Nota da curadoria:
Na Sessão 4 (“Fraturados pela sociedade: Memórias e fabulações”) da Mostra de Cinema Moventes, através da incorporação de elementos da ficção científica em futuros distópicos, explicitados pela segregação física entre aqueles que podem circular e aqueles interditados para tal, os filmes Chico (Irmãos Carvalho, 2016) e Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014) discutem os traumas e as memórias da violência policial marcada nos corpos das personagens.
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Os corpos fraturados pela sociedade: uma etnografia da ficção
por Luiza Drable
Qualquer câmera que é colocada no espaço da periferia, vê o futuro.
Porque a periferia é o futuro, e o futuro chega antes da periferia.
A falta de UTI já está na periferia há mais de 15 anos.
(Adirley Queirós)
A sessão “Fraturados pela sociedade: Memórias e Fabulações”, da Mostra de Cinema Moventes, tensiona a relação entre o futuro distópico e a memória de corpos marcados pela exclusão na sociedade brasileira. Tanto o longa-metragem Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2015) quanto o curta Chico (Irmãos Carvalho, 2016) buscam elementos da ficção científica e do afrofuturismo para fabular um futuro radicalmente periférico. Proponho aqui olhar os dois filmes em diálogo e pensar sobre suas interseções.
Me lembro da primeira vez que assisti ao filme Branco sai, preto fica há sete anos. Ali se deslocou o que eu compreendia como linguagem narrativa construída a partir da memória, da realidade e da ficção. A chave com que o filme se propõe a narrar é aquela da invenção da realidade, de pensar o próprio filme como processo de construção da realidade. Como Adirley bem definiu, o filme busca construir uma etnografia da ficção. Muitas questões surgiram dessa provocação: de que forma podemos ressignificar a memória de um corpo e de uma cidade através da ficção? É possível desenvolver ferramentas para repensar as noções de tempo e espaço na ficção e, assim, propor uma saída para enxergar o futuro?
No longa, o realizador produz um caminho para pensarmos um futuro distópico, onde é possível provar e implicar culpados das atrocidades violentas cometidas contra corpos pretos e periféricos. Assim, o filme aborda temáticas que serão sempre essenciais para entender a complexidade da formação da sociedade brasileira, como violência policial, periferia, pobreza e racismo. Mas não é só ao abordar tais temas que a narrativa continua a provocar o olhar do espectador, é também ao fabular uma estética artesanal, subversiva e afrofuturista. Forma e conteúdo espelham-se na narrativa reconstituindo etnograficamente o passado, e inventando esse futuro fantasioso. Sem deixar de lado o registro documental, somos atravessados por essa construção ficcional do futuro, com espionagem e viagem no tempo.
Ao analisar essas imagens hoje, penso que a radicalidade dessa subversão ainda está presente. Quando olhamos mais a fundo, vemos que é possível pensar a estética como forma de subverter a própria lógica narrativa, criar novos olhares sobre temas já conhecidos, operar numa outra lógica de pensamento. É possível dizer que o afrofuturismo ali não é só sobre estética, mas sobre ter um olhar decolonial e apresentar uma visão do passado e do futuro, que dialoga com experiências do corpo preto e periférico.
Em Chico, essa lógica também está no próprio fazer fílmico, a câmera na mão instável e errática já quebra com uma noção de fluidez na construção espacial. O espectador vê aquele espaço por meio de um olho que não descansa, que está sempre em movimento. Assim, o próprio cenário é fragmentado em sua construção. Quando comparamos a construção espacial e atmosférica das histórias, há uma relação com a cidade que está impregnada nas narrativas. Os espaços de representação também são registros históricos das periferias, que por sua vez, são regiões apartadas do centro e representam a exclusão daqueles corpos. Esses espaços são onde os corpos exilados do centro residem e resistem constantemente, reinventando suas próprias realidades.
Durante o debate, Adirley indicou a possibilidade de compreender Ceilândia, cenário e personagem de Branco sai, a partir da ideia de amputação, como um espaço que foi um ‘aborto territorial’. Tal deslocamento do centro está tanto na diegese quanto fora dela, e determina até mesmo a dinâmica dos personagens na história. Quando olhamos para Chico, esse ‘aborto territorial’ também está presente na condução narrativa.
Quando analisamos aspectos estéticos e formais, há, nos dois filmes, uma relação importante com objetos e elementos cênicos que são extensões dos corpos. Esses objetos são condutores da narrativa, apresentam-se como ferramentas de sobrevivência dos corpos periféricos. São gambiarras que as personagens desenvolvem como forma de resistir à fragmentação dos corpos. Em Chico, isso está na fabricação artesanal da pipa, que pode ser vista como uma metáfora da liberdade do personagem do menino. Uma tentativa desesperada da mãe de libertá-lo da violência daquele espaço, num futuro em que ele não tenha que fugir, mas possa voar.
Na narrativa de Branco sai, preto fica, DJ Marquim constrói, um míssil-gambiarra que mescla cultura e memória para ser lançado da periferia para o centro. Esse míssil é uma metáfora da ruptura, uma resposta ao governo autoritário e à exclusão, e uma maneira de marcar a existência da cultura e do povo periférico. É, assim, uma forma de resistência dos corpos que compõem a paisagem daquela cidade.
Da mesma forma, a partir de ferramentas e matérias-primas artesanais, o personagem de Chokito, que perdeu a perna, desenvolve próteses mecânicas para mutilados. Os dois usam suas partes fragmentadas para produzir, de maneira artesanal, gambiarras de sobrevivência e subversão. Estes objetos conduzem os personagens à catarse narrativa, representada pelos desenhos da explosão. Ao inventar essas gambiarras de sobrevivência, produz-se uma ruptura com um comando autoritário que controla e fragmenta aqueles corpos.
Pensar esses espaços da periferia como futuro é uma maneira de elaborar a memória do passado, e ressignificar a realidade a partir da narrativa ficcional. Por meio dessa etnografia da ficção, os filmes podem expressar a memória da cidade e dos personagens, e fabular uma saída subversiva e radical para o futuro.
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Gambiarras e Gatos: insurgências cyber-periféricas em Chico e Branco Sai, Preto Fica
por Clementino Junior
O debate “Fraturados pela Sociedade: Memórias e Fabulações”, moderado pela curadora e cineasta Flavia Candida, me fez olhar por mais uma vez duas obras marcantes do cinema contemporâneo feita por artistas periféricos e com protagonismo negro nas telas: Chico, dos Irmãos Carvalho (2017), e Branco Sai, Preto Fica de Adirley Queirós (2014). O curta e o longa-metragem, respectivamente, abordam inúmeras pautas urgentes dos movimentos sociais que atuam nas periferias do Brasil, aqui centradas nas do Rio de Janeiro e Distrito Federal (as duas capitais recentes do país), se apropriando de elementos da ficção especulativa e discutindo esperança e insurgência em ambientes inóspitos e distópicos.
O contexto em ambos os filmes transita entre o apartheid e o racismo, propondo por parte de “poderes extracampo” do Estado, e do abuso e manipulação de uma cultura punitivista, os danos causados a personagens cuja característica comum é serem pretes, pobres e morarem na periferia. Neste momento a diferença entre um menor que já nasce condenado à reclusão ao alcançar uma determinada idade por decreto estatal sendo protegido por sua mãe, uma ex-detenta, e jovens punidos pela violência do Estado em seus corpos, vivendo outro tipo de prisão e planejando sua vingança, trazem em suas narrativas o esperado sentimento de indignação, inconformismo e insurgência de seus personagens. Em um dado momento as opções de representação do elenco de ambas as obras me lembram os protagonistas do cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty, que encontra em personagens fora do padrão, aleijados, andróginos, e de uma certa maneira marginais a imagem da cidadã e do cidadão comum, heróis fora da jornada clássica proposta pelas cartilhas cinematográficas, mas que não as deixam de cumprir, pois o que está em jogo é trazer uma nova representação do que é ser protagonista em uma narrativa.
Os três realizadores têm em suas vivências a periferia das metrópoles onde residem, seja no morro do Salgueiro ou na Ceilândia, e a capacidade criativa e artística em se apropriar, em suas produções independentes com pouco ou nenhum recurso financeiro, o que o próprio território, cenários e os corpos lhes oferecem como recursos do presente para pensar suas narrativas futuristas e críticas. Durante o debate mencionei o termo “gambiarra” para falar da estética e da prática dos personagens, que ao longo das narrativas têm algo em comum: a construção de um artefato, com diferentes finalidades que só se revelam na etapa final do filme. A ressignificação de símbolos, os diálogos precisos entre personagens e o rádio enquanto mídia, as moradias mais ocupadas do que vividas e o tema principal da trilha sonora – a qual os Irmãos Carvalhos comentam ter escolhido para abrir seu filme Chico por causa do tema de encerramento de Branco Sai, Preto Fica – mostram que as duas obras têm muito mais conexões do que se possa imaginar, e aponto a chamada “estética da gambiarra” como uma delas. A criação da pipa e da bomba, usando oficinas que têm finalidades distintas destes artefatos, no caso a serralheria e a rádio amadora e a oficina de próteses, além de uma nave espacial em um container com luzes de boate, são apenas algumas destas – mas também os cenários vivos da ocupação onde foi filmado Chico, com seus moradores participando da performance, e a região de Ceilândia em momentos específicos do dia, que dão o tom de abandono e isolamento destes territórios. O aparente pessimismo do artista que olha o seu entorno e ressignifica os símbolos para produzir suas gambiarras, os efeitos luminosos que remetem aos “gatos” apropriados da energia pública/paga, se tornam discursos fortes por uma potência local em criar, contar história, e botar seus pares e o público externo para pensar. Artistas que encontram em um período em que findava uma etapa ainda frutífera de produções descentralizadas das cartilhas europeias e hollywoodianas propostas pelos cursos de cinema, mas sem deixar de dominá-las e traduzi-las para um vocabulário próprio e que se afina com o público que se encontra do outro lado do apartheid social, cultural e digital.
A partir destas obras fechadas enquanto produto audiovisual e abertas em interpretação, o gato e a gambiarra provam-se como narrativas potentes e que promovem um passo além nas barreiras sociais – na obra – e artísticas enquanto recepção em festivais, universidades e espaços culturais fora dos grandes centros, por mais que teóricos das artes os propusessem como algo provisório e precário. Neste caso, afirmo o gato e a gambiarra como formas de estabelecer novos diálogos com o público e de maneira a trazer o próprio público em suas inúmeras representações na tela que, na verdade, lhes pertence. Somos o público, como afirmam os cineclubistas, e enquanto público e artistas vamos transformando o presente para que este futuro apocalíptico fique cada vez mais na ficção.
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O debate da Sessão 4 (“Fraturados pela sociedade: Memórias e fabulações”) da Mostra de Cinema Moventes contou com a participação dos debatedores Luiza Drable e Clementino Júnior, dos diretores dos filmes Adirley Queirós, Eduardo Carvalho e Marcos Carvalho, com mediação da curadora Flavia Candida. O debate completo pode ser assistido abaixo, no canal do Centro Cultural Vale Maranhão no YouTube.