Antes de mais nada: o cu. É assim que começa A Rosa Azul de Novalis, de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro: com um close-up do cu de Marcelo Diorio performando leves espasmos. O plano seguinte revela o protagonista em uma posição de yoga, dando “banho de sol” no cu para suprir sua alegada deficiência de vitamina D, enquanto ostenta uma edição da poesia completa de Hilda Hilst em uma das mãos. Ele declama, não por acaso, os poemas III e VII da série intitulada “Da morte. Odes mínimas”. Logo depois, já na cozinha, enquanto prepara um café, o personagem questiona se a dupla de diretores havia percebido o procedimento estético que havia feito no rosto, especialmente para o filme: uma aplicação de metacril com o intuito de suavizar os efeitos da distrofia facial – decorrente do uso do AZT no início dos anos 2000, quando descobrira que estava com HIV. Quando perguntado se o HIV tinha tamanho impacto em sua trajetória a ponto de estar pressentido na linha da vida de uma de suas mãos, Diorio relata a camada a mais de homofobia que sentia, pela associação compulsória entre homossexualidade e HIV nos anos 1980; recorda o clima de medo alimentado pelo tratamento sensacionalista da questão pela imprensa, citando especificamente a violência simbólica da capa da revista Veja que estampava Cazuza. Para ele, o HIV ainda é um peso enorme – não o vírus em si, mas todo o imaginário que foi construído ao redor dele.
Assim, ao articular de maneira bastante direta este encadeamento cu/morte/HIV antes mesmo dos seus 10 primeiros minutos de duração, A Rosa Azul de Novalis coloca como questão central para o embate todo um imaginário homofóbico, revisita um passado recente cuja mentalidade infelizmente ainda persiste nos dias de hoje. Me refiro aqui à problemática teorizada por Leo Bersani em seu clássico ensaio “Is the rectum a grave?” (“O reto é um túmulo?”), em que o autor demonstra como o discurso público sobre os homossexuais desde o início da crise do HIV/AIDS possuía semelhanças com a representação das prostitutas no século XIX. No contexto da epidemia de sífilis daquele século, prostitutas, mulheres sexualmente ativas eram consideradas como “receptáculos contaminados”, transmissoras de doenças venéreas para homens “inocentes”. Com a epidemia do HIV/AIDS, esse imaginário misógino é transplantado para descrever homossexuais – com o agravante de que, ao invés do sexo vaginal, o ato criminoso e fatal em si mesmo é o famigerado sexo anal, o irresistível desejo de homens se colocarem no suposto “papel feminino” de ser penetrado. Disso resultou uma homofobia que taxava o grupo mais fortemente atingido pela epidemia, os homossexuais, tanto como assassinos em potencial (desejantes da transmissão do vírus) quanto suicidas (ao não resistirem às suas práticas sexuais “impuras”, seriam causadores da própria morte). Transformar o cu em sinônimo de túmulo, e a decorrente estigmatização dos homossexuais, foi uma estratégia instrumentalizada na era Reagan para colocar o HIV/AIDS enquanto uma questão moral e não de saúde pública, o que retardou, entre outras coisas, os investimentos em pesquisa e tratamento.1 Qualquer semelhança com recentes declarações do Ministro da Saúde não são mera coincidência,2 visto que este atual governo parece ter uma propensão a revisitar Reagan, não só neste aspecto, mas também nos escândalos de corrupção. Este é um primeiro ponto teórico que eu gostaria de destacar. Então, voltando ao filme, me parece que Gustavo, Rodrigo e Marcelo se propõem este questionamento frente à estigmatização heteronormativa do tabu do prazer anal (e todas as implicações decorrentes disso), e a forma propriamente cinematográfica que encontram para este embate é, já de cara, a hipervisibilidade do cu, este locus proibido do prazer.
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Em segundo lugar: o cu. O desdobramento do filme, como no discurso indireto livre, se dá numa espécie de fluxo de pensamento, em que, além dos momentos de entrevista e das práticas sexuais do protagonista, temos a materialização de suas angústias, memórias e imaginação pornográfica, que invadem a cena inadvertidamente. É nessa lógica fragmentada que saltamos, por exemplo, do relato de que o personagem previra a morte do irmão, lendo a curta linha da vida da palma da sua mão, para a reencenação, após um movimento panorâmico da câmera, do funeral do mesmo (seu primeiro e incestuoso amante) e o acerto de contas com a mãe – que achava que Diorio morreria antes. A aversão ao pai, piloto amador, se traduz nos barulhos de motores que invadem uma das cenas, ou no próprio embate com o carro-organismo cujas veias/cabos ele arranca/dilacera. Uma dessas reminiscências transcende sua própria vida e seus dramas familiares, em direção a vidas passadas: em outra encarnação, afirma ter sido Novalis, poeta alemão do romantismo, heterossexual, cuja obra apresenta uma estranha obsessão, uma busca incansável pela rosa azul. Pouco importa para Diorio o “significado” que pode ser atribuído à rosa azul para o poeta – a falecida amada, Deus, a morte – na medida em que ela estaria mais próxima, para ele, àquela “coisa que não existe, mas existe”, uma certa dimensão mística da experiência. Essa reivindicação – ser Novalis – não deixa de estar no filme com uma certa ironia: longe de ser tratada com uma seriedade reverente, Diorio equipara sua afirmação aos “personagens” que assumimos sexualmente nas descrições de aplicativos de pegação. Mas em termos da concepção global do filme, certas chaves do romantismo se fazem presentes: de um lado, um desapego do “eu” disparado pela conscientização do desejo pela flor, que torna possível uma relação poética com o mundo; de outro, a relação entre religião e estética no poema de Novalis, Os hinos à noite (citado no filme) — exemplar, segundo Vera Lins, da maneira “como os primeiros românticos estranham, desfiguram o mito cristão e o transformam”.3 Principalmente em sua estrutura lacunar e errante, A Rosa Azul de Novalis parece estabelecer uma estranha zona de contato entre romantismo e pornografia em tudo de dessubjetivado e místico que estas duas categorias compartilham. Em sua versão queerificada, enviadada pelo filme, Novalis fudeu com Bataille, e a rosa azul nunca remete ao rosto da amada desconhecida – é antes, como deixa explícito o pôster do filme, um misterioso cu que incha de tesão “como uma flor prestes a desabrochar”… E se por um instante Diorio parece encontrar a flor azul na cena do sexo oral, está implícito que as orquídeas são falsas, tingidas de anilina barata, e o falo serve tão somente para proporcionar um “banho de água benta” em seu corpo quase catatônico. A busca continua.
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O que nos leva ao terceiro ponto a ser abordado… o cu. Algumas imagens de A História do Olho, de Georges Bataille, são revisitadas em A Rosa Azul de Novalis, a mais óbvia delas quando Diorio, sentado numa bacia cheia de leite de amêndoas, executa um ritual de cuidado com seu cu sexualmente ativo que, segundo ele, antes parecia humilhante, mas que hoje via como uma espécie de liturgia, um sacrifício que fazia para obter prazer (afirma ficar imaginando que a vida das cortesãs francesas do século XIX não devia ser tão diferente que a dele…). Após se secar, ele derrama o leite de amêndoas pelo ralo do banheiro, literalmente exclamando: “Será que Bataille ficaria horrorizado com a banalização das imagens que eu faço dele?” O filme ironiza com as próprias imagens bataillianas que evoca, mas não há nada de banal no uso criativo que faz delas, particularmente na que me parece menos óbvia, que é o plano final. Numa das derradeiras cenas de A História do Olho, a personagem Simone se confessa numa igreja enquanto se masturba e, ao perceber a excitação do padre, acaba transando com ele de maneira devastadora, a ponto do êxtase herético causar a morte do sacristão. Em seguida, ela pede que um de seus amantes retire o olho do cadáver e a entregue, o que ele prontamente o faz. Simone então tem uma das experiências orgásticas mais alucinantes, ao utilizar literalmente o olho como estimulante em todos os seus orifícios. A Rosa Azul de Novalis termina evocando esta imagem, não a nível representacional, mas utilizando-se do aparato propriamente cinematográfico. Diorio está de quatro, vemos seu cu bem aberto através de um plug túnel acoplado ao orifício, a ponto de conseguirmos entrever a parte interna do seu reto. “Deus é esse buraco negro onde todos queremos nos perder”, ele exclama, relacionando Deus ao cu, e equiparando a experiência anal a uma experiência divina ou espiritual, a uma abertura à dessubjetivação. Após algumas tentativas/desvios dos zooms da câmera-chicote BDSM, o olho da câmera é, finalmente, introduzido no cu (local onde nem Vertov previra enfiar sua câmera-olho). Talvez seja o momento de retomar a teorização de Leo Bersani. Utilizando o próprio vocabulário do opressor para ressignificá-lo, o autor nega o status de túmulo ao cu no sentido dado pela heteronormatividade, ou seja, a de um orifício cuja profanação leva inevitavelmente à punição e à morte, para logo depois afirmá-lo enquanto túmulo num outro sentido: “se o ânus é um túmulo onde […] o ideal de subjetividade masculina arrogante está enterrado, então ele deve ser celebrado pelo seu potencial para a morte.”4 Bersani lamenta que a epidemia do HIV/AIDS tenha literalizado a metáfora, mas não deixa de enaltecer o potencial transgressor da “perda de vista do eu” experimentada no prazer anal homossexual, capaz de enterrar a masculinidade hegemônica na medida em que “propõe e representa perigosamente o gozo como um modo de ascese.”5 É dessa elevação espiritual que o filme se ocupa: encenar uma experiência erótica extrema e sua conexão subterrânea com a morte, não só como tradução da imaginação religiosa, mas como busca de um novo discurso pornográfico em si mais potente, para além de qualquer encapsulação religiosa (pensando nos termos de Susan Sontag).6 Assim, em A Rosa Azul de Novalis, tudo culmina na literalização dessa imagem anal via linguagem cinematográfica, uma câmera solicitada (junto com a plateia) a penetrar o orifício proibido – uma câmera não necessariamente fálica, mas uma câmera-olho mesmo, convidada a adentrar esse limiar entre luz e escuridão, habitar essa zona interditada, a ouvir os murmúrios que brotam das profundezas e, por fim, tocar a abóbada celeste. O cinema como forma superior de enfiar o olho no cu.