Dois alguéns apaixonados

Uma vez apresentado o título do filme O dia que te conheci (direção: André Novais Oliveira, 2023) e o protagonista Zeca, passamos a nos perguntar: quem será que ele vai conhecer? A passageira do primeiro buzu que ele pega para ir ao trabalho? Ou o outro passageiro, que convida Zeca para comer um pastel quando o veículo quebra? Será a mãe de uma aluna da escola, que Zeca encontra no segundo buzu de seu percurso e depois reencontra na calçada, puxando uma conversa sobre o futuro da filha num pequeno flerte? Mas é só quando Zeca entra no carro de Luísa para uma aparentemente despretensiosa carona, que temos a certeza de que a história será sobre este encontro. Embora já tivessem se cruzado no ambiente de trabalho, o casal não tinha tido a oportunidade de se conhecer, assim, de verdade. Até aquele dia.

A partir dessa carona, acompanhamos a jornada íntima de Zeca e Luísa (interpretados por Renato Novaes e Grace Passô) em uma gostosa e serena comédia romântica repleta de diálogos espirituosos. “Um filme de amor”, conforme definiu Grace no debate realizado em 14 de dezembro de 2023, após a exibição do filme na Mostra Competitiva Nacional de Longas no 56º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Neste ensaio, veremos como o filme se apropria das comédias românticas, ao mesmo tempo em que promove dobras nas convenções do gênero com bastante personalidade.

Vem que eu te mostro minhas receitas psiquiátricas

Segundo a pesquisadora e roteirista Carolina Amaral, as comédias românticas trazem um formato de aventura para dilemas íntimos com os quais lidamos no dia-a-dia:

O principal é que o gênero transforma esses dilemas íntimos em história: os coloca “para fora”, os converte em conflito (propósito, ação e obstáculos) e encoraja seus personagens a agirem sem medo, a se arriscarem, a se transformarem, a acreditarem que uma resolução feliz é possível, seja ela qual for. 1

No caso do filme aqui analisado, o casal heterossexual Zeca e Luísa começa a história de maneira conflituosa e constrangedora, uma premissa recorrente nesse gênero narrativo. Ela é a portadora de uma péssima notícia: a demissão de Zeca. O desconforto mútuo fica nítido, mas ambos conseguem contornar o mal-estar e, juntos, se arriscam para tentar superar o climão com bom humor e empatia. 

Um assunto-chave que contribui para a escalada íntima é o dos remédios psiquiátricos. Através do compartilhamento de experiências com antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos, Zeca e Luísa vão deixando escapar segredos de maneira envolvente. O par amoroso, nessas histórias, costuma se conectar quando uma pessoa consegue fazer a outra rir, seja através de piadas ou evidenciando suas vulnerabilidades, e é bem o que acontece aqui.

Para propiciar situações de intimidade, geralmente o casal deixa sua rotina e passa a explorar um lugar mágico, mais livre e desinibido, onde desejos e fantasias são vividos sem embaraços. Neste filme, para Zeca, a suspensão de rotina começa no momento de sua demissão; para Luísa, trata-se de uma sexta-feira pós-expediente, o que também colabora para uma postura mais relaxada. Espacialmente, a magia aqui não acontece em uma floresta shakespeariana, mas em uma praça perto do Edifício Maletta, local boêmio de Belo Horizonte, onde o casal aproveita aquela noite. Depois, seguem para o apartamento de Zeca: começando no sofá da sala, em seguida no quarto, uma passadinha no banheiro e, enfim, a cama.

Durante toda essa noite, o casal toma umas cervejas, importante lubrificante social que ajuda a deixá-los mais soltinhos. A atmosfera é leve, permitindo que os personagens passem por transformações e se encaminhem à união através do ato sexual, antes de retornar à vida normal. No fim, fica aquela sensação de bem-estar produzida pelo gênero. O “novo” Zeca consegue acordar cedo sem despertador na manhã seguinte, e responde de maneira surpreendente ao vendedor da padaria: quando este lhe oferece um habitual misto-quente, Zeca recusa dizendo que “Hoje vai ser diferente” e pede presunto, mussarela e pão, completando: “Hoje é pra levar.” O protagonista, antes solitário, agora possui um bom motivo para voltar para casa e tomar um café da manhã muito bem acompanhado.

Você deve tá me achando uma garota problema

Nas últimas décadas, diversos filmes “autorais” já flertaram com a matriz das comédias românticas, associados a cineastas como Spike Lee, Sofia Coppola, Wong Kar-Wai, Claire Denis, Richard Linklater, Woody Allen e, o que vejo mais intercessões com O dia que te conheci: Hong Sang-soo.2

No cinema de Hong, estruturas clássicas como o plano ponto-de-vista, que poderia expressar o sentimento de enamoramento, são substituídas pelo plano geral distanciado e de longa duração. Escolhas semelhantes são feitas aqui. A encenação reforça o caráter performativo das relações humanas e dos protocolos sociais, evidenciando tensões através de detalhes que só podem ser percebidos com o tempo. Eles emergem para a superfície em pequenos gestos, pausas, olhares, respirações. Há uma performatividade intrínseca ao cortejamento, e a encenação contribui para destacar a fisicalidade do jogo entre os corpos, que demoram a se tocar. Enquanto isso, as palavras brilham.

Os diálogos são uma atração à parte. Tal qual nos filmes do cineasta sul-coreano, presenciamos sequências com diálogos extensos cheios de sutilezas e uma musicalidade particular. Quase conseguimos sentir as faíscas de eletricidade, a fricção materializada nas entonações da troca de palavras. A compatibilidade cômica do par se reflete em uma possível compatibilidade sexual. Será que vai rolar?


O distanciamento do plano de conjunto proporciona, ainda, uma maior ambiguidade em certas nuances de atuação, potencializando os disfarces e dissimulações assumidos pelas personagens durante uma situação de paquera —  convenção da comédia romântica muito presente em Hong. Destaco duas cenas de O dia que te conheci. A primeira: quando Zeca conversa com a mãe da aluna na calçada, ele finge não ter sido demitido, provavelmente por vergonha de seu fracasso, almejando sustentar um clima “positivo” para o desdobramento daquela prosa em algo a mais. Outra cena curiosa ocorre quando Luísa recebe a mensagem de uma amiga pelo celular e performa uma revolta com o fato da amiga ter furado o compromisso com ela. Nunca temos acesso a essa mensagem, nem Zeca… O filme deixa dúbio se essa mensagem existiu de verdade (e Luísa realmente levou um bolo da amiga) ou se Luísa foi dissimulada todo esse tempo. Teria ela inventado a anedota da amiga para ganhar um possível álibi e escapar da companhia de Zeca, caso necessário? “Deixa essa falsiane pra lá,” diz Zeca, referindo-se à amiga ou à farsa da própria Luísa.

Como uma típica personagem feminina honguiana, Luísa entra na história e toma as rédeas para si, ditando os rumos do encontro e passando a orientar até mesmo a medicação de Zeca. Ela é uma mulher divertida, um furacão que deseja e não hesita em chamar o homem para a cama. Se dependesse dela, eles já estariam transando muito antes, mas Zeca tem um tempo mais lento. Essa disparidade entre os tempos gera comicidade, engajamento e mobiliza o frisson do espectador. Conforme descreve Carol Amaral:

a demora na resolução do conflito amoroso é justamente o motivo de prazer da tentação genérica. Quanto mais longa a espera, mais potente o enlace final desejado pelo espectador. (…) O controle do tempo em que os desejos são revelados e satisfeitos, as demoras, as satisfações parciais desenvolvem a função erótica da narrativa.

Através desse choque, o filme acaba retratando também os papéis sociais de homens e mulheres cisgêneros heterossexuais naquela cultura, o que constitui outra característica fundamental das comédias românticas.

Uma vizinhança autoral

Assim que começaram os créditos iniciais durante a projeção de O dia que te conheci no Festival de Brasília, parte do público já se manifestou, aplaudindo a logomarca da produtora Filmes de Plástico. Não me recordo de ter presenciado reação semelhante a nenhuma outra produtora brasileira, o que denota o carinho do público (bastante expressivo) desse evento e o reconhecimento de um legado da produtora mineira, construído nos últimos 14 anos não apenas em Brasília, mas em festivais dos mais diversos — desde os universitários como o FBCU até vitrines internacionais como Cannes, passando pela Mostra de Tiradentes, onde André será homenageado em 2024.3 

Uma das virtudes a serem celebradas está no seu modo de produção, priorizando uma rede de afetos com equipes reduzidas, profissionais majoritariamente negras e moradoras dos bairros onde a produtora se constituiu (em Contagem, Betim e Belo Horizonte) e, o mais impressionante em se tratando de um projeto ficcional, a carga horária de trabalho. O dia que te conheci foi gravado em 11 diárias não-consecutivas, com cerca de 8 horas de set – números atípicos no mercado audiovisual brasileiro, principalmente se pensarmos no repertório de comédias românticas produzidas no eixo Rio-São Paulo.

Esse modelo se reflete na imagem gerada: temos a aposta em uma decupagem econômica, poucas locações (sendo uma delas a casa do próprio diretor e da diretora de arte, sua esposa), poucos figurantes, uma fotografia que parece aproveitar a luz natural e duas cenas no interior de um carro supostamente em movimento que foram gravadas com ele parado dentro de uma garagem, com a estrada sendo projetada em um madeirite posicionado na frente do para-brisa (uma solução para o fato de Grace não saber dirigir, mas que confere uma camada a mais de despretensão — e, por que não, fabulação? — ao filme). A autoria de André e seu coletivo acaba se dando através da lógica criativa com que desafios técnicos e narrativos são resolvidos.

Não pretendo aqui romantizar uma possível precarização da mão-de-obra em nosso setor ou elogiar um cinema chamado por alguns de “pós-industrial”, mas refletir sobre como as convenções de gêneros narrativos — neste caso, da comédia romântica — podem ser elaboradas em distintos esquemas de produção, assumindo formas fílmicas particulares. Mais uma vez, nas palavras de Amaral: “Convenções não são necessariamente clichês sem criatividade, mas modos de fazer ligados à estrutura que estão disponíveis para serem desmontados, bifurcados e reimaginados.”4

Constelação mineira

Seja pela maneira como a indústria audiovisual se organiza ou pela ênfase nas atuações nesse tipo de filme, é comum que as comédias românticas apostem no star system como um elemento fundamental, tendo estrelas reconhecidas pelo público-alvo em papéis de destaque. Aqui, nos deparamos com um star system alternativo, que galga seu reconhecimento pelas bordas: de um lado, a multiartista Grace Passô, com vasta trajetória no cinema, TV e teatro, inclusive já tendo participado de outros dois longas da produtora; do outro, Renato Novaes, irmão de André, que se profissionalizou enquanto ator através dos Filmes de Plástico e depois recebeu convites para atuar em produções de cineastas como Affonso Uchoa e Nathália Tereza, tornando-se um rosto familiar do público do cinema independente brasileiro. 

Nesse sentido, André confessou5 que uma das motivações para fazer O dia que te conheci era a de promover um reencontro cinematográfico entre Grace e Renato, devido à química que tiveram durante as gravações de Temporada, no qual viveram diegeticamente um romance fulminante com uma deliciosa cena de sexo. A ideia de retomar essa química, expandindo e reconfigurando em uma história mais longa deu muito certo, com direito à coroação do casal com os prêmios de Melhor Ator e Melhor Atriz no Festival de Brasília.

Em sua fala de encerramento do debate em Brasília, Renato revelou um segredo sobre a futura distribuição comercial do filme: pretendem lançar O dia que te conheci nos cinemas em junho de 2024, mais especificamente na semana do dia dos namorados. Seria de fato muito interessante ver um filme autoral protagonizado por corpas dissidentes, que tensiona as convenções de gênero, extrapolar a bolha dos festivais e encontrar novos públicos a partir do atrativo que uma data comemorativa pode trazer. Fico na torcida para que a estratégia de divulgação, se concretizada, surta efeito, e que o filme inspire muitos enamoramentos Brasil afora.

por Vitã

Notas:
1 – Citação do artigo O espaço-tempo da comédia romântica: o gênero como mapa de leitura e de escrita, publicado por Carolina Amaral no 5º dossiê da Moventes. A quem se interessar por estudos de ficção romântica, vale a leitura de outro texto da mesma autora: Histórias que escrevem pessoas: narrar e amar, publicado no 3º dossiê da Moventes.
2 – Fiz uma análise mais detalhada sobre as comédias românticas de Hong Sang-soo na dissertação Amores interessantes: Processo, forma e afeto no cinema de Hong Sang-soo (UFF, 2018) e no ensaio A banalidade do amor, com coautoria de Carolina Amaral, publicado no catálogo da mostra A repetição da vida (Caixa Cultural RJ, 2019).
3 – A Revista Moventes já se debruçou sobre o cinema da Filmes de Plástico em alguns textos. Laís Ferreira de Oliveira, conterrânea de Contagem, escreveu sobre Temporada, No Coração do Mundo, e Nada. Mariana Baltar e Michel Carvalho escreveram sobre Fantasmas, exibido na Mostra de Cinema Moventes.
4 – Carolina Amaral, em O espaço-tempo da comédia romântica: o gênero como mapa de leitura e de escrita.
5 – Em debate realizado no Cine Odeon, durante o Festival do Rio 2023.