Uma versão rascunhada deste texto foi lida na Mostra de Cinema de Tiradentes, em 26 de janeiro de 2024, durante o debate sobre o longa Not Dead, do qual participei como crítica convidada, representando a Revista Moventes. Inspirada na canção-manifesto Era, da banda Cólera, que toca durante os créditos finais do filme, elaborei as seguintes notas para alimentar as discussões em torno desta obra que é, por sua vez, um manifesto audiovisual punk contemporâneo.
*
Punk Rock é vida – é autonomia
Com Not Dead (2024), o diretor Isaac Donato nos convida a conhecer seus amigos e vizinhos que fizeram parte da cena punk de Salvador dos anos 80 e que, de alguma forma, ainda mantêm acesa a chama punk em seus corações.
Trata-se de um filme de encontros: as personagens estão sempre conversando com alguém (mesmo que seja pelo telefone ou computador), refletindo sobre como o movimento punk afetou suas vidas naquela época e o que ficou hoje no presente. Elas apresentam seus empreendimentos, suas bandas, seguindo a máxima punk do Faça Você Mesmo.
A câmera é quase sempre fixa, buscando composições nas locações, às vezes por trás de objetos ou de janelas, mas sempre com uma postura de observação. Acompanhamos os diálogos se desenrolando com pequenas proposições cênicas — tipo um camarada chegando com as cervejas, o outro comprando ingresso pro cinema… e provavelmente com assuntos pautados pela direção. Temos acesso ao passado através dessas falas, da memória dos personagens, mas nunca por imagens de arquivo. Não vemos aqueles corpos jovens no passado; a escolha é de olhar para eles no presente.
Essa postura está sintetizada em uma fala de Ed, o consultor de acessibilidade que também é um dos personagens. Logo no início, ele comenta o roteiro de audiodescrição do filme, destacando uma passagem onde haveria uma explicação sobre as ruínas da loja Not Dead e o contexto histórico da rua. Ele fala:
“(…) aqui o roteiro já mistura um pouco aquilo que é descrição com o histórico de uma loja que funcionou, que deixou de funcionar… então esse trecho também eu vou recomendar a retirada.”
Mais adiante, ele complementa que, na audiodescrição, você não pode descrever uma “festa animada”. Você tem que descrever concretamente essa animação. Tem que ser material. E o filme está com Ed no interesse pela materialidade daqueles corpos naqueles espaços que eles próprios construíram ou decoraram. Através da matéria, observada em planos de longa duração, o filme busca chegar naquilo que é imaterial, que seria o espírito punk. Não importa a idade; aquelas almas ainda são punks, conforme reivindicado por Rai, outro personagem.
Repensar os meios – é autonomia
Enquanto proposta estética, Not Dead parece buscar também inventar uma linguagem punk. O principal recurso é a metalinguagem com reflexividade: os personagens assistem a si próprios na tela do cinema; Ed costura todo o filme refletindo sobre como aquelas imagens poderiam ser traduzidas para um espectador cego, e ele aparece bastante; e há momentos mais pontuais em que o set de filmagem é evocado, quando alguém da equipe grita “corta” e Rai se recusa a parar de falar, ou quando Ed reclama da maneira como Marília Cunha (corroteirista, diretora assistente e produtora) e Isaac dão os comandos de “ação”.
Assim, o filme está o tempo todo nos provocando a racionalizar sobre suas escolhas. Ele é bem opaco, relembrando constantemente a sua materialidade fílmica. Porém, ele fica tão deslumbrado com a sua própria rebeldia estética, que acaba não aproveitando as potencialidades dos dispositivos criados. Ele cria dobras, mas elas não se desdobram.
O longa se contenta em constatar um estado das coisas que está na superfície, mas se esquiva de ir além da descrição, aprofundando alguns pontos que poderiam ser feridas abertas ou mal-resolvidas. Dessa maneira, não corre o risco de deixar os personagens (amigos do diretor) desconfortáveis.
Assumir os erros – é autonomia
É particularmente chocante um enunciado que aparece escrito na camiseta de Neilton, vocalista da banda Ato 5:
Axé tem Cura
Tome Rock’n Roll
Isso fica estampado na tela por alguns minutos enquanto eles tocam Pátria Amada. Suponho que esteja se referindo ao gênero musical “axé music”, e poderíamos resgatar a música Controle total, da banda Camisa de Vênus, que aborda esse conflito: “aqui em Salvador, a cidade do axé, a cidade do horror.” Havia, na época, toda uma crítica à indústria musical carlista (que estaria beijando as mãos do então governador baiano ACM), mas isso não é abordado pelo filme. Há apenas um breve comentário de Rai, conversando com seu irmão Piolho, sobre um protesto que fizeram contra o carnaval. Ele relembra com autocrítica esse causo, mas é algo pontual e acaba ali.
Not Dead resgata as origens do punk como uma cultura de contestação, politizada, de esquerda, mas ao mesmo tempo deixa passar uma frase como Axé tem cura, que hoje, na materialidade do nosso presente, é uma afirmação bastante reacionária e preconceituosa. Seria uma farpa riquíssima de ser explorada, de ser desdobrada, mas o filme não se posiciona. Prefere o tom de conversas prosaicas, dos brothers na mesa da birosca tomando cerveja artesanal, com um tom amistoso e tranquilo.
O único conflito que dura um pouquinho mais é uma conversa dos irmãos discutindo os símbolos punk, sobre o couro, o preto, questionando também a materialidade das roupas no calor de Salvador. Mas isso também passa, o filme não se detém.
Eu não quero as regras – quero autonomia
O resultado é um filme de convivência: leve, lento, morno, carinhoso e respeitoso com as personagens que, décadas depois de viverem intensamente o movimento punk, seguem tentando hackear o sistema por meio de projetos de vida autônomos. Elas cultivam o punk não apenas como ideologia, mas também como um futebol de domingo, um espaço de socialização. Um dos maiores méritos da obra é o de visibilizar a dimensão racializada e periférica do punk soteropolitano, ligado à classe trabalhadora e com a maioria de pessoas pretas — quase todos homens cisgêneros heterossexuais, sendo Lu a única mulher com voz dentro da obra.
Com o seu lançamento na Mostra Aurora da 27a Mostra de Tiradentes, Not Dead passa a compor um panorama representativo do punk no cinema brasileiro, para além dos clipes musicais, situando-se ao lado de documentários como Garotos do Subúrbio (1983, dir: Fernando Meirelles), Punks (1984, dir: Sarah Yakhni e Alberto Gieco), Êra Punk (2021, Flávio Galvão), e da animação Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente (2021, dir: Cesar Cabral). Destaco este último longa, que mergulha no universo de Angeli, e também verbaliza o lema Punk’s Not Dead, da banda The Exploited. Ele mostra um velho cartunista como um homem branco paulistano de classe média decadente, amargurado, depressivo. O filme de Isaac também se interessa por velhos punks, mas aponta para um outro caminho: aqui, eles são potentes, com pulsão de vida e de criação… Ainda que bem mais comportados do que na juventude. Not Dead nos mostra que, de fato, o punk não morreu; apenas envelheceu – e isso não é algo negativo.
Por Vitã
Ps: Agradecimento a Luis Carlos de Alencar pelas conversas sobre o punk baiano.