Sessão 1 – Nós da Terra

Nota da curadoria:
Na Sessão 1 (“Nós da Terra”) da Mostra de Cinema Moventes, a ancestralidade e a resistência indígena assumem três percursos bastante próprios e dialógicos nestes filmes. Partindo de uma narrativa de luta pelo direito à terra com Ka’a zar Ukyze Wà – Os Donos da Floresta em Perigo, passamos por uma sequência teatralizada em O verbo se fez carne e terminamos com um documentário sobre o ritual de dias de encenação de um mito Maxakali em Yãmiyhex – As Mulheres-Espírito. O confronto com a violência imposta pelo homem branco colonizador é expressada tanto na prática de reavivar memórias pessoais quanto coletiva, ritualisticamente: somos confrontados com um mundo sem divisão entre terra, seres e espíritos. “Pertencer à terra, ao invés de possuí-la”.

***

A potência do protagonismo dos corpos originários
por Graciela Guarani

Na perspectiva de repensar um cinema pluridiverso, atravessado por olhares polifônicos, como propõe a Mostra de Cinema Moventes, é necessário abrirmos um leque de diálogo, escuta, fala e naturalização para as manifestações dos corpos periféricos, corpos negros, corpos originários, corpos que criam história e fazem de suas artes fronte para desconstruir imaginários e estigmas negativos e violentos, perpetuados há tempos por um sistema opressor individualista e suicida. Cada vez mais a urgência e necessidade de se abrir um diálogo para ampliar o entendimento da presença de corpos plurais no cinema se intensifica, à medida que esses grupos compreendem a falência do sistema, sistema esse que se orgulha de sua arrogância e glória ao submeter ao apagamento diversas culturas para legitimar a sua maneira e significado de “humanidade”.

A mesa “Nós da Terra” emerge no sentido de trazer a discussão da ancestralidade em pauta. Mas, para além deste pertencimento, vale pontuar como esta dita ancestralidade não dialoga com a universalidade de corpos contemporâneos, pois nota-se que não há uma ação no sentido de fomentar ou instigar as trocas de saberes diversos entre as várias ancestralidades, sendo que o princípio de todas é a tentativa de seus fortalecimentos.

Partindo de um lugar de fala ancestral e originário, percebo a dificuldade que se tem de visibilizar questões que são consideradas de nicho ou de respectivos segmentos, mas que a ação e reação afeta todos os indivíduos. Por exemplo, quando se discute a importância de uma narrativa que defende a floresta ou a manutenção de sua vida, não é de interesse somente dos povos originários; porém não se vê um envolvimento e engajamento de naturalizar o debate em meio a assuntos com sujeitos “universais”, enquanto o mesmo é amplamente instigado em ambientes e meio onde os sujeitos são categorizados, ou seja, não universais.

Durante a discussão da mesa, percebe-se a potência que existe nas produções e protagonismo dos corpos originários presentes, temáticas urgentes e necessárias que partem desde o cuidado com modos de viver e estar neste mundo, através da ótica de povos que defendem a vida, e toda uma forma de respeito com tudo que é vivo, desde o visível até o invisível, temática esta que é presente no filme Ka’a zar Ukyze Wà – Os Donos da Floresta em Perigo (2019), de Flay Guajajara, Erisvan Guajajara e Edivan Guajajara (MA). 

Ponderações importantes presentes também como a falta de acesso e entradas para realização e manutenção das produções e como o racismo estrutural dificulta a sobrevivência destas narrativas. Por outro lado, estas narrativas a todo momento entram em embate com esta estrutura, através do empoderamento, da força e resistência de suas culturas, modos e ancestralidades, assim como no filme Yãmĩyhex – As Mulheres-Espírito (2020), de Isael Maxakali e Sueli Maxakali. 

O corpo contemporâneo originário vem com toda a força e dialoga constantemente maneiras de antropofagir éticas de coexistir em um tempo circular ancestral, porém ainda assim contemporâneo. O corpo originário contemporâneo cada vez mais se faz presente no cinema, desconstruindo e construindo imaginários e demarcando as telas com seu corpo político, assim como o filme O verbo se fez carne (2020), de Ziel Karapotó.

Por fim, aqui trago um desafio/convite para todos: precisamos ver o cinema com possibilidades de imaginários possíveis e impossíveis. Tornar impossível é pensar numa infinidade de outros modos, especificidades, tempos e narrativas sobreviventes que possam emergir também como potência que são.    

***

Vy’a renda – A Festa do Cinema
por Alberto Alvares Guarani

Atualmente para nós, cineastas indígenas, o cinema é uma ferramenta de luta pelo direito, reconhecimento e valorização do nosso modo de viver. A mídia, na maioria das vezes, nos projeta de forma estereotipada e romantizada.

Porém, quando invertemos o ponto de vista da câmera e produzimos nosso próprio registro, transmitimos ao mundo nosso olhar. Deixamos de ser “caça”, e nos tornamos caçadores da nossa própria história. 

Cada filme, cada memória revelada, apresenta a unidade de um povo, em diferentes formas de se filmar. Todo povo tem um sistema, uma regra de convivência e uma forma de ver o mundo onde vive. Cada cineasta com seu objetivo, revela com seu olhar a beleza e o registro de suas línguas, da sabedoria dos mais velhos, das memórias, dos espaços de ser e viver. 

Sendo assim, não podemos unificar o cinema indígena, pois, no singular, ele não representa a multiplicidade de povos. Nesse caso, é necessário falarmos de “cinemas”, no plural, aquele que diferencia línguas, olhares e narrativas.

Toda essa diversidade de se fazer cinema que nos diferencia é a mesma que nos une, no desejo de nos representarmos e contarmos a história através do nosso ponto de vista.

Cada festival representa, para o mundo do cinema, um (re)encontro de almas, olhares, pensamentos e reflexões.

Saudamos os que partiram e deixaram suas imagens, e os que no ventre de suas mães protagonizaram imagens de vida e esperança.

O universo fílmico dos festivais nos possibilita mostrar ao público as especificidades e singularidades de nosso modo de filmar, dialogando com novas produções e descobrindo novos talentos.

Assim como um corpo que não se movimenta enfraquece, um filme que não circula perde sua força. A falta de espaço e recursos desestimula a produção de novos filmes, enfraquecendo a produção dos realizadores. 

Festival, na língua Mbyá, significa Vy’a renda, que quer dizer “lugar de festa, de alegria”. Para nós cineastas, os festivais são espaços que nos movem e fortalecem o nosso desejo de registro.

A Mostra de Cinema Moventes representa para nós indígenas um espaço de aprendizado e troca de saberes, compartilhados através da filmagem.

***

O debate da Sessão 1 (“Nós da Terra”) da Mostra de Cinema Moventes contou com a participação dos debatedores Graciela Guarani e Alberto Álvares Guarani, dos representantes dos filmes Erisvan Guajajara, Ziel Karapotó e Roberto Romero, e mediação dos curadores Isabel Veiga e Vitor Medeiros. O debate completo pode ser assistido abaixo, no Canal do Centro Cultural Vale Maranhão no YouTube.