas que domina a história por diversos ângulos e que também pontua estados de ânimo ou d’alma dos personagens, conflitos internos, destaca costumes, hábitos, resume percepções e eventos. Ainda que traga o estudo de Sternberg para o centro do debate, Price vê com ressalvas a escolha do roteiro de Mankiewcz e Welles por se tratar de um exemplo extremo de um “uso muito literário do modo comentário” e por não ilustrar com precisão como tal modo funciona nos roteiros de maneira geral. Price também destaca o fato de Welles ser um dos roteiristas e também o diretor do filme o que traria uma maior liberdade para a escrita (“um estilo que fosse apropriado para ele próprio como leitor”).
A fim de problematizar as ressalvas de Price, proponho aqui olhar para um roteiro produzido em uma outra configuração. Ainda dentro do ambiente cinematográfico, mais especificamente, dentro do cinema contemporâneo brasileiro, trago para o debate o roteiro do filme Abismo Prateado (2010), escrito por Beatriz Bracher7 e dirigido por Karim Aïnouz. O filme conta a história de Violeta, dentista, moradora do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Casada há 14 anos, a protagonista perde o rumo ao receber uma mensagem de voz do marido Djalma dizendo que vai embora para nunca mais voltar. Assim, Violeta se torna um personagem à deriva, perambulando pela cidade, entre a busca de uma explicação que nunca chegará e a tentativa fracassada de um reencontro com o marido. Diante do desafio de compor uma narrativa onde a protagonista interage de forma preponderante com o espaço e de forma pontual com outros personagens da história, Bracher intercala habilmente os três modos expostos por Sternberg. Explora o modo descrição criando momentos de suspensão e de “efeito do real”, não se priva de comentários pontuais ou de uma composição frasal mais poética. Em entrevista, Aïnouz destaca como a escrita literária do roteiro acabou influenciando seu processo criativo como diretor:
O roteiro era “todo escrito”, né? […]. O roteiro era muito escrito. A Bia é uma autora literária. Então, ele era muito mais escrito até do que um roteiro tradicional, onde você só tem descrição de ação – aquele roteiro seco assim: “Fulano senta, Fulano levanta, Fulano olha para trás”. Era um roteiro muito mais literário do que um roteiro clássico nesse sentido e, ao mesmo tempo, era um roteiro que por ser mais literário te dava muito mais liberdade (AÏNOUZ, 2013).
Para Aïnouz, a escrita literária não estaria em desacordo ou restringiria o processo criativo audiovisual, mas sim funcionaria como um dispositivo para recriação. Ao longo do roteiro, quando as ações do personagem se transformam em ações menos consequentes, no sentido dramático, Bracher utiliza rubricas mais literárias, ambíguas ou indicativas (mais próximas de um roteiro documental). Na cena 56, por exemplo, é possível visualizar como a roteirista descreve um dos momentos em suspensão da protagonista:
INT. AEROPORTO SANTOS DUMONT/SAGUÃO – NOITE 56
Violeta, com seu olho inchado, o curativo, as mãos enfaixadas, está sentada na cadeira do saguão no piso térreo do aeroporto.
Sua mala está na cadeira ao lado. O aeroporto bastante vazio. Ela é uma figura sozinha.
Apalpa devagar a região inchada de seu rosto. Afasta a cutícula das unhas. Tudo muito lentamente, com pausa entre as ações. Passa os dentes em seus lábios enquanto tira os sapatos. Abre e fecha os dedos dos pés. Coloca novamente os sapatos.
Abre a sacola e arruma melhor os objetos e roupas que ela jogou ali dentro, apressadamente, antes de sair de casa.
Tira da mala seu casaco e veste-o, aquecendo-se do frio do ar-condicionado do aeroporto (BRACHER, 2010).
Para além das ações mínimas e detalhadas que dilatam a cena, há ainda um breve comentário: “Ela é uma figura sozinha”. Uma aparente reiteração de toda a situação dramática, mas que marca a presença de um narrador e abre possibilidades de interpretação (as diversas formas de representar, de revelar uma mulher sozinha, em um aeroporto vazio). Ao mesmo tempo em que a roteirista faz um comentário sobre o personagem (extrapolando sua escrita neutra), abre também a possibilidade de interpretação para o diretor. O jogo se amplia. Como defende Pier Paolo Pasolini, o roteiro encaminha o leitor a um filme que está por ser construído: “[…] o autor de um roteiro pede ao seu destinatário uma colaboração particular: a de levar ao texto uma completude visual que ele não tem, mas na qual ele sugere” (PASOLINI, 1986, p. 2).8
Ainda que pontualmente (de forma mais comedida, comparada ao roteiro de Manckiewz e Welles), Bracher não abre mão de uma linguagem conotativa criando uma determinada atmosfera para narrativa, compondo efeitos diversos no texto e consequentemente no leitor. A alternância entre as linguagens denotativa e conotativa é uma das principais reivindicações dos teóricos que se debruçam sobre a escrita cinematográfica. Margareth Mehring defende: “Roteiros são combinação de prosa e poesia (…). Sua finalidade é fornecer instruções específicas e, ao mesmo tempo, extrair respostas emocionais e imagens” (MEHRING, 1990, p. 238)9. Steven Maras propõe um equilíbrio entre linguagem técnica e poética, uma combinação ideal para o roteiro o mais eficiente possível para todos envolvidos na produção. Para o teórico, detalhes poéticos muitas vezes podem funcionar de forma técnica: “Um diretor de iluminação, por exemplo, pode encontrar alguma parte evocativa da poesia do roteiro crucial na iluminação de uma cena” (MARAS, 2009, p. 73)10.
Nesse exercício de cotejamento entre os roteiros e seus respectivos processos criativos e relações autorais, vale atentar que o roteiro de Abismo Prateado, circunscrito a um cinema mais “autoral”, estaria inevitavelmente sob a influência e a interferência mais direta do próprio diretor (ainda que ele não seja o primeiro autor do texto) e, assim, devido às próprias configurações de produção, um texto mais passível de mudanças ao longo de todo o processo. Esta poderia ainda ser uma ressalva proposta por Steven Price. Desta forma, proponho um novo e último deslocamento: do cinema para produção televisiva. De um longa-metragem para uma série de tv.
Em 2017, a HBO lançou a série de ficção Big Little Lies, baseada no romance homônimo da australiana Liane Moriarty, escrita por David E. Kelley e dirigida por Jean-Marc Vallée. Kelley, roteirista de sucessos como Ally McBeal e L.A. Law, utiliza o mesmo expediente de Bracher, Welles e Manckiewz para compor a rubrica de ação: alterna explicitamente os três modos destacados por Sternberg, como podemos ver nestas duas cenas do primeiro episódio:
123 INT. JANE’S TOWNHOUSE – CONTINUOUS
(…)
Ela não deixa a mãe terminar, desliga novamente. Parece que se sente melhor agora. Nós amamos essa garota. Ela caminha para o sofá, puxa um sofá-cama. Senta nele um pouco, então sobe e desaparece no único quarto da casa.
124 INT. QUARTO DE ZIGGY – NOITE
ZIGGY ESTÁ DORMINDO lá quando Jane olha para ele. Mesmo que esteja escuro, não podemos deixar de ser tocados pelo que vemos: as cores, os pôsteres nas paredes, os brinquedos, os móveis novos, o quarto dos sonhos de um garoto de seis anos. Agora, nós realmente amamos essa garota.
Há uma certa magia em Ziggy enquanto ele dorme. Toda sua inocência vem à tona. Dói pensar que esse doce e sensível menino um dia se tornará aquela coisa de homem com peito largo e bigode.
Jane gentilmente sobe na cama, fica ao lado dele. Estuda esse rostinho, contando as sardas. E ela não pode deixar de pensar um pouco. Ele poderia ter feito isso? Alguém realmente conhece seu filho? Depois de tudo … ela então sacode a idéia da cabeça: “não pense nisso”.
Quase na hora, os olhos de Ziggy se abrem e ele está olhando para ela. Dentro dela.
Nas duas cenas acima, destaco, inicialmente, a presença de um narrador em primeira pessoa: “Nós amamos essa garota” (cena 123); “Agora, nós realmente amamos essa garota” (Cena 124). A escolha apaga a neutralidade da escrita cinematográfica. É um narrador que contamina de forma explícita nossa percepção sobre o personagem (nós, leitores, somos cooptados pelo narrador). A primeira frase “Nós amamos essa garota” é uma resposta ao fato de Jane ter ligado para mãe para pedir desculpas (em uma cena anterior, Jane havia se irritado com a insistente intromissão materna e desligado intempestivamente). A segunda frase “Agora, nós realmente amamos essa garota” se revela eficiente tanto no nível da ação quanto da linguagem. Em termos de ação, faz uma ligação com dois eventos anteriores à cena 124: primeiro, se vincula com a cena em que a sala do apartamento de Jane é descrita (ela dorme em um sofá-cama, enquanto o filho tem um quarto acolhedor e bem decorado); segundo, com a ação de Jane pedir desculpas à mãe. Assim, depois de vermos Jane pedindo desculpas e, em seguida, descobrirmos que ela investe tudo o que tem no quarto do filho, só “nos” resta concluir: “Agora, nós realmente amamos essa garota”. Através dessa segunda frase, Kelley interliga três cenas a fim de iluminar quem é Jane e o que nós (narrador e leitores) devemos sentir por ela. E faz isso acrescentando apenas duas palavras à primeira frase, revelando um cuidado estilístico, estético. Através de uma mesma frase, Kelley explicita o objetivo dramático da própria cenografia, o acúmulo de informações, uma conclusão, e também traz uma fluidez para o texto ao mesmo tempo em que cria a impressão de que estamos participando do processo mental do narrador.
David E. Kelley não se constrange de descrever o estado d’alma do personagem e também de tecer seus próprios comentários. Há uma espécie de entrelaçamento de percepções (narrador – personagem) que direciona a leitura do roteiro e também desenha o ritmo, o tempo das cenas. A cena 124, em que Jane observa Ziggy dormindo, poderia simplesmente ser descrita em uma ou duas linhas, mas nas mãos de Kelley acaba ganhando volume dramático, emocional, compõe uma atmosfera específica e traz, assim, informações mais detalhadas para os atores e para direção. Estaria Kelley sob a influência direta da narrativa literária de Moriarty ou mesmo incorporando parte desta narrativa no roteiro da série? É possível. Seja qual for a medida do contágio, o que importa é observar como o roteirista compôs uma escrita que contribui para tornar o roteiro ainda mais eficiente para esta narrativa em particular.
Ao decompor a prosa do roteiro e esmiuçar seus possíveis modos, Sternberg propõe uma forma de complexificar e potencializar a escrita de um texto que se configura inequivocamente entre a arte e a técnica. Um caminho (não o único, obviamente) que pode nos ajudar a pensar em uma escrita cinematográfica (audiovisual) muito mais atrelada à ideia da narrativa em si, às especificidades da história e do conceito artístico da obra, às formas de realização do que a qualquer regra pré-estabelecida. Não haveria nessa proposição uma demanda compulsória por uma escrita artístico-literária, mas sim por uma escrita mais maleável que – exatamente por ser mais porosa, menos restrita – construiria uma narrativa precisa e potente, uma narrativa capaz de mobilizar no leitor de roteiro um maior número de percepções e emoções.
Por Cristina Gomes