Sessão 2 – Dançar a cidade

Nota da curadoria: 
Na Sessão 2 (“Dançar a cidade”) da Mostra de Cinema Moventes, apresentamos produções que refletem experiências de circulação e ocupação da cidade tomada como campo de inquietações. Neste campo são traçados percursos de pertencimento e estranhamento. A dança aparece como modo de lançar o corpo na rua, de criar novos encontros com o passado colonial e, ao mesmo tempo, produzir paisagens de resistência.

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Habitar/ocupar ou dançar a cidade
Por Flávia Meireles

Há uma “sacada” em juntar pessoas para uma conversa. Há um “farejar” na hora de pensar uma mostra e uma mesa de debates. A Mostra de Cinema Moventes – realizada online no canal YouTube do Centro Cultural Vale Maranhão e produzida por esta revista – lança mão dessas habilidades de farejar e ajuntar que permitem abrir uma clareira de conversa, instauram um espaço de troca. Na referida mostra ocorreram conversas de duas ordens. A primeira, entre filmes: a partir de uma cuidadosa curadoria que selecionou os filmes Sobre aquilo que nos diz respeito, de Cris Miranda, realizado em 2016; Elekô, do Coletivo Mulheres de Pedra, de 2015; e Esse amor que nos consome, de Allan Ribeiro, realizado em 2012. A segunda ordem de conversa aconteceu na mesa de debates online que reuniu os/as realizadores/as dos filmes, Ewerton Belico e eu em volta do tema “Dançar a cidade”. Este breve texto retoma algumas das questões abordadas, estendendo e puxando conversa com o/a leitor/a.

Tendo em comum a ocupação e circulação na cidade, os três filmes destacam inventivamente as faces visíveis e invisíveis do Rio de Janeiro. Ambientados em três pontos localizados no centro da cidade, os filmes ressaltam uma ocupação/habitação negras da/na cidade: suas inscrições, traços e retomadas. Sobre aquilo que nos diz respeito se situa nos jardins suspensos da Rua Camerino, local onde até a abolição oficial da escravidão se comercializavam pessoas, na região do porto. É importante lembrar que essa região era porta de entrada dos/as escravizados/as vindos/as de várias localidades do continente africano e aportando primeiro no Rio de Janeiro para depois se destinarem ao resto do país. Ainda importante lembrar que as recentes obras urbanas que antecederam as Olimpíadas de 2016 colocaram em relevo esta parte da cidade e suas histórias apagadas. A partir de uma ação performática, os personagens do filme dançam e transformam estátuas da época colonial (erguidas pela missão francesa no Rio) na entidade afrodiaspórica de cura Omolu, por meio de coberturas de palha colocadas sobre os rostos dessas estátuas. Entre a cura, a magia e a dança, o filme se desenrola enfeitiçando estátuas, dançando e evocando a cura da escravização e da subordinação coloniais. O filme-intervenção registra essa ação e, como ressalta Cris Miranda na conversa, aponta para uma direção de cura da chaga colonial. O curta contém dípticos que fragmentam as imagens, isto é, vemos partes das cenas antes mostradas num plano aberto e compondo agora uma imagem fractal. O filme ainda lança mão de intervenções na imagem tais como ranhuras e filtros, que acentuam o tom ao mesmo tempo onírico e concreto do “ebó de estátuas”, uma celebração da cidade ritualisticamente condensada em filme. 

Elekô, realizado pelo coletivo Mulheres de Pedra, ocupa o Cais da Imperatriz, também na região portuária, e trabalha com camadas e justaposições de performances realizadas pelas mulheres do coletivo, alternando entre uníssonos nos gestos das mulheres e pequenos fragmentos de ações performáticas em polifonia, na região do antigo Cais e nas ladeiras do morro da Conceição. Evocando a cidade como um oráculo das vivências e afetos das mulheres negras naquele local, elas inscrevem com seus corpos, gestos e objetos um tom específico em habitar essa cidade revelando dores, prazeres e desejos. 

Já o longa Esse amor que nos consome de Allan Ribeiro foi realizado alguns anos antes que os dois primeiros filmes e narra uma ocupação também no centro do Rio, no bairro da Lapa, no casarão nomeado de “Terreiro Contemporâneo”, ocupado pela Rubens Barbot Cia de Dança. Fruto de processos de aproximação do diretor com os integrantes da companhia, o filme reencena a chegada deles no espaço antes desocupado e posto à venda pelo proprietário. Rubens Barbot e Gatto Larsen conduzem a história entrecortada com cenas dos espetáculos dançados ao ar livre, ensaios e até imaginação de um futuro trabalho artístico a partir da fabulação de Larsen e um improviso de dança de Barbot. Ainda presentes estão as entidades Iansã e Exú – Iansã através de um jogo de búzios que abre o filme e afirma a permanência da companhia no local; e Exú aparece protegendo a porta da casa. Num diálogo divertido, Barbot explica para a dançarina Cláudia Ramalho (que escreveu um livro sobre a companhia) como no Rio Grande do Sul chama-se ser ocupado ao que chamamos no Rio de Janeiro de receber santo. Abre-se mais uma camada de ocupação/habitação das entidades nos corpos e Barbot relata como se sentiu, ao que Ramalho também comenta como foi sua própria experiência. 

O filme, repleto de camadas sofisticadas, é um documento-ficção da chegada, ocupação e habitação da companhia no casarão e nos arredores da cidade, além de documentar a presença de importantes figuras das danças negras no Rio de Janeiro, tais como Luiz Monteiro e Valéria Monã. A dança aparece literalmente como matéria e tema do filme, mas também na sua habilidade em fazer mover diferentes velocidades e afetos, ao nos deslocar como espectadores/as, para um universo ao mesmo tempo singular e comum de vivência na cidade. Uma belíssima e singela cena acontece entre Barbot e uma senhora, ambos bordando ao ar livre na Praça da Cruz Vermelha (imediações do casarão) e o jeito como Barbot toma o fio de bordar como elemento para uma improvisação em dança tanto elaborada quanto rotineira e a forma com que a senhora responde com humor às brincadeiras/danças de Barbot. Esse amor que nos consome revela, em seu tempo longa-metragem, uma experiência complexa das vivências da companhia de dança e dos sujeitos numa cidade urbana igualmente complexa. O ponto alto que entrelaça a própria realização do filme com a vida no casarão foi o fato de o proprietário ter desistido da venda do casarão após tê-lo assistido. Assim, o filme move o impensável: reverter a venda do casarão e ir na contra-mão do sentido da especulação imobiliária na cidade.

A junção desses três filmes enxerga a cidade como oráculo, como chaga que busca a cura ou ainda como trabalho/ebó/intervenção. A mesa de debates online retomou essas riquezas, configurando um espaço intenso de escutas e falas, no intuito de fazer reverberar em nós, espectadores/as e leitores/as, efeitos e rastros das inscrições, traços e retomadas das vivências negras nessa cidade.

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O debate da Sessão 2 (“Dançar a cidade”) da Mostra de Cinema Moventes contou com a participação dos debatedores Flávia Meireles e Ewerton Belico e dos diretores dos filmes, Allan Ribeiro e Cris Miranda, com mediação do curador Vitor Medeiros. O debate completo pode ser assistido abaixo, no canal do Centro Cultural Vale Maranhão no YouTube.