“Temporada” e as múltiplas possibilidades de uma visita

Como inventar o que se recorda partir da fragmentação do presente?

Em Temporada (2018), de André Novais Oliveira, a protagonista Juliana (Grace Passô) sai para comprar um armário para colocar no barracão onde mora sozinha.  No topa-tudo que visita, do guarda-roupa, cai a fotografia de uma desconhecida, cujo verso apresenta uma dedicatória. O texto é referente às lembranças de férias vividas na cidade de Pedro Leopoldo, lida pela personagem principal do filme. Em cena posterior, vemos esse móvel na casa de Juliana e, pregada na porta dele, está a foto dessa estranha. Assim, a imagem do anonimato passa a conviver com um dos lados mais íntimos de uma pessoa. Na porta do armário, em que se escolhe, nu, diariamente o que vestir, avista-se a imagem de um rosto que, se desconhecido, torna familiar uma casa, uma cidade e uma rotina ainda recentes. Não há fotografias dos parentes ou do passado de Juliana naquela porta, há somente a imagem da mulher anônima. Dessa forma, o presente lacunar tece uma teia com remendos próprios, os quais são construídos a partir daquilo que antes era estranho e inusitado, mas se torna íntimo e próximo. E aquilo que deve ser lembrado é antes o que o presente oferece, ao invés do passado.

Algo semelhante acontece quando Juliana visita uma casa, como trabalhadora concursada do setor de zoonoses da prefeitura de Contagem, para encontrar possíveis focos de doenças.  Enquanto a moradora¹ que a recebe oferece insistentemente um café e um bolo de fubá, Juliana encara os pequenos detalhes da casa e emociona-se com as fotos de família e com pequenos detalhes que enfeitam o apartamento, como um brinquedo de águia. Nesse sentido, a escolha narrativa da profissão da protagonista é acertada, tendo em vista que tensiona o lugar de estranhamento de um lugar desconhecido – Juliana sai de Itaúna para ir para Contagem – para a possibilidade de conviver com aquilo que pode ser mais íntimo em uma cidade: a casa de um morador. Essa condição permite também que outros aspectos da vizinhança sejam revelados. Destaca-se, por exemplo, a cena em que Juliana visita uma casa na qual deve subir uma escada para alcançar a laje para verificar se não há focos possíveis de proliferação de doenças. Depois de hesitar muito se subiria ou não a escada, considerando o medo, a insegurança da estrutura e a labirintite que possui, Juliana ascende à parte superior da casa, onde consegue ter uma vista panorâmica do bairro e escuta do morador a história de formação daquela região. Entretanto, a recepção e a cordialidade não é uma constância dentre todos os moradores. Em outra cena, a protagonista bate insistentemente no portão de uma residência; não obtém, porém, resposta imediata. Após algum tempo, uma moradora raivosa aparece na porta, dizendo que estava dormindo e acabara de ser acordada. Portanto, as visitas de Juliana às casas dos moradores se tornam metáforas das próprias dificuldades de se adaptar a uma nova cidade, na medida em que revelam algumas relações amistosas, outras arredias, e salientam-se os medos presentes na personagem.

O ambiente da casa e as dificuldades para torná-lo acolhedor aparecem em Temporada associados aos desafios existentes na construção de novas relações e vivências em uma cidade diferente. Nesse caso, é relevante a cena em que Juliana é acordada pela proprietária do barracão onde mora, a qual anuncia a chegada de um profissional para consertar o vazamento do banheiro. A protagonista questiona o horário cedo e alega que precisa ir ao trabalho; a proprietária, porém, argumenta que fora Juliana quem reclamara do estado do imóvel. Logo, transparece a dificuldade para que a personagem sinta-se à vontade e confortável mesmo na casa onde ela mora. No barracão que Juliana aluga para, a princípio, dividir com o marido Carlos, que desaparece e não se muda, não há muitos móveis. Ela aguarda um acordo comum com o marido para mobiliar a nova moradia. E é apenas quando a personagem decide não mais esperar pelo marido e se envolve com outro homem que ela começa a comprar novos móveis para a sua casa.

A relação entre a casa e os sentimentos de um homem transparece também quando Juliana visita o seu pai e, ao vê-lo no jardim e perguntá-lo como ele está, ouve como resposta: “Estou aqui, mexendo com as minhas coisas”. O diálogo não prossegue, o pai não lhe devolve a pergunta e não lhe questiona sobre a rotina em Contagem; Juliana entra para o lado de dentro de casa, o pai permanece do lado externo e predomina o silêncio entre os dois. A comunhão entre objetos e o estado emocional dos personagens também aparece quando Juliana recebe a sua prima e, pela primeira vez, decide contá-la sobre a perda de um bebê no passado. Enquanto se encoraja a relatar o caso, a personagem, sentada ao lado da mesa em que garrafas de bebida convivem com uma térmica de café, olha para cima, para sobre a geladeira, e vê que lá há um pacote de salgadinho que havia comprado mais cedo. Levanta-se e abre o pacote, oferecendo-o à prima, antes que desabafe sobre o passado. Assim, mesmo que haja poucas coisas no barracão ocupado por Juliana, são os pequenos elementos inseridos dentro da casa que a possibilitam sentir-se confortável e encorajada a enfrentar os dilemas cotidianos.

O período de transformações e mudanças, bem como a sua relação com o espaço, não é exclusivo de Juliana. Em uma cena, a protagonista encontra o colega de trabalho Hélio, sentado à beira de um córrego bastante poluído. Surpresa com a escolha do local pelo colega, ela lhe pergunta a razão de estar ali. Ele responde que está apreciando a paisagem, o que provoca uma gargalhada da amiga, tendo em vista que, antes da beleza, chama atenção o odor de esgoto do rio. Entretanto, percebemos que, ao longo do diálogo entre os dois, Hélio se sentara ali para refletir acerca do seu trabalho e dos seus receios do futuro. Importava pouco a paisagem. Dessa maneira, percebemos que, tal como a relação de Juliana com as casas que visita em seu trabalho, a ressignificação do espaço por aqueles que ali habitam há mais tempo acompanha as tensões emocionais vivenciadas pelos personagens.

Em Temporada o tempo dos afetos parece estar deslocado e em constante mudança. Em uma cena, por exemplo, Russão conta para Juliana que espera a resposta de um teste de DNA, que talvez ele se torne pai. No entanto, há uma surpresa no caso contado pelo personagem: aquele que seria seu filho já estava com três anos de idade. Dessa forma, Russão chega à vida do garoto depois que ele já nascera, já crescera e já vivenciara tantas coisas que um pai gostaria de presenciar – os primeiros passos, as primeiras palavras, por exemplo. Ainda assim, ao se confirmar a paternidade, Russão decide modificar sua vida, abrindo uma barbearia para trabalhar à noite e aos finais de semana, visando aumentar sua renda para poder ajudar financeiramente e conviver com o filho. O curioso é que o trabalhador não tinha experiência com esse ofício, decidindo fazer um curso às vésperas da inauguração. E, nessa escolha, cria a oportunidade para que Juliana ouça o convite de um cabeleireiro para transformar seu visual, o que resulta na substituição do alisamento capilar por um corte e novo penteado dos cabelos crespos. Essas transformações apontam para uma das maiores belezas de Temporada: demonstrar que, na fragilidade e na efemeridade da vida, são as relações pessoais aquelas que provocam as mudanças mais duradouras na vida de alguém. E são movidas, muitas vezes, antes pela fé, pela esperança e pela perseverança que pela racionalidade.

A influência de uma casa e da potencialidade dos afetos modificarem a vida de alguém é algo recorrente na filmografia de Oliveira. Em Pouco mais de um mês (2013), Élida orienta André a fechar a cortina de uma forma específica, a fim de que, no teto do quarto, apareça a imagem dos carros na rua, em um funcionamento semelhante à de uma câmera obscura. Isso demonstra como o conhecimento das estruturas e da potencialidade de uma casa advém daqueles que nela habitam. Nesse mesmo filme, revela-se como uma relação que ainda tem pouco tempo de existência transforma a vida de ambos os personagens, sobrepondo-se, por exemplo, aos traumas de relacionamentos passados vivenciados por Élida. Em outro filme, Ela volta na quinta (2014), há, tal como em Temporada, a presença de fotografias antigas, as quais são mostradas na abertura do longa-metragem e evocam a trajetória do casal protagonista do filme, Maria José e Norberto. Nesse filme, o casal se senta à mesa do café da manhã e, a recusa de Maria de continuar comendo uma laranja é vista por Noberto como sinal que algo está não está bem com a mulher. Nesse contexto, a crise vivenciada pelo casal transparece em pequenos elementos cotidianos. Destaca-se, por exemplo, a cena em que ambos estão na sala de estar, mas se sentam em locais distanciados. Maria José se senta na mesa de jantar, pesquisa em um notebook uma letra de música romântica, enquanto Norberto assiste televisão. No entanto, quando Maria coloca a música para tocar, ambos se levantam e dançam no centro da sala.

A diferença de Temporada dos demais filmes de Oliveira sustenta-se, assim, na lógica mesmo da visita. Se, em Pouco mais de um mês, a brevidade do tempo também é mencionada, há, no entanto, na vida de cada um dos personagens, elementos que apresentam fixidez – a casa de Élida, por exemplo. Em Ela volta na quinta, a crise de um casal também pode parecer como algo temporário, que pode ser solucionada e contribui para a permanência de uma relação duradoura e antiga entre duas pessoas. Entretanto, em Temporada, a continuidade não é assegurada ou sequer prioridade: trata-se, antes, de conviver com os outros e buscar, nesse contato temporário, partilhar a felicidade possível. Juliana, ao longo das conversas com os colegas de trabalho, revela estar surpresa com as novas amizades traçadas, as quais não eram usuais quando vivia em Itaúna. Todavia, essas relações amistosas não nascem de convivências antigas, mas da vivência circunstancial com aquelas pessoas. Essas situações são próximas àquelas vividas no interior das casas examinadas no trabalho com zooonoses: tem-se contato com a intimidade de cada um e tenta-se, em um breve período, alcançar um bom resultado, desenvolver afeto, assegurar uma situação melhor a partir de uma abertura mútua, ainda que momentânea. Nesse sentido, é exemplar a última cena do longa-metragem: mesmo que não tenha carteira de habilitação, Juliana dirige o carro que havia enguiçado na estrada, enquanto seus amigos empurram-no para que possa funcionar. E evidencia-se que trafegar por uma nova estrada só se torna possível por meio do auxílio dos outros, da coragem e do risco.

Nota:
1- Nessa cena, a moradora é interpretada pela falecida mãe do diretor, Maria José Novais Oliveira, Dona Zezé, a quem o cineasta dedica o filme. Percebemos como, ainda que não explicitamente, os familiares de André Novais contribuem para o filme e para uma afetividade característica da obra do cineasta.

Por Laís Ferreira Oliveira