Sessão 6 – Câmera-corpo-testemunho

Nota da curadoria:
Quando a câmera assume o corpo na cena, ela se faz personagem. A Sessão 6 (“Câmera-corpo-testemunho”) da Mostra de Cinema Moventes é composta por filmes que nos levam a refletir sobre o próprio cinema e o transbordamento inventivo da auto-reflexividade maquínica. Um gesto que começa com o cinema burlesco e segue revisitado entusiasmadamente pelos cinemas modernos – o olho que fita a câmera -, aqui nesta sessão assume propostas metalinguísticas bastante particulares.

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Capturas do corpo-testemunho em Ilha e Fantasmas
por Mariana Baltar

De um jeito singular, Fantasmas (2010), de André Novais Oliveira (Filmes de Plástico) e Ilha (2018), de Ary Rosa e de Glenda Nicácio se encontram na interrelação provocativa entre câmera-corpo e testemunho. Ambos os filmes nos convocam a partir da capacidade do cinema em nos capturar no corpo, no nosso sensório e nosso afeto; e a partir dessa captura fazer partilhar os sentidos e significados. O nome da sessão proposta pela Mostra de Cinema Moventes, “câmera – corpo – testemunho”, é sim uma boa provocação e uma boa pista para a gente desdobrar esses dois filmes, mas além deles, desdobrar um certo cinema contemporâneo que, dentro das marcas autorais, explode com circuitos classistas e racistas da história do cinema brasileiro. Pois, ao final, o que se testemunha a partir dos filmes é a “possibilidade de classes populares racializadas fazerem cinema autoral”, o que se testemunha é a própria disputa política de narrativas em curso no cinema autoral nacional. (1)

Uma primeira pegada para o diálogo entre os dois filmes da sessão é o próprio conceito de câmera-corpo. Essa ideia tão bem trabalhada por Camila Vieira da Silva (2009) em seus escritos, inicialmente mais centrados na obra de cineastas como Naomi Kawase, mas que aos poucos se expande para pensar o cinema contemporâneo de modo mais amplo. Assim como outras autoras (Vivian Sobchack, Anne Rutheford), entre as quais eu me incluo, partimos da “compreensão do cinema como um corpo, na medida em que a câmera se comporta como um corpo sensível em contato com outros corpos que compõem a matéria filmada” (SILVA, 2009, p. 2). Camila aqui localiza na câmera o vetor dos poderes de captura, operado pelo cinema, do nosso corpo espectatorial; mas Fantasmas nos convida a pensar o som com essa mesma e intensa capacidade. 

No curta de André Novais, somos inseridas numa cadência de conversa que mais que informações de enredo, pistas para o entendimento das personagens, nos lança num modo de vida que se torna encarnado pela materialidade das falas. Mais que o sotaque – que demarca territorialmente a região metropolitana de Belo Horizonte, Contagem mais precisamente – há uma singularidade de vivências que se antevê a partir do diálogo. Mais potente ainda é o fato de que esse diálogo se dá em off, criando um espaço afetivo de extracampo que, associado à estaticidade radical do quadro, intensifica a sensação de imersão, e com ela, de partilha, na conversa que se desenrola. Fantasmas é a aparição, maravilhosamente assombrada, de um som-corpo. 

Já o longa da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio entra de modo peculiar no hall de filmes que compartilham do que Erly Vieira Jr. (2020) em seu recente livro chamou de um realismo sensório no cinema contemporâneo. E mais que isso, é de fato a câmera-corpo que ancora a força da política sensorial e afetiva desta obra, onde as coreografias e movimentações dos corpos dos personagens na relação com a câmera (esta também bastante coreografada) – inclusive em passagens marcadamente performáticas – antecipam o desenrolar da trama, e são vetor da ampliação sensível do mundo do personagem-cineasta. 

Isso porque em Ilha as precisas alternâncias entre uma câmera fixa e uma câmera excessivamente móvel conseguem ressaltar a importância do afetar do nosso corpo. Diz Erly Vieira Jr: “a câmera-corpo afeta o próprio espectador, promovendo seu encontro com a alteridade (dos corpos filmados e do próprio corpo fílmico) numa forma mais intensa do que a própria linguagem verbal” (Vieira Jr: 2020. p. 39). Mas em Ilha os poderes do afeto promovidos pelo aparato fílmico, a própria experiência do cinema, não são sentidos apenas pelo corpo dos espectadores, eles são mote narrativo para a trajetória do personagem Henrique. A experiência, complexa e intensa, do cinema catalisa uma força atracional em Henrique, fazendo-o transitar da vulnerabilidade da violência para a sedução da cumplicidade, e com isso, abre de modo tocante seu mundo. 

Nas muitas relações possíveis entre cinema e corpo, me interessa sobretudo pensar o papel das estratégias estéticas em construir um convite ao engajamento afetivo do espectador, mobilizando com isso nosso corpo espectatorial em relação ao que está nas telas. Acompanho Erly Vieira Jr. e Camila Vieira da Silva, entre outros, na afirmação de uma relação política potente em nos convocar corporalmente, nos fazer sentir testemunha (partilhando) dos fragmentos e dos modos de vida nas telas.

Considerar o cinema (seu aparato) como um corpo não é mera figura de linguagem, é enfatizar sua capacidade de capturar nossa atenção, nossa sensibilidade, e, justamente por isso, nos fazer sentir, experimentar, compartilhar com os corpos nas telas sensações e sentimentos. Há muito venho pensando o corpo do cinema como capaz de mobilizar a atenção do espectador através de um jogo que se processa entre corpos (o que eu chamo de um ménage a trois entre o corpo nas telas, o corpo fílmico e o corpo do espectador). Nos últimos anos, correlaciono essa capacidade com a atualização de um conceito que vem diretamente dos estudos de história do cinema: a ideia de atrações.(2)

Heron Formiga e Mariana Souto, em texto de introdução ao catálogo da Mostra Cinema e Corpo (realizada em 2016, no Centro Cultural da Caixa no Rio de Janeiro), escrevem: “podemos tomar todo e qualquer cinema não somente como um gesto puro do olhar – observar e ser observado – , mas, sobretudo como um gesto de tocar, através do qual duas fisicalidades – câmera e corpos filmados, mas também espectador e imagem – encostam-se mas também afetam-se mutuamente e, às vezes, entram em conflito.” (FORMIGA, SOUTO, 2016, p. 6).

Essa passagem me interessa diretamente pois ela mostra, cabalmente, como o cinema é intrinsecamente atravessado por um interesse pelo corpo. Para além da representação (ou seja, daquilo que está na ordem da narrativa, do enredo); é um interesse pelo que está na ordem da expressão (o corpo, nas telas e fílmico, em toda sua corporalidade). 

Os dois filmes, Fantasmas e Ilha, são de fato perfeitos para essa convocação corporal (sensorial e afetiva). E não é uma convocação qualquer, e nem uma convocação que se dá a partir de uma tradição estritamente narrativa ou documental, mas uma convocação que se faz pela força atracional do aparato audiovisual. É a capacidade mesmo do filmar que me puxa para me sentir testemunha e parte daquele fragmento de vida. Quero dizer, a força desses filmes reside na capacidade do corpo fílmico em nos capturar a testemunhar, e ao testemunhar, sentir que estamos partilhando. Nesse sentido, faz algo de diferente, além, da tradição da representação narrativa da ficção ilusionista-realista ou da tradição expositiva do domínio do documentário, campos onde usualmente se reflete sobre o testemunho. É interessante que esses dois filmes fazem isso a partir dos dois elementos centrais que envolvem o audiovisual: um sobretudo através do som e outro através das imagens.

Que os dois filmes são sustentados na nossa captura sensorial, não resta dúvida. Somos convocados no corpo a partilhar de sensações, sentimentos e sentidos. A ideia de câmera corpo também está presente nos procedimentos materiais desses corpos fílmicos. Mas o que se testemunha? Fantasmas e Ilha são testemunhos do quê? 

É fato que Fantasmas usa a imagem tradicional da câmera de registro. Eixo frontal, imóvel, registrando a rua. Estrutura de imagem muito comum nos inúmeros filmes de atualidades, documentários, ao longo da história do cinema. Mas a imagem registrada no filme é tão radicalmente banal e, no limite, desinteressante, que ela quase passa para o fundo da nossa cabeça e no primeiro plano vem a força da paisagem sonora. E é pela força desse som que evoca-se o testemunho do território, de um modo de vida. Testemunho que veremos reverberar em outras obras da Filmes de Plástico, sobretudo no excelente longa No Coração do Mundo, dirigido por Gabriel Martins e Maurílio Martins (2019), dupla aliás que são atores/personagens do curta de André Novais. Também lá, a fala dá corpo a todo um repertório cultural que poucas vezes se presentificou com tanto protagonismo e agência no cinema brasileiro. 

Na Ilha, talvez o que se testemunhe seja a tomada de consciência, ou, como melhor elaborou Aldri Anunciação, a sublimação da violência e o resgate, mais que transformação, do artista. Henrique e Emerson se (re)encontram na Ilha Grande, um encontro marcado primeiramente por um ato estilizado de violência. Digo estilizado pois toda a sequência inicial é alusiva e propositalmente cinemática em sua forma, replicando modos contemporâneos de filmar ações de guerra e torturas. Contudo, gradativamente, assim como Henrique (esse personagem-cineasta que representa o cineasta bem sucedido das elites), vamos nos afastando da violência e nos seduzindo por Emerson, sua sensibilidade e sua resiliência na trajetória de vida.  

Narrativamente, a Ilha vai mostrando como a experiência de um cinema com Emerson devolve a Henrique o gozo e o gosto pelo cinema. Mas expressivamente, nos moldes de uma recuperação de um cinema de atrações, a câmera-corpo de Ilha insere passagens onde os gestos e coreografias de Emerson, de Henrique e de ambos com a câmera na mão de Thacle de Souza (fotógrafo e personagem) criam uma vibração suspensiva em si (me refiro às duas cenas de performance de dança de Emerson, mas também à cena do encontro afetivo-sexual dos dois e à cena final do filme, quando Henrique projeta imagens de arquivo de seu primeiro encontro com Emerson e a Ilha Grande). 

O filme o tempo todo alterna planos incomodamente fixos com planos de câmera na mão, em muitos momentos bastante aproximada dos corpos dos personagens, nos inserindo nas relações de estranhamento e cumplicidade que vão se desenrolando. Destaco a primeira cena de performance de dança de Emerson, talvez o primeiro grande ato de sedução e captura do nosso olhar para esse corpo, masculino, negro, bissexual, que não se encaixa nos moldes sociais que usualmente seriam dados a ele. Ali nessa cena, o corpo de Emerson se torce e contorce junto com as torções da câmera, evocando poses de luta e de dança. Essa cena, que narrativamente parece deslocada, expressivamente antecipa que Emerson não cabe nas restrições do filme ou da Ilha.  

É o desvelamento de uma vulnerabilidade sensível e criativa de Emerson que vai cativando Henrique e vai afastando o personagem do cineasta, e correlatamente a nós mesmos, do ato inicial da violência e desvelando todas as outras violências cotidianas que homens como Emerson sofrem. Aqui, devo mencionar que a sequência que toca no tema do abuso sexual infantil sofrido por Emerson, na metanarrativa que se desenrola no longa, é precisa e forte, sem ser exploratório. O aprisionamento à Ilha narrado pelo personagem é uma condição quase insuperável, mas que é implodido pelo corpo fílmico. 

Mas talvez seja a última cena do filme a que sumariza o pressuposto de onde Ilha se lança: os poderes afetivo-políticos da experiência do cinema em alterar trajetórias de vida. 

Mais uma vez pergunto: o que se testemunha no corpo fílmico de Ilha

Talvez o grande testemunho seja o de uma historicidade do fazer cinema no Brasil, o testemunho da historicidade de um silenciamento do espaço e de uma violência implicada que alija do protagonismo do cinema autoral os corpos pretos das classes populares. O testemunho de Ilha, mas também de Fantasmas, cada qual à sua maneira, ecoa a pergunta: quem pode sair da Ilha – essa ilha das opressões e violências, da condenação aparentemente pré-destinada pela violência do sistema racista e classista que não permite que muitos meninos e meninas criativos e sensíveis sejam escolhidos pelo cinema?

Ilha e Fantasmas fazem um testemunho-corpo, onde o próprio corpo-fílmico das duas obras são a partilha de vivências que não estão apenas na obra, mas explodem para além delas. Uma partilha política que não passa exclusivamente por um distanciamento racional, cognitivo, passa por uma mobilização sensorial e afetiva. As imagens e sons em movimento falam ao meu corpo, à minha pele.

Notas:
(1) A frase em aspas foi dita por Michel Carvalho em sua fala durante o incrível e instigante debate que tivemos na última sessão da Mostra de Cinema Moventes, abrigada pelo Centro Cultural Vale Maranhão. Agradeço afetiva e enormemente o diálogo com Michel, bem como as falas de Aldri Anunciação, ator e dramaturgo que vive o personagem Henrique no filme Ilha.
(2) Nesse sentido, ver, entre outros, meu artigo “Corpos, pornificações e prazeres partilhados”, publicado  na revista Imagofagia (n. 18, outubro de 2018).
Referências bibliográficas
ROTHBERG, Michael. “The work of testimony in the age of decolonization: Chronicle of a Summer, Cinema Verité, and the emergence of holocaust survivor”. Modern Language Association of America, New York, v. 119, n. 5, 2004.
SILVA, Camila Vieira da. “Entre a superfície e a profundidade: a câmera-corpo e a estética do fluxo no cinema asiático contemporâneo”. In: Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 32, 2009, Curitiba. Anais […]. Curitiba: Intercom, 2009. 
SOBCHACK, Vivian. Carnal thoughts: embodiment and moving image culture. Berkeley: University of California Press, 2004.
VIEIRA JR, Erly. Realismo sensório no cinema contemporâneo. Vitória: EDUFES, 2020.

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Corpos obscenos
por Michel Carvalho

Havelock Ellis, médico e sexólogo britânico, um dos pioneiros nos estudos acerca da sexualidade humana no começo do século XX, afirma que a palavra “obsceno” é derivada do latim scena, significando “fora de cena” ou aquilo que apresenta o oculto, revela o implícito e mostra o que não deve ser mostrado; é algo transgressor por definição. Neste brevíssimo ensaio, argumento que Fantasmas e Ilha, os dois filmes apresentados na sessão “Câmera-corpo-testemunho”, promovida pela Mostra de Cinema Moventes, se utilizam de dispositivos narrativos que brincam com dinâmicas de “dentro” e “fora”, intra e extra campo cinematográfico. Ora revelam elementos da mise-en-scène fílmica que deveriam permanecer ocultos, ora escondem elementos salutares à compreensão da linguagem audiovisual. 

Enquanto Ilha (2018), longa-metragem de Glenda Nicácio e Ary Rosa, apresenta três câmeras-perspectivas acerca de uma mesma história, Fantasmas (2010), curta-metragem dirigido por André Novais, suprime a imagem dos protagonistas de sua ação dramática. Mais do que instigantes expoentes do cinema contemporâneo brasileiro, a sessão trata de obras que transgridem e reorganizam a expectativa das plateias acerca da própria linguagem audiovisual e desvelam camadas obscenas do próprio fazer cinematográfico.

Segundo longa dirigido pela dupla Nicácio e Rosa (este também assina o roteiro), Ilha parte de uma premissa insólita, tal qual nos demonstra a sinopse: Emerson, interpretado por um inspirado Renan Motta, é um jovem da periferia, quer fazer um filme sobre a sua história na Ilha, lugar de onde os nativos nunca conseguem sair. Para dar conta de sua missão, ele sequestra Henrique, brilhantemente defendido por Aldri Anunciação, um premiado cineasta. Juntos, os dois reencenam a própria vida, com algumas licenças poéticas. 

O tema da metalinguagem cinematográfica já foi largamente explorado por cineastas ao redor do mundo, como François Truffaut em A Noite Americana (1973), Woody Allen em Dirigindo no Escuro (2002) e Jorge Furtado com seu Saneamento Básico (2007). Onde residiria, então, a originalidade de Ilha? Para início de conversa, nessa ilha, lugar de difícil acesso por ser rodeado de água por todos os lados, a câmera – instrumento óptico para captação de imagens – é também um personagem e ganha até nome – Câmera-Thacle, nome de um dos diretores de fotografia do longa e também do filme dentro do filme.

Obscenamente, a Câmera-Thacle registra o embate entre os protagonistas Emerson e Henrique, intervém em suas movimentações e se expressa quando desaprova alguma escolha estética do diretor. Após o primeiro embate entre Emerson e Henrique, marcado pela recusa deste a fazer um filme sobre a vida daquele, a película nos alça a um novo patamar. Compelido pelas circunstâncias, Henrique aceita dirigir o filme e passa a assumir também um ponto de vista cinematográfico: a Câmera-Henrique. Enquanto a Câmera-Thacle dá conta das relações entre ator (Emerson) e diretor (Henrique), a Câmera-Henrique se dedica à captação dos fragmentos ficcionais da vida de Emerson, recriados para o filme dentro do filme. Durante cerca de um terço da projeção, assistimos imagens intercaladas da Câmera-Thacle e da Câmera-Henrique. Assistimos o documental junto com o ficcional dentro da diegese.  

É neste momento, onde o espectador enfim vislumbra terreno seguro acerca da proposta narrativa do filme, que Ilha nos apresenta um terceiro elemento – a câmera convencional do cinema, aquela que não tem nome, aquela que não tem subjetividade, aquela que não é gente, nem persona. É pra essa terceira câmera que os personagens se descortinam. Grandes conversas, grandes confissões, grandes reflexões se estabelecem entre Emerson e Henrique durante este fluxo clássico narrativo. A relação dos dois homens visita uma série de sentimentos – raiva, estranhamento, admiração, afeto, tesão; alguns são performados para a Câmera-Thacle, outros para Câmera-Henrique, outros para a câmera convencional. 

Ao longo do filme, Henrique indaga todo tempo ao seu algoz – por que você me escolheu? Por que eu preciso fazer esse filme sobre a sua vida? A resposta a estes questionamentos só vamos ter ao final da sessão, quando de maneira catártica entendemos a relação prévia entre aqueles dois. Uma relação belíssima, marcada pela possibilidade de sonhar outros mundos, sublimar a dor e transformar a vida através da arte e da transgressão. 

Fantasmas, curta com roteiro e direção assinados pelo mineiro André Novais, apresenta uma sinopse um tanto enigmática: “O Fantasma da ex.” O título aqui apresenta uma dupla acepção: tanto faz referência ao fantasma simbólico da ex-namorada do protagonista, quanto se relaciona com os dois personagens centrais da obra, Gabriel e Maurílio, figuras que habitam a narrativa como espécies de corpos translúcidos que vagam pelo filme como espectros, os quais não vemos, mas sentimos e percebemos a presença. 

Retrocedamos por um instante para compor o quadro sonoro-imagético que o filme apresenta. É noite. A partir do que parece ser uma laje, ou um morro, vemos imagens de uma rua captadas por uma câmera estática. Uma avenida pouco movimentada, onde pessoas comuns passam, onde carros transitam. Tudo cotidiano, simplório e ordinário. A estas imagens são adicionados diálogos entre dois amigos – Gabriel e Maurílio. Longe de ser essencial, revelador ou urgente, os assuntos tratados pelos camaradas são absolutamente banais e corriqueiros – o futebol, o dia a dia da localidade onde moram, o pedido de empréstimo de dez reais… Ao espectador, entretanto, é vedada a visualização dos corpos dos rapazes. O espectador não se relaciona com as imagens dos personagens, mas com suas vozes. Os corpos dos personagens (dos atores) estão fora de quadro, estão fora de cena. Neste sentido, são obscenos. 

É nesta hora que Fantasmas apresenta sua virada. Maurílio percebe que, enquanto conversam, Gabriel filma a rua com uma câmera. Ou seja, aquelas imagens que o espectador vinha acompanhando estão sendo produzidas pela câmera de Gabriel. Mas o que há de tão especial naquela rua que merece ser registrado? A audiência, assim como Maurílio, indaga. A resposta vem ligeira e despretensiosa. Gabriel acredita que viu Camila, sua ex-namorada, de volta à cidade e precisa ter certeza de seu retorno. Tal como uma aparição, ela pode se manifestar a qualquer momento e Gabriel precisa registrar o evento. 

Quando Camila aparece e sua imagem é finalmente captada pelas lentes da máquina de Gabriel, o filme ganha uma nova camada interpretativa. Gabriel debruça-se sobre a imagem e passa a manipulá-la. Ele pressiona o rewind e assiste novamente a aparição de seu objeto de desejo. Precisa ter plena certeza. “Que que eu te falei? Ó quem tá ali, ó!” Volta a imagem de novo. “Que que eu falei com ocê!” E outra vez. Talvez estivéssemos ao longo de todo o filme diante de imagens previamente captadas por Gabriel. Até mesmo a ilusão do aqui/agora da fruição fílmica, na qual a realidade diegética se descortina diante de nossos olhos, é suprimida. 

Ao propor uma disjunção entre o áudio e o visual, Fantasmas coloca em xeque o estatuto das imagens no audiovisual, uma vez que atribui a elas um caráter prescindível e manipulável. Assim como os fantasmas, que nada mais são que seres que, após perderem a vida continuam a perambular pelo mundo dos vivos, os personagens do curta-metragem flanam numa dimensão que não deveria ser a deles, a dimensão do extracampo, a dimensão da não-visualidade, do incorpóreo e extra-planar. 

Desta maneira, tanto Ilha quanto Fantasmas são obras que, cada uma à sua maneira, quebram a diegese e revelam a própria engenharia do fazer cinematográfico. Mais do que simples exercícios de criatividade artística e da metalinguagem, os filmes nos convidam a refletir sobre a câmera fotográfica como ponto de vista, sobre as imagens por ela captadas como perspectiva de tempo e espaço e sobre personagens como meras abstrações.

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O debate da Sessão 6 (“Câmera-corpo-testemunho”) da Mostra de Cinema Moventes contou com a participação dos debatedores Mariana Baltar e Michel Carvalho, de Aldri Anunciação (ator do filme “Ilha”) e mediação da curadora Isabel Veiga. O debate completo pode ser assistido abaixo, no canal do Centro Cultural Vale Maranhão no YouTube.